sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

" BALANÇOS ... "

 

Balanços, balanços ...

Por que raio somos impelidos a fazê-los, só porque o ano termina, se afinal "ele nasce outra vez" ... como  diz aquela maravilhosa e eterna melodia natalícia que todos conhecemos ?!

O dia trinta e um de mais um Dezembro que como um sinal de trânsito determina o fim deste trajecto de trezentos e sessenta e cinco que por aqui se foram escoando, é simplesmente mais uma marca que o ser humano inventou, como se o tempo não fosse um todo contínuo que temos a mania de fatiar ... anos, meses, semanas, dias ... horas ...
E dessa forma contabilizamos a vida, dessa forma despejamos nos nossos corações baldes de angústias, de ansiedades, de dúvidas e incertezas !
Dessa forma, criamos metas nas nossas cabeças, espreitamos fins de linha, receamos a aproximação do destinado, baseados em lógicas de esperança de vida, de estatísticas, de inevitabilidades ...
Como se fosse assim tão linear, o destino de cada um !...

E chego exactamente aqui com uma sensação de novelo de lã embrulhado nas pontas que se desgrenharam, com a sensação dum coração mais esburacado que o coador do chá, e com o cansaço de quem arrasta grilhetas atrás de si, pelos caminhos da vida.  Chego com a exaustão dum vazio irremissível, com o peso irresolúvel desse mesmo vazio ... ( Quem disse que a ausência de matéria não pesa horrores ??? )...
Quando estamos na idade produtiva, quando os planos e os sonhos esbracejam para terem espaço, e falta tempo e condições sobretudo materiais para os concretizarmos, acreditamos convictamente ... e ansiamos ... que, lá mais para a frente, há-de sobrar tempo, há-de haver paz, disposição e vontade, há-de haver disponibilidade emocional para se cumprir um percurso sereno, tranquilo, despreocupado e despido de angústias, aflições e incertezas destruidoras ...
Lá mais para a frente, será o tempo de recolectar, de usufruir, de saborear sem sustos ou sobressaltos, a nova qualidade de vida que nos é devida, afinal.
O Outono, também da existência humana, deverá ser um período de acalmia, de benefício, de paz ... o período da colheita do semeado em altura própria ...
Pois bem, chego exactamente aqui, como disse, com a sensação de ter feito quase tudo errado na minha vida, com a sensação de ter sido uma péssima administradora da mesma, com a desconfortável angústia da incapacidade de conseguir passar quase sempre a minha mensagem, clarificar a minha linguagem, traduzir com transparência tudo aquilo que quis transmitir, mostrar-me na total nudez da minha essência ... Com todos ... filhos, amigos, amores ...

Enfim, chego exactamente aqui carregando uma frustração sem tamanho, um desmesurado amargor no coração, uma sensação de derrota, de erro, de perda de tempo, de ineficácia, de fracasso ...
Não fui, simplesmente, capaz, hábil, convincente ... Quase tudo terá, portanto, sido em vão !...

Balanços ...
Antes de começar a escrever, sem uma linha norteadora, sem um assunto previamente equacionado, sem um propósito perseguido  ( apenas com uma sensação de profundo desânimo, cansaço e tristeza dentro de mim ), havia-me dito que balanços, não !  Bastava a penitência que me atribuo de escalpelizar o meu caminho ... bastavam as mãos vazias em colheitas que não deram frutos ... bastava a perda da ilusão e da inocência face ao que poderia ter sido e não foi ...
E afinal ... acabei incontornavelmente presa ao emaranhado dos seus inevitáveis tentáculos, em mais um ano que se está a acabar dentro de poucas horas.
Os balanços, afinal, sempre acabam dominando a mente humana !

Anamar

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

" QUANDO AS AZEDAS VOLTAREM ... "

 


E elas já aí estão ! 
Pintalgam a mata atestando a continuidade da vida, a resiliência dos seres.  Num ano totalmente atípico como o estão a ser cada vez mais, mercê da anormalidade das condições atmosféricas, fruto claro de alterações climáticas que já não têm disfarce possível, tudo na natureza se transformou numa conversa de surdos, com árvores a darem frutos mas já a florirem de novo, com a Primavera a ocupar os espaços de um Inverno que ainda não começou sequer ... enfim, com a Natureza a baralhar-se no meio desta baralhada toda, de facto !

Deveríamos estar às lareiras, deveríamos vestir lãs quentinhas, golas altas quiçá ... e não, como continua a ver-se, gente com mangas curtas na rua, sem um resquício de sacrifício ou penitência, porque efectivamente não está frio nenhum !  

E por isso, e à conta disso, as azedas voltaram.
Os campos bem verdinhos, com todos os arbustos rebentados já, beneficiando da amenidade térmica que persiste e da quantidade incontrolável de água que tem caído, propiciaram que este Natal que se avizinha tenha mais cara de Páscoa do que de um Dezembro que o calendário exigiria ...
E é lindo verem-se cobertos dos verdes mesclados de todos os cambiantes, e salpicados do amarelo viçoso da promessa primaveril que se antecipa !
Não fora a lama, e seria absolutamente convidativo perambular pelos caminhos, agora desertos, da mata. 
Com os céus plúmbeos, ameaçando mais chuva, a penumbra descida e o silêncio que impera, são para mim preferenciais companheiros de caminhadas.  Acresce que quase ninguém se propõe ... e por isso, as veredas desertas, o silêncio levemente entrecortado por trinados meio dormentes, ainda de alguma passarada que ficou ou passa mesmo por aqui a próxima época, criam uma ambiência fantástica, de paz e recolhimento ...  não fora a lama ...

Bom, detesto esta época.  Não sou única, cada vez mais, muita gente por aqui mo transmite.  Se calhar é coisa de estados de espírito para quem nem a profusão das luzes e das cores, nem a magia que parecia envolver esta quadra, conseguem recriar ainda, o sortilégio de que estes dias se revestiam.
Se calhar é coisa de idade, de realismo, de pragmatismo ... de frieza ou mesmo de incapacidade já, de "acreditarmos no pai Natal", nestes tempos que vivemos.
Não sei !

Lembro que neste primeiro dia de férias natalícias se rumava à Beira.  De armas e bagagens, com filhas, mãe, cão e gatos aí íamos nós demandando umas férias merecidas, findo o primeiro período escolar.
A Beira oferecia-nos o friozinho esperado, os campos livres e cheirosos, a lareira acesa de manhã à noite ... e quase sempre varando a noite mesmo, as luzes que aconchegavam, com a doçura da semi-obscuridade, a sala de pedra e madeira ...  
A Beira oferecia-nos os vizinhos que o eram apenas intermitentemente quando a casa abria portas e janelas, e franqueava a entrada de quem aparecia.      
A Beira oferecia-nos o musgo na cesta da avó, o pinheiro colhido no pinhal ( "jeitozinho ... nem grande nem pequeno " ), o presépio que haveria de armar-se ... as pequeninas luzes a piscarem, e o azevinho e as pernadas da cameleira vindas do jardim ... 
Enfim, a Beira prometia e oferecia a despreocupação da garotada, o descompromisso de nada fazer, a displicência da inexistência de horários ... o gorgolejo das águas do rio quase sempre impetuosas entremeio às fragas, ao fundo das terras ...
E o cheiro, o cheirinho que persiste até hoje na minha memória, da caruma, da terra molhada, do fumo que evolando das chaminés, lembrava que os fornos já coziam ... o pão, a broa, os bolos da consoada, as iguarias que viriam para a mesa daí a poucos dias ...
E como era doce e aconchegante, quando à saída da porta, com os cachecóis e os casacos de golas levantadas e bolsos em prontidão, o bafo da respiração se transformava  num "fuminho" simpático à nossa frente ...
"Mãe, acenda o lume ! "
E o fogo subia, e o calor entranhava-se ... as luzes da Árvore de Natal cantavam ... as crianças gargalhavam só porque sim ... e todos, ainda todos então, comungavam da partilha de ser outra vez Natal !!!





Anamar 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

" TINHA QUE SER "


Parei de escrever no início do mês.  Assim o atesta a data do meu último post. 

Verdade seja que estive fora duas semanas, o que a juntar a preparativos de ida e depois da reinstalação na chegada, faz p'ra lá de um tempão.  Por isso, a juntar à já de si escassa inspiração e ausência de factos que pudessem agitar as águas por aqui, não tenho tido aquele "assento" como costumo dizer, para escrever fosse o que fosse.

Mas chegou o dia no formato e com o "desenho" desejável para a reassunção daquela paz, daquela introspeção, daquela interioridade que convidam ao silêncio dum quarto na semi-obscuridade de um único candeeiro aceso, onde apenas tamborila a chuva miúda na janela frente a mim, e onde a música relaxante de um CD de clássica, me confortam e aninham.
Beethoven, Schubert, Schumann, Mozart ... desfilam doce e lentamente, enquanto as palavras descem ao teclado e a tela do monitor se compõe.
Uma verdadeira tarde sonolenta, com o horizonte fechado além dos prédios mais próximos, um cinzento cerrado e um silêncio que eu diria absoluto, parecem dizer que tudo dorme lá fora ...

Estamos numa época do ano em que a "hibernação", a ausência aparente de vida, o intimismo que se respira dentro e fora de nós, nos remete para um aquietar das emoções, dos impulsos, dos sentimentos.  É mais um período de passividade do que de actividade.  É mais um período de reflexão, de análise, em que somos mais espectadores de nós mesmos do que actores e construtores de novos caminhos.
O Natal espreita já, melancólico, tristonho como eu sinto todos os Natais, silencioso e despojado como cada vez mais os vivencio.  A turbulência, a agitação, o brouhaha das festas cada vez menos me motiva.  Apetecia-me afastar-me dos lugares, das pessoas que me são indiferentes, de quem faz apenas número e cumpre calendário, apetecia-me ficar apenas com os que me aquecem a alma, com o silêncio das memórias, com o calor com que elas preenchem o gélido dos vazios deixados nos dias e nos tempos ...

Por estes dias tomei uma decisão há muito adiada e que se arrastava ano após ano, por tibieza de vontade, por saudosismo e por falta de coragem mesmo.  
Custo muito a desligar-me das coisas, não pelo seu valor material ( a esse não dou qualquer importância ), mas porque cada coisa é uma história, cada coisa é uma pessoa, uma palavra, um momento ...
Cada coisa tem o cheiro próprio do instante, tem a luz do que foi vivido, tem o som do que foi dito ... tem a gargalhada, o suspiro ... a lágrima que escorreu ...

Escancarados os roupeiros, despendurado o recheio de cada cabide, olhada com a indiferença e o distanciamento possíveis cada peça, procurando despi-la da emoção que lhe estava agarrada, da representação que configurava, foi a vez de dizer um basta e de separar definitivamente o que ficou no coração e na alma e o que cada trapo representou.
Isto estava comigo há catorze, há 15 anos ... isto foi usado nesta e naquela circunstância ... isto está associado a ... e por aí fora ...
Chega !  Não vale a pena esta espécie de flagelo à memória, este mau-trato a mim própria !  Definitivamente, o tempo foi, passou, foi o que foi e não é mais.  E este "grude" fétido, empesteado e doentio, tem que ser banido, raspado da minha pele e da minha memória.  Chegou a hora de exorcizar os meus "fantasmas", de acabar com esta intocabilidade, este "respeito" absurdo, como se estivesse a cometer o crime de violar uma espécie do santuário que todo aquele guarda-roupa religiosamente conservado, representou ... Tudo isto é louco demais, anormal demais ... doente demais !...
Mas acabou !
A página virou, a esquina dobrou, o livro fechou-se ... para sempre !!!  

Às vezes é preciso tomar decisões radicais nas nossas vidas e expurgar de nós mesmos muita coisa que nos dói  mas de que, pela significância assumida, não nos foi fácil, atempadamente, fazer o corte.  
Felizmente um dia a razão fala mais alto e a lucidez acaba por imperar. Afinal nada é eterno ... nada persiste para sempre !!!

Anamar