sexta-feira, 31 de agosto de 2018

" DESÍGNIO CUMPRIDO ..."




E Agosto finou-se com temperaturas imperativas de que não devemos esquecer ser ainda Verão.
Apesar de na passada semana os dias haverem refrescado, o que nos aliviou dos mais de 40º C dos últimos tempos, voltámos de novo a ler trinta e muitos, nos termómetros.

É verdade, que na generalidade os locais costeiros já cerraram as portadas das suas casas de veraneio.  É verdade, que as escolas inauguram o próximo ano lectivo oficialmente, já nesta próxima segunda feira ... mas o lisboeta foi em força por o pezinho de molho, queimando assim, talvez os últimos cartuchos de 2018.
Isto, na verdadeira acepção do tradicionalismo do conceito de férias a sério, como desde sempre se gozaram.
Os meses ditos fortes do Verão, terminaram e Setembro já traz consigo um cheirinho à próxima estação.  Tudo em velocidade de cruzeiro ... como é a passagem do tempo nas nossas vidas !...

Lisboa, pejada de turistas, a rebentar pelas costuras ou a deitar pelo "ladrão" ... como preferirmos, é  desde hoje, uma cidade mais pobre
E sei de quem sentiria um desgosto a sério, por causa disso mesmo.
A quase centenária Pastelaria Suiça, localizada na Praça D.Pedro IV, o nosso Rossio, encerrou em definitivo as suas portas, terminando um ciclo de vida que não foi possível salvar, iniciado em 1922.

Foi um "ex-libri" da cidade, como sabemos.  Foi um ícone incontornável, geração após geração, ao longo das décadas.

O meu pai enquanto viveu, adoptou este espaço, afectivamente.
Poderíamos dizer que era figura "residente" do mesmo.
Todos os dias lá ia tomar a sua sopa, o folhado, o esquimó, o chocolate quente, o café ...
Todos os dias, mal franqueava a entrada, já no balcão se pedia familiarmente : "Sai uma canja para o sr. Coelho !..."
Dia após dia, mês após mês ... ano, depois de ano ...

O meu pai morreu com noventa anos e manteve até muito perto da sua partida, a qualidade de vida que lhe permitia ainda, quase diariamente, por lá passar.
Nascido em 1902, era um homem da cidade, onde detinha um Armazém de Ferragens. Era um cosmopolita, com Lisboa no coração.
Lá me comprava os mimos que eu adorava :  iguarias de chocolate, as amêndoas de licor se Páscoa era, fiambre especialmente cortado bem fino, quando ainda não era um género comum nas lojas, os esquimós, bolo com chocolate e chantilly que me levavam água à boca, miolo de pinhão a peso, caixinhas com línguas de veado especialmente queimadinhas ... e muito mais.

Após o seu passamento, algum tempo depois, fui com a minha mãe tomar um chá à Suiça.
Alguns empregados, reconhecendo-me, inquiriram sobre o que era feito do sr. Coelho, já que há muito deixara de frequentar o estabelecimento.
Sorri e disse-lhes perante os seus ares incrédulos e espantados : " O meu pai faleceu !  E já agora ... o meu pai não se chamava Coelho !"

Esse segredo duma vida, nunca ele havia contado !!!...  Por que o faria ???!!!



Anamar

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

" DE COSTAS VOLTADAS "




Nada há de mais complicado, dúbio e difícil do que a comunicação entre os seres humanos.
De tal forma que quando duas pessoas conseguem alcançar um código de entendimento perfeito, ou pelo menos satisfatório, poderão considerar que alcançaram um estado de graça invulgar, uma benesse do destino ... uma bênção mesmo !

Inversamente, nada há de mais desesperadoramente frustrante, que a incapacidade de comunicação porque entre o emissor e o receptor se gerou um curto-circuito inultrapassável.
A sensação de nos explicarmos de todas as formas, de nos desnudarmos até ao âmago na ânsia de nos fazermos entender, de usarmos de toda a transparência e lisura nas mensagens emitidas ... e depois percebermos que tudo foi em vão, que à nossa frente temos um muro intencionalmente intransponível, que o receptor joga à defesa porque criou na sua mente um processo de intenções, uma postura persecutória em que à partida já antecipara definitivamente a sua leitura, a sua interpretação e inabalável julgamento ... essa sensação, dizia, leva-nos liminarmente "ao tapete", por impotência, desespero, raiva e sobretudo um inesgotável cansaço !

É decepcionante, porque representa uma frustração, um esforço inglório e uma injustiça imensa.
Uma sensação, de em vão pregarmos no deserto ... porque o que eu disse, está longe de ser o que ele "ouviu" ...
E em última análise criam-se condições irreversíveis de abandono do diálogo ou da tentativa dele, cria-se uma impossibilidade dolorosa de consonância, instalando-se de permeio um mix de sentimentos destrutivos, uma panóplia de maus estares, animosidades, raivas e iras ...
E fica uma situação mal resolvida "ad eternum"!

Quase sempre pessoas próximas afastam-se, desistem, deitam por terra tudo o que havia sido construído entre si, e os interlocutores viram-se as costas, duma forma magoada, provavelmente para o resto da vida !
E é triste, mas abandona-se frequentemente a mesa de diálogo, porque conclui-se que as palavras, as frases, as ideias, os sentimentos que tão importantes foram, esvaziaram-se, perderam o significado, deixaram de ser inteligíveis pelas partes.
E por defesa ... desiste-se.

E se isto ocorre, infelizmente com demasiada frequência, nas relações próximas, se ocorre entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos, entre amores ... com pessoas entre as quais coexistiam laços afectivos e familiares muito, muito fortes ... que esperaremos então da comunicação entre povos, nações, gente anónima ?!

Por isso, cada vez mais, o diálogo de surdos criado, não leva a lado nenhum, a tentativa de entendimento, de acordo, de debate ... de paz ... é desperdiçada, esgotada e finalmente abandonada...

O ser humano parece ensurdecer, cegar, incapacitar-se ... parece de repente desconhecer, ignorar, afastar, desvalorizar o seu interlocutor  ... e a comunicação talvez privilegiada antanho, deixa de o ser.
E daí em diante, serão seguramente desconhecidos e mais estranhos ainda, aqueles que ora se encaram !... 

Anamar   

terça-feira, 28 de agosto de 2018

" PINGOS "





O Verão está a ir.  Chegámos  à  "rentrée".  A estação vira, os dias estão a amanhecer nublados e mais frescos com alguns pingos esparsos, de surpresa.
O Outono espreita ... ainda longe, mas espreita.
São dias estranhos, nostálgicos, estes ... São dias de fim e recomeço ... para os que recomeçam. Quando recomeçam ...

As aulas da miudagem anunciam-se já já, na próxima semana.
A luminosidade dourada, doce e espreguiçada do Verão, dos dias sem horas ou compromissos, já foi.

Costumava ser um tempo de azáfama.  Havia no ar, aquela urgência "de fazer cócegas"... Compra de livros e material escolar, chegada dos novos horários e consequentes ajustes nas rotinas.
Ansiávamos o reinício, lamentávamos o fim do lazer ... numa contradição típica do ser humano.
Reviam-se os locais e as pessoas, falava-se das férias ora terminadas, planificava-se a vida. Porque havia uma vida futura já a seguir.
Agora, alguns anos volvidos, os tempos têm rostos descaracterizados e existe um vazio instalado. Desconfortável e silente.
Parece que terminámos uma faxina, que arrumámos tudo nos lugares, parece que de repente, a nossa "casa" da alma ficou devoluta, sem préstimo ... Não somos mais precisos, e pronto, não temos mais nada por fazer.
A não ser ir estando por aqui ... pegando Verão com Inverno, Primavera com Outono, sem grandes metas ou fasquias. Num recolhimento meio agradável,  meio estranho ... melancólico seguramente ...

Hoje, as memórias caem-me no colo.
São memórias de pessoas, de locais, de momentos.  Memórias de instantes vividos, de palavras ditas, de sorrisos trocados ... memórias de afectos.
Todos...todos os afectos que fizeram história na minha vida.  Porque se eu amei alguém, algum lugar, se acalentei um sonho bom por um instante que fosse ... esse alguém, esse lugar, esse sonho ficarão comigo ao longo da minha existência ... sempre !

Hoje, apetece-me o silêncio de um areal vazio.  Apetece-me a voz da brisa passante pelo meu rosto.  Apetece-me o grasnar ocioso das aves marinhas rasantes da babugem.
Hoje, apetece-me um colo que eu queira.   Apetece-me a conversa jogada fora, nos córregos desenhados pelas encostas das ravinas.
Hoje, apetece-me a paz das clareiras verdes da mata e a música orquestrada do regato que corre.  Apetece-me tão somente a voz dos pássaros empoleirados nas ramagens, ou o sussurrar leve do besouro que se faz à flor oferecida ...
Hoje, tenho saudades não sei do quê, porquê, de tudo e de nada, talvez.
E talvez só tenha mesmo, saudades de mim ... De me achar, algures por aí... de me encontrar pelas esquinas dobradas, pelas ruas pisadas ... nas praias desertas ...
Ou apenas rever-me no tempo em que me empoleirava nas nuvens, amarinhava ao arco-íris, namorava a lua cheia e dormia abraçada ao sol, quando ele partia e dormia também na cama das estrelas ...
Hoje, a cor do dia é a minha cor.
O betão que me cerca sufoca ainda mais o ar precário que respiro.  O cinzento lá fora convida ao recolhimento aqui dentro.  E dormiria, se não tivesse que acordar ...
Os pingos de chuva, grossos e generosos que já caíram, chamam ao reencontro com a Natureza, na época em que ela se prepara para a dormência gostosa da estação da letargia e do silêncio, que se aproxima ...
Nem Énya consegue levar-me aos limites celestiais da sua voz cristalina ...

Aqui, hoje, não se operam mesmo milagres ...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2018

" PRAIA DAS MAÇÃS - curiosidades "


 
                                    "Praia das Maçãs" -  José Malhoa  ( 1918 )

Estive bem pertinho da Praia das Maçãs, local que por muitas razões me é particularmente querido.
Realizava-se hoje a procissão anual em honra de Nª. Senhora da Praia, com a pompa e circunstância que lhe é inerente, segundo me informaram.
Pasmo, como já decorreu um ano desde que, no Agosto passado, escrevi aqui neste meu espaço, um texto a propósito.  O tempo, efectivamente é inalcançável !

Pois hoje, de novo, a Senhora foi a banhos, como eu referia há um ano atrás, tentando descrever para os que não conhecem, tal efeméride, mantendo-se a tradição local das gentes destas paragens.
Não vou portanto repetir aquilo que recheou o meu post de 2017.

Vou antes abordar aqui, algumas referências históricas ligadas a esta estância balnear, composta por praia e povoação epónima, da freguesia de Colares do Município de Sintra, que reporto de bem curiosas.
Foi e é a Praia das Maçãs eternizada por vários motivos.
Além de ser zona arqueológica de notoriedade assinalável  e reconhecida, de que também já falei em posts anteriores, ela está indelevelmente associada a uma figura incontornável na área cultural portuguesa, no domínio da pintura : José Malhoa.

Fazendo parte do primeiro aglomerado da Praia das Maçãs, denominada ao tempo de Villa Nova da Praia das Maçãs, o chalet Villa Guida, a casa do sacerdote António Matias del Campo ( um dos primeiros habitantes da Praia ) e a capelinha de Nossa Senhora da Praia construída por Alfredo Keil em 1889, também a Taberna de Manuel Prego, é  um marco histórico muito interessante.
Construída por Manuel Dias Prego, há muito que desapareceu, existindo hoje nesse local um edifício moderno de vista para a praia ( Rua de Nossa Senhora da Praia ).
Terá sido exactamente nesse local que Malhoa pintou em 1918 o seu famoso quadro "Praia das Maçãs", hoje espólio do Museu do Chiado em Lisboa.

Decorre de informação local, que onde se erigia a Taberna de Manuel Prego, foi posteriormente construído o edifício onde veio a funcionar o Hotel Royal, exactamente a meio da rua que acompanha lateralmente o areal da Praia das Maçãs.
Também no acervo da Câmara Municipal de Sintra existem fotos onde, por cima da porta da Taberna se pode ver inscrita a data de 1889, contemporânea da construção da Villa Guida e da casa do Padre António Matias del Campo, como referi.

Ao que parece, o negócio do Prego era florescente à época, a ponto do mesmo ocupar um terreno adjacente, baldio, com mesas e bancos, que foi coberto, para o sombrear, com o caramanchão  patente no quadro de Malhoa.
Viria a solicitar licença para utilização desse terreno, o que veio a verificar-se posteriormente, dado que o mesmo pertencia à edilidade.
Antes da construção da Taberna em tijolo, sabe-se contudo, que já Manuel Prego detinha uma construção mais rudimentar, na praia, onde exercia o seu negócio.
Existe  um testemunho disso mesmo, num artigo publicado a 7 de Junho de 1896 no jornal "Correio de Sintra", onde se pode ler :

" Não há memória de nunca ter arribado à Praia das Maçãs ( Colares ), barco pequeno ou grande, com o mar manso ou bravo ;  pois arribou no dia 28 ( Maio ? ) um barquito remado por uns intrépidos rapazes d'Arosa, soltando um em terra para fornecer-se dumas garrafitas de vinho em casa do Prego ! "

Enfim, memórias idas, lembradas hoje, duma forma gratificante, quando uma outra vez a Praia das Maçãs se adornou para receber condignamente a passagem da sua padroeira, pelas ruas do povoado até à praia.
As pétalas das flores sempre tombam dos céus, o sol sempre brilha no firmamento, os andores, a irmandade, o povo anónimo desceram à rua ... a música, os cânticos e as rezas voltaram a ecoar no azul transparente de mais um quente dia de Verão ...

Só Manuel Prego e a sua tasca não existem mais ... Keil, também não ... e Malhoa, se por aqui estivesse, imortalizaria uma vez mais, sob a frescura do caramanchão, frente a um copo de Colares, a passagem da procissão da Senhora da Praia ... tenho a certeza !...


Nota :  Documentação recolhida em textos afins provenientes de várias fontes, na Internet.

Anamar

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

" P'RA SEMPRE ... "




" P'ra sempre" é tempo demais ...

Ao longo das nossas vidas vamos conhecendo tantos "p'ra sempres" que arrepia.
Há contudo aqueles que desejamos não venha a ser bem assim, depois há aqueles p'ra sempres que quereríamos que fosse exactamente assim, e os outros, que sabemos serem inevitavelmente assim !

Ontem esbarrei-me num deles, hoje num outro, sendo que sou escolada em tantos outros pelos quais lutaria de bom grado, com a força e com a alma para que o fossem mesmo ... até ao fim dos meus dias.
Estes, são os p'ra sempres de felicidade, de paz, de alegria, de fé e esperança na concretização dos sonhos sonhados.
São estes que nos levam a querer amar para sempre, a crer em futuros para sempre, a ter força para nos erguermos por cada manhã que nasce, sentindo que vale a pena continuar a seguir os trilhos ... por mais áspero que seja o caminho ...
São "p'ra sempres" abençoados, porque são bálsamos e não martírios ...

Há depois situações nas nossas vidas que se mostram irresolúveis, incompreensivelmente insolúveis.
Situações inexplicáveis muitas vezes, que desembocam em becos sem saída e resvalam a olhos vistos para "p'ra sempres" que não desejaríamos, que nos destroem, que nos mortificam progressivamente, que nos matam ...
E que suspeitamos vir a carregar inevitavelmente, além mesmo do nosso fim.
São "p'ra sempres" dolorosos, que como uma doença incurável vão minando, vão incapacitando, vão destruindo as linguagens, os laços, criando muros em vez de pontes, lançando em fossos escuros e fétidos o essencial, na valorização do acessório ... Em suma, colocando-nos costas com costas !...

E as pessoas vão-se insensibilizando, endurecendo, sangrando da dureza dos golpes, de uma forma contra-natura mesmo ... mortalmente feridas, inevitável, irremediavelmente estranhas ... para sempre !
Sem sentido, sem lógica, sem razão, quase sempre ... num absurdo e numa teimosia autista, que levará ao tarde de mais ... quando acordarmos ...
Contudo, não conseguimos encontrar a fórmula mágica, de bom senso, de bonomia, de razoabilidade, de amor, que pacificasse o turbilhão que nos assalta o coração e a alma... que revertesse esse "p'ra sempre", num "p'ra sempre" de esperança e paz ...
Seguramente não quereríamos que esses "p'ra sempres" maculassem as nossas vidas...

Finalmente, e sem remédio, há os "p'ra sempres" definitivos.  Aqueles  que,  como  numa  curva  cega de  estrada  sem  retorno, nos  confrontam  com  finais  que  o  tempo e  a  existência  ditaram ...

Entrei naquela casa no Verão de 63.  A vida fez-se ... foi-se fazendo, episódio a episódio, escrita pela pena dos destinos de cada um ...
Hoje foi o dia de a deixar, com um vazio mortal dentro de mim. Foi o dia de percorrer uma e outra vez, divisão a divisão, visualizando por cada uma o filme das histórias que ali foram vividas.
Olhar as paredes vazias, os espaços devolutos e reerguer e arrumar de novo os móveis, reabilitar as cortinas, rependurar os quadros.
Foi a vez de escutar no silêncio, de novo, as batidas do relógio de pêndulo que preguiçava na parede.
Foi o momento de olhar o meu pai, ainda sentado no sofá, a ler o Diário de Lisboa, de sentir o eco da correria das miúdas em torno da mesa, no assalto às iguarias do frigorífico ...
Foi a vez de rever a minha mãe no lugar de sempre, a fazer o ponto cruz interminável, com o Gaspar aos pés ... companheiro de todas as horas.  "Só lhe falta falar" ...
Ou de a ouvir, na janela das traseiras ... "até amanhã ... boas aulas !..." ... afastando a roupa dependurada no estendal, para que a vista me alcançasse até que eu desaparecesse na esquina ...

Pedaços e pedaços de mim, ficaram lá, hoje, neste meu perambular sem rumo, neste meu regresso ao passado, ao ontem, num retorno a um "nunca mais" sem remédio ou solução...
Deram-me o privilégio doído de ser eu a fechar a porta, pela última vez ... antes de passar para outras mãos as chaves que detivemos por cinquenta e quatro anos ... e que "nunca mais" farão parte da nossa "estória" !...

Para sempre e nunca mais são, de facto,  tempo demais para a curta existência humana !...

Anamar

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

" PORQUE HOJE É O DIA ... "





Hoje é "aquele dia" !...
O Kiko, o puto mais novo dos meus três primeiros netos, aniversaria.  Como epílogo daquela odisseia que já referi vezes sem conta, de ter três nascidos neste famigerado mês de Agosto, abrangendo mãe e dois dos filhos, o Kiko fez-se à pista, há exactamente 11 anos.
Era um dia tão quente quanto hoje e vejo-me sentada na sala de espera do hospital, plena hora de almoço, à espera que o rapaz se resolvesse .
Resolveu-se para felicidade de todos, pois este menino é, de facto, uma bênção nas nossas vidas.

Já falei tanto dele que não é possível ter um pingo de originalidade naquilo que possa escrever ...

Se o quiséssemos definir, diríamos que já nasceu a sorrir, que já trazia no coração um saco repleto de doçura, que a boa disposição, a alegria e a meiguice, são a sua imagem de marca.
O Kiko vive rodeado de uma infinitude de amigos.  De crianças a adultos, toda a gente adopta o Kiko ... simplesmente porque o Kiko adopta afinal toda a gente.
É um miúdo safo, extrovertido ... totalmente desenrascado !  Stress é palavra que não conhece, em nenhuma circunstância !...
É o que na escola resolve todas as questões que lhe surgem, sem perturbações.  O que sem nenhuma ajuda em casa, enfrenta os desafios que se lhe apresentam, enfim ... a autonomia também faz parte da sua personalidade.
É disponível, generoso e solidário.
Aprendeu desde sempre, que a partilha, a divisão de tarefas, a entreajuda, são sinónimo de uma vida mais equilibrada, simples e feliz.
Fechou o pelotão dos três. Nasceu mais solto, desinibido, descarado e com um diabrete à solta dentro de si.

Longe fisicamente, telefonei-lhe há pouco, para o felicitar.
Não posso dar-lhe hoje, nem receber dele aquele abracinho doce com que me envolve quando nos vemos ...
Perguntei-lhe então, como se sentia com tanta idade ... Gargalhou ... simplesmente ...

Esse é o Kiko, o meu "menino light" !...

Por isso, Kiko, desejo-te um dia supimpa, ainda mais cheio de emoções fortes, peripécias giras e boa disposição, como são todos aqueles em que estás por perto !
Aqui de longe envio-te beijinhos com todo o meu amor ... e não esqueças de guardar uma fatia de bolo p'ra mim, que sou "aquela coisa" ... tu sabes ! 😄😄💕




Anamar

domingo, 19 de agosto de 2018

" DICOTOMIA "





"  O amor eterno é o amor impossível.
Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam "

                                        Eça de Queiroz

Dei-me com esta frase do Eça, algures ...

Li, reli, parei para reavaliar ... reflecti ... fiz rewinds na vida e concluí da certitude da mesma.
Eça, objectivo, pragmático, conciso, experiente e sabedor sabe do que fala.  Revela-se afinal, um profundo conhecedor da alma humana !

Aparentemente pareceria um contrassenso.  Afinal, o Homem, ao longo da vida, debate-se, em vão,  pelo alcance inatingível de um amor eterno.  Sofre porque o não tem, sonha tê-lo, porque tendo-o estaria completo e eternamente feliz, acredita piamente.
E digladia-se com uma infelicidade atroz, porque na sua vida afectiva parece haver uma impossibilidade em agarrá-lo.  Uma incapacidade mesmo, em pressenti-lo.
Na verdade, nada há de mais certo na existência do ser humano, que a impermanência de tudo o que o rodeia.  Nada há de mais real que a incerteza das metas atingidas.  Tudo é precário, incerto, duvidoso, inseguro ... sempre.
Só que essa realidade se configura  num estímulo e desafio para a mente humana, é mesmo essa insegurança, insatisfação e inalcance que acrescentam a pitada de tempero, adrenalina e sabor aos amores ditos "impossíveis" !
E assim, estes, sem solução possível, amores improváveis, se tornam nos amores verdadeiros, amores de valer a pena, amores sem bafio, amores com cores flamejantes, sempre novos e dispostos.
Eles redescobrem-se por cada dia, reinventam-se em novas roupagens, eles não se entediam, são desejados a cada momento como amores acabadinhos de nascer.
São eles que aceleram as batidas do coração, tiram o fôlego, nos conduzem à gaiatice dos tempos da ingenuidade, do sonho e da fantasia.

Os outros ... aqueles que afinal conhecemos, acabamos experienciando e vivendo, aqueles que nos foram desafios aureolados de todas as virtudes, adequações, enquadramentos e soluções dos nossos desequilíbrios afectivos, não passam de amores corriqueiros, amores sem sobressaltos, amores "chapa três" ... trôpegas tentativas de desenhar o mundo, soluções  de  vida  em  tosco,  irrespirável  e  desesperado  esboço  do  avistamento  da  felicidade !...
Em suma ... amores possíveis e moribundos desde o primeiro instante !...

Afinal o Homem sempre quer o que não tem e mata o que tem.  Sempre busca o sol, apagando para isso, as estrelas no firmamento !
A utopia e a incoerência fazem parte da nossa alma imperfeita e insatisfeita, alma em turbulência e inquietude.

Ainda assim ... deixem-me com os amores impossíveis, pois seguramente sempre serão " eternos e infinitos  enquanto durarem !..."

Anamar

" ESTAR FELIZ ... "





" Você é aquilo que ninguém vê
Uma colecção de histórias,
memórias, dores, tragédias,
sucessos, desaires, sentimentos e pensamentos.
Definir-se é limitar-se.
Você é um eterno parêntesis em aberto,
enquanto a sua eternidade durar "

                                               Machado de Assis


Tarde insuportável de calor, neste Agosto que continuou um Julho metereologicamente meio atípico.
Presenteou-nos sim, e Agosto também, com tormentas semeando perdas e desgostos.
Os fogos em escala dantesca voltaram a grassar  aqui e lá fora, as intempéries, as cheias, os sismos ... as temperaturas impensáveis derretendo calotes polares, tudo quanto foi anormal de se viver, se tem vivido, numa Natureza que pisca incessantemente o semáforo vermelho a gente incrédula que acha que talvez ainda não seja bem assim ...
O falado "ponto de retorno" a atingir-se a passos largos, e o Homem, cego, surdo e mudo !...

Tenho vindo aqui pouco.
Desta feita, falta de tempo mesmo.  Falta de "assento" como costumo dizer, têm-mo impedido.
Mas sem esta catarse necessária, não sou bem eu. Sinto-me esportulada de uma parte de mim.  Incompleta.  Inquieta.
A razão ?  Várias, sendo que o términus do desfazer da casa dos meus pais, seguindo-se de uma sanha meio alucinada de radicalmente por a minha também mais organizada, são os motivos principais.
De quando em vez parece eclodir-nos uma urgência absoluta de "limpeza", arrumação, faxina inadiável, numa busca de renovação, alteração e mudança ... como se com esse desiderato, a verdadeira renovação, o verdadeiro retirar do balofo, a verdadeira assepsia alcançasse, visasse  especialmente, o nosso eu interior, cansado, bafiento, desencantado, rotinado de mais ... cinzento !...
São as fases de dobragem de esquinas.  De busca de caminhos airosos, verdejantes e floridos !...

Nesse espírito deitei mãos à obra, procurando que, junto com o supérfluo, o desnecessário, o excedente cansativo e oneroso, também fossem os meus sentimentos mais negativos e pesados, o meu desconforto, a desesperança que teima em instalar-se vezes de mais, a aparente ausência de horizontes ... Fi-lo sem demais preocupações, interrogações, dúvidas angustiantes, ansiedades ... medos ...
Procurei alienar as incertezas, as apreensões doentias, as definições demasiado enquadradas e previsíveis, que coartam, espartilham, fecham os túneis do acreditar, a graça da surpresa ... e simplesmente deixei-me ir vivendo, um dia depois do outro, saboreando cada momento.  Os de paz e felicidade, os menos auspiciosos e escuros ... os sonhados e os que me caem na almofada por cada manhã em que acordo ... só porque valem a pena ser vividos, e eu continuo viva por aqui !

A vida afinal é tudo isso.  É este mix de "colecção de histórias, memórias, dores, tragédias,
sucessos e desaires, sentimentos e pensamentos" ... na busca da nossa essência, na procura do que fomos, do que somos, por que o fomos ... por que o somos ... sem nos enjeitarmos, sem nos repudiarmos, sem sermos excessivos algozes das nossas imperfeições, acreditando sempre !
Sem buscarmos definições "essencialmente correctas" e censuradas do que talvez esperem de nós, bastando-nos que nos encaixemos no que nos realiza e faz feliz, com uma auto-aceitação e bonomia de paz, tranquilidade e equilíbrio ...

Não busco de facto, figurinos, sequer me preocupo com juízos excessivos ... Cada vez menos o faço.  Vivo, simplesmente com a coerência que consigo, nunca abdicando de sonhar ... mantendo-me um  " parêntesis em aberto enquanto a minha eternidade durar " ... e procuro "estar feliz" ... não, "ser feliz", porque isso, não existe !...

Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

" NADA MAIS ... "



Como é difícil remexer no passado !
Como é complicado entreabrir frestas nas janelas das nossas vidas !...
Como é penoso enfrentar as  arcas dos tempos ... quando achamos que elas estavam seladas "ad eternum " !...

Penso que talvez tudo se prenda simplesmente, ao facto de através disso nos revermos lá atrás, nos reencontrarmos nas esquinas dos destinos, outra vez.
Ou simultaneamente, pela nostalgia de nos parecer, ilusoriamente, recuperar o que fomos, a juventude que se esfumou, os sonhos que construímos.  Em suma, um confronto imposto, conosco mesmos.
E normalmente a distanciação sempre é implacável e mostra-nos sem dó nem piedade, os erros então cometidos, as omissões de que não nos demos conta, o desperdício dos momentos que não usufruímos em pleno.
E como um filme visto num écran longínquo, tudo aquilo é e não é nosso.  Os protagonistas são, mas não são os que foram ... e as imagens desenrolam-se-nos com perda de qualidade, numa dimensão que nada tem a ver já, com a "alta definição" com que foram colhidas ... Como se as visualizássemos por entremeio de neblina ...

Cai-se então numa dolência doída, porque o tempo ... ai o tempo, mostra bem quem na verdade manda !

E gera-se um misto de sentires, de emoções, de memórias que desfilam e não se controlam.  Um misto de desejos e vontades gostosas que se atropelam, desafiantes ...
São diabinhos à solta que injustamente nos atormentam o coração e a alma, e vemo-nos à mesa do café, frente a frente com pedaços de estórias que pertencem afinal à nossa história e por nós foram escritos.
E como num cadinho de reacção adormecida, de repente, tudo se incendeia à revelia e sem respeito !...
Como num mar que era de maré baixa ... tudo se altera e galopa sobre os rochedos, indómito e alteroso ... ameaçador, numa avalanche sem tamanho ou contenção !...
Como numa dormência gostosa interrompida abruptamente, o sono agita-se, o corpo convulsiona-se e o desconforto instala-se !...

Porque também há a paz da monotonia, da rotina ... do instituído.  Do assimilado e incorporado.
A  paz  do  silêncio  dos  tempos.  A  paz  do  que  há  muito  jaz  numa  curva  da  estrada ... Intocado !
E se essa paz balançar, um conflito emocional abate-se e sacode-nos, como se a terra tremesse ou a onda aterradora a galgasse, inevitavelmente desprotegida e impotente ... mostrando-nos a precariedade do esquecimento das coisas.
A fragilidade dos fiapos de vida, urdidos e julgados arquivados na poeira da existência ... era isso mesmo ... uma fragilidade a sucumbir ! Apenas ...

Só que ... após o abanão que experimentámos, tudo se retoma.  A realidade da vida que se faz todos os dias repõe o figurino, indiferente, outra vez ... A perturbação conserta-se ...
Acordamos ... de novo, para o aqui e agora ...

E foi só isso mesmo ... uma fresta que se abriu na janela do destino, a tampa de uma arca que indiscretamente deixou à vista o conteúdo religiosamente guardado, como um tesouro que houvesse sido violado por momentos ...
Só isso mesmo ... e nada mais !

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

" POR QUE RAIO TIVEMOS QUE CRESCER ??!! "


Estranhíssimo este sol que se põe lá ao fundo, num céu pesado, sem nuvens, mas longe de ser límpido.
Aliás, mostra-se com um semblante esfumado que lembra aquele céu de incêndios.
Entretanto  a  "fogueira"  acende-se  por  todo  o  país,  com  as  temperaturas  a  roçarem os 46 ºC ...

Todos ficamos imprestáveis, neste ar irrespirável.  O cansaço toma-nos conta e nem as ventoínhas nem os duches frios sucessivos, aplacam esta sensação de desconforto.
As noites não refrescam, não se dorme, e erguemo-nos na manhã seguinte, totalmente partidos, espapaçados, como se tivéssemos sido açoitados durante a noite.  Mais cansados ainda do que antes de dormir ... como se isso fosse possível !
Sonha-se com uma sombra fresca, sofre-se à míngua de uma aragem ...

Os animais sofrem também ... e muito !  Os meus gatos, sobretudo o que transporta às costas um manto invejável de pelo, não encontra poiso, arrasta-se pelo chão de mármore, dorme na frescura possível do poliban e estica-se indiferente a tudo, parecendo moribundo na apatia que ostenta.
Tenta resistir ... como todos nós !
Entretanto, nas notícias, fomos confrontados com uma tempestade que se abateu ontem ao fim da tarde, sobre certas zonas do Algarve.  Intempestivamente ! Imprevisivelmente !

Temos o planeta em desnorte total.  Assustadoramente a sofrer desmandos da Natureza, que vão afectando de forma acentuada, os seres vivos que lhes ficam à mercê ...

Talvez devido a tudo isto também, me sinta demasiado cansada.  Este calor mata-me, definitivamente !

O tempo está como a vida ... tudo incerto, tudo imprevisto, tudo anormal ... tudo meio louco !
Na minha meninice e juventude, tanto quanto lembro, as coisas tinham nomes ... Primavera era Primavera, Verão chegava na hora certa e tinha a cara do costume ... o Inverno sempre nos trazia o friozinho gostoso, a convidar a gorros luvas e cachecóis, o fumo das castanhas assadas a soltar-se dos carrinhos e as alamedas dos jardins, totalmente forradas com as folhas molhadas, que já eram ...
E por aí adiante.
Por isso sempre sabíamos com o que contar, sem demais surpresas ou ansiedades.  Acho que os dias corriam mais ou menos mansos, sem outros sobressaltos.
Os dias viviam-se ao ritmo dos dias.  O hoje era  vivido hoje, sem pressas ou ansiedades, o ontem ainda não deixava aquelas marcas mortais que nunca mais se apagam ... e o amanhã, sempre nos aparecia como uma rosa fresca que desabrochasse ao romper da alvorada ... doce, sorridente, cheia de promessas ...
Os amores eram generosos, embaladores e leves.
Viviam-se e sorviam-se ao sabor do sonho.  Em jeito de presente de laço e fita, deixado nos sapatinhos da nossa imaginação, nos tempos em que era Natal todos os dias ...
As imagens das nossas histórias eram sempre coloridas ... porque eram exactamente isso ... imagens das nossas histórias ...
E estas sempre tinham finais felizes ...
A vida tinha muito do açúcar e do arroz doce com que as avós e as mães nos resgatavam dos pequenos desgostinhos ...
Não havia despedidas, nem perdas, nem separações.
Tudo parecia ser para sempre, simples, certo, sem as complicações da gente grande ...
E quando as lágrimas desciam ... porque às vezes também acontecia ... era garantido, que dormida a cabeça no travesseiro, a madrugada era azul  à certa, enfeitada de arco-íris, estrelas esfregando os olhos de ensonadas, e cantos dos pássaros da alvorada ...

E assim se fazia a vida ... com a ingenuidade e a bonomia dos anos que então tínhamos !...
Mal sabíamos da turbulência que nos esperaria a muitos mil pés de altitude ... mal imaginávamos da tormenta de mar alteroso que se iria encapelar diante de nós ...

Afinal ... por que raio tivemos que crescer ??!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

" NÃO PODERIA SER INDOLOR ... "






Tempos loucos estes, que o planeta atravessa, e com ele, nós todos, perguntando-nos porquê?
Por que estaremos todos, de uma forma absurda e irracional, a pagar uma factura desmedida do que não fizemos?
Por que razão continua esta Terra a ser regida por loucos e irresponsáveis, que colocam exclusivamente interesses materiais, pessoais e outros, escusos e inomináveis, em relação aos quais, o cidadão comum é total e irremediavelmente impotente ?!

É que atravessamos em Portugal, país de clima mediterrânico e temperado, generoso e abençoado por excelência, temperaturas que subiram em muitos lugares a valores da ordem dos 45ºC !...
O ar é irrespirável, a insalubridade deste estado de coisas restringe a capacidade de se  levar a vida adiante com o mínimo de normalidade, já que nada disto é normal ...
Não nos mexemos.  Arrastamo-nos.
O torpor sonolento que nos invade, reduz aos mínimos toda a actividade.  Não temos parança em lugar nenhum, já que em todos se sufoca.
E por essa Europa fora,  tudo se passa mais ou menos da mesma forma.  Temperaturas igualmente absurdas em locais que não as experienciam nunca. Gelos em fusão nos pólos.  Avalanches, cheias e furacões inesperados.  Fogos devastadores e incontroláveis, semeando desgraça e dor ...
Em suma, um planeta a morrer às mãos dos seus próprios habitantes ... muito antes do que os estudos científicos vaticinavam ... Muito antes dos alucinados imbecis à solta, perceberem que nada disto é ficção científica, infelizmente ! ...
Não é de loucos ?!

Eu estou em "modo hibernação" ... a bem dizer.
Redução de toda a entropia aos mínimos, para poupança de energia.
Os miolos a funcionarem p'raí a cinquenta por cento, só.  Uma "lanzeira" que só vista !...
Resolvi, ainda assim, levar a cabo tarefas de arrumação que urgiam ... Parece-me auto-flagelo ... será ?!
Com o encerramento da casa dos meus pais, com a dissolução do seu recheio para que a mesma possa ser entregue à proprietária, uma infinitude de coisas inalienáveis, "caíu" na minha, já de si cheia que nem um ovo.
Um verdadeiro drama, olhar para tudo aquilo e ser incapaz de definir prioridades.  Uma angústia dos infernos, decidir o que ascende ainda assim a espaços nobres na minha casa, o que "ascende", na verdadeira acepção da palavra, à arrecadação no terraço do prédio ... ou o que descende directo ao contentor do lixo ...
Um drama, até conseguir consensos de alma !...

E num misto de angústia, irritação e  impotência, culminadas por uma sanha de "para grandes males, grandes remédios" ... na busca desesperada de soluções de espaços ... resolvi tomar uma opção irrevogável que fora adiada anos e anos, na espera de melhores dias, paciência e complacência, que haveria um dia de chegar ... eu achava. 
Assim, resolvi enfrentar com determinação e coragem, todo o espólio a que fizera largos anos " olhos de carneiro mal morto" ... os dossiers, as pastas com a preparação de aulas, os infinitos testes de avaliação varrendo todos os curricula, as micas para retroprojecção, as fichas de revisão de matérias dadas, esquemas e mais esquemas em acetato, na busca da simplificação e da clareza ... em suma ... toda a história da minha vida profissional, as centenas e centenas de páginas, manuscritas, impressas, fotocopiadas ... num ápice repousaram no "papelão" mais próximo de casa ...
Inapelavelmente ... numa tentativa de operação indolor ... num esforço de distanciamento e relativização das coisas ... despojando-as, como ando a treinar o meu coração e a mente há alguns meses, de emoções, de afectos, de nostalgias e mágoas ... despindo-as de todo um conteúdo imbuído de sentimentos e memórias ...

E assim, a frio ... apesar dos 42ºC lá fora ... consegui dar descanso eterno a toda uma "vida" ... a minha, que se estendeu a bem mais de trinta anos de história ...

Esvaziei o armário, arranjei espaço devoluto ... limpei o "lixo" adiado ... quilos e quilos de Química e de Física , metros e metros de informação e trabalho ... toneladas de esperança, sonho e aposta ... juventude, dedicação, entrega e esforço ...

E esvaziei-me por dentro ... também ...
Nunca supus que doesse tanto !...

Anamar

" TEMPOS ... "




Há um tempo para tudo, na vida.
Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir.

Acredito verdadeiramente nisto.  Sinto exactamente isto.
E acho que efectivamente o ser humano é tão insignificante nesta imensidão onde um dia germinou, que é inócuo o seu estar e o seu ir.
Percebo cada vez mais a precariedade da existência e a insignificância do grão de areia que somos, na engrenagem gigante a que pertencemos.

Com a partida da minha mãe, com a ausência da sua figura física nos meus dias, consciencializo mais e mais estas verdades.
Dizem que o tempo resolve e que a terra esbate as faltas.  Penso que simplesmente nos habituamos a novas realidades, a novos contextos para a nossa vida.
A saudade é imensa, mas é uma saudade da minha mãe de toda a vida e não da minha mãe dos últimos anos.
Essa, foi uma figura estranha e desconhecida que aconteceu, de que tive que cuidar, que tive que amar, proteger e ajudar.
Essa, foi alguém que conduzi pela mão no trilho árido e agreste que foram os seus últimos longos dias, em passos titubeantes, cada vez mais imprecisos e incertos.
Essa, foi uma personagem que a vida, injustamente foi arrastando e arrastou tempo de mais, com um sofrimento que parecia cirúrgica e ironicamente escolhido, com uma forma que diríamos, desumana, maquiavélica, usurpando-a dia a dia, crescentemente, das capacidades que faziam e sempre fizeram dela, uma grande mulher !
Como uma folha morta largada na correnteza, o destino foi-a jogando sem rumo ou norte, impiedosamente, contra as penedias do leito, numa maldade sem tamanho !...

Já aqui referi vezes sem conta, em muitos posts que fui escrevendo em jeito de alívio, neste calvário dos últimos quatro anos, que  a começar pela dependência móbil que a confinou a uma cadeira de rodas, à degeneração mental progressiva que a afastou totalmente de nós e de toda a realidade circundante ... o ser humano que ela foi, tornou-se numa figura patética, irreconhecível e dolorosamente triste.
A mãe, a minha mãe que eu adorei por toda uma vida, filha única que fui, com uma dedicação e um amor extremos talvez por isso mesmo, esfumou-se no espaço e no tempo ... e partiu ... finalmente em paz !

E estranhamente, ou talvez não, foi paz que eu senti exactamente, desde então.

E quando, em conversa, um amigo me dizia noutro dia, pensar que eu levaria mais tempo a recuperar-me do choque da sua partida ... eu reflecti sobre a frase, e entendi-me claramente...
É que há um tempo para tudo, na vida.  Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir ...

E a minha mãe esgotara seguramente o "seu tempo" por aqui ...

Anamar