sábado, 12 de agosto de 2023

" LIVROS DE HISTÓRIAS ..."


A vida é um livro que, desfolhado, sempre conta uma história.  
É a história de vida de cada um, mais ou menos simpática, mais ou menos doída, mais interessante, mais difícil, com final feliz ou com um fim conturbado ... ou mesmo parecendo não ter fim, tanto o cansaço que arrasta ... tal qual o nosso livro de cabeceira, que umas vezes é lido na ânsia do conteúdo, outras vezes é "mastigado" e não nos sai das mãos, por enfadonho, cansativo, desinteressante ... chato !

A vida sempre começa pela infância, quase sempre os melhores anos, leves, despreocupados, em que os olhos se esbugalham face a tudo o que de novo se nos depara;  quase tudo é encantamento, porque é desconhecido, é experimentado, é história, é sonho ... quase tudo é feliz e alegre, como os contos, que o pai ou a mãe nos liam ao deitar.
Começamos a entender o mundo, começamos a olhar as coisas que nos cercam, começamos a experimentar, a registar, a observar, a saborear ... a concluir.  Dizem que as nossas primeiras memórias remontam aos quatro, cinco anos.
Costumam ser tempos felizes e promissores.  Deseja-se que de facto, o sejam !

Crescemos e as responsabilidades, as primeiras preocupações a sério, já as primeiras angústias, já as primeiras tristezas, crescem connosco.  
São os anos da aprendizagem, os anos dos bancos da escola, onde começamos a integrar-nos em grupo, onde as brincadeiras forjam reais amizades, onde convivemos e socializamos já com uma visão mais real e objectiva do mundo que nos cerca. 
Rumamos à adolescência e novos "mundos", novas realidades, novos caminhos, sonhos, objectivos e metas começam a desenhar-se. 
É período de outras descobertas, é o crescimento e suas dores, a tomada de consciência do nosso papel na sociedade, a maturidade a exigir-nos a seriedade inerente ao avanço dos anos.  Damos os primeiros passos p'ra valer, nas vidas profissionais, procuramos corresponder sem nos defraudarmos nem defraudarmos as expectativas em nós colocadas.
Na minha geração tacteavam-se os primeiros projectos familiares independentes.  Estudos terminados, iniciava-se a vida activa, e o encaminho sem fugir muito à regra, seria casar, ter filhos, continuar a senda ...
Fazia parte da engrenagem para que nos programavam, e não se questionava muito o porquê das coisas.  Era assim e ponto, na generalidade.
Eram poucas as pessoas, eram pouquíssimas as mulheres que "avistavam" novos horizontes e se permitiam ao voo.
Era a família que ficava, eram as idades do pai, da mãe a avançarem, e a separação era assim algo um pouco contra-natura, como se outro cordão umbilical se fosse de novo romper.
E se desse mesmo, ficávamos ... íamos ficando e encurtando o tamanho dos sonhos sonhados.  Afinal, era como que um pré-destino inevitável a cumprir ...

Tínhamos filhos ... claro, tínhamos filhos, e começava tudo de novo.  Agora em prol deles, sempre prioritários nas nossas vidas.
Passámos a sofrer as suas dificuldades, ficámos a viver os seus sucessos e os seus desaires, ficámos a projectar-nos nas suas vidas, literalmente "inchando" por cada êxito, chorando em silêncio por cada escolho dos seus caminhos, querendo que fossem mansos, tentando afastar-lhes os pedregulhos ...
Varremos quase sempre os nossos sonhos um pouco para baixo dos tapetes.  Às vezes, retirámo-nos mesmo o direito a sonhá-los ... Ficámos muitas vezes prisioneiros de solidões acompanhadas ...
E se o nosso percurso não teve acidentes de maior, estaria desenhado, eu diria, até ao fim das nossas vidas, no dia em que o tal livro dobrasse a última página !

Mas às vezes não era tão linear assim.  Às vezes, instalava-se no nosso caminho, um cerrado de "nieblas" e mau tempo.  E dissipá-las e andar adiante, revelava-se uma estóica aventura.
Escolhi ficar só com mais de meio século vivido.  Entendi que este presente que me era oferecido por cada dia que se iniciava, agora era mesmo meu.
E foi como se me tivesse aventurado em terreno baldio e desconhecido, entregue exclusivamente à minha sorte, com todos os custos inerentes, tendo que pagar, se fosse o caso, o preço que me fosse devido.
E quase voltei às primeiras páginas do livro, reescrevendo agora uma outra história.
Agora as cores já só podem ter os cambiantes laranjas, amarelos e os ocres do Outono.  Os verdes risonhos, os azuis de céus límpidos e a mescla dos borbotos a despontar, são só desperdícios largados lá atrás...
Mas a saga continua e quando os tempos de mornidão pareceriam adequar-se, quando a paz almejada e esperada pareceria óbvia e legítima ... quando inevitavelmente pareceria não haver muito mais história a contar ... até porque o cansaço de fim de jornada já se anuncia, eis que outras páginas exigem letras e frases, e parágrafos e ideias ... e tudo se impõe e regressa ao princípio, só que agora já não sou eu a protagonista das histórias, e só que agora pouco já posso fazer para dar o rumo escolhido e o final desejado às histórias que fosse contando !...

Anamar