sábado, 9 de novembro de 2019

" VOU "




Mais um Novembro no calendário.
Nasci nele e no entanto é um mês que me atormenta um pouco.  Transmite-me um misto de emoções difíceis de descrever.  Vira-me p'ra dentro de mim mesma, recolhe-me às cinco da tarde, como o dia que se encerra ...
E fala-me, fala-me de tempo e de passados.  Que coisa chata !
Novembro tem datas e memórias que saltam da profundidade do existir e escarafuncham-me a alma. Ainda que eu não queira.
Plantam-se-me na cabeceira como um vaso de cardos a atormentarem-me o sono.
Como uma mosca impertinente e invasiva, Novembro não respeita o aqui e o agora. Sendo que o aqui e o agora é o que vem depois do existir, em tempos que foram meus ...
Agora tudo parece demasiado impessoal e distante ...
Há escorrências do coração que não se estancam.  E quando nos pensamos apaziguados ... não é nada disso.
Novembro tem datas demais !
Novembro  tem  as  saudades  que  tombam, tantas  como  as  folhas  do  Outono  que  o aninham ...

E vou embora.  De novo vou buscar lá fora, longe das rotinas das coisas e das pessoas, num anonimato ou clandestinidade cómodos, uma tranquilidade e um distanciamento que os lugares e as memórias me não permitem por aqui.
Esta demarcação temporal dos anos, neste corrupio vertiginoso sem parança, lembra-me a cada momento da efemeridade da condição humana.  A celeridade com que os meses nos desfilam no calendário, a precariedade de certezas e seguranças, fazem-nos sentir a cada momento, com uma fragilidade sem tamanho, como se caminhássemos em arame sem rede protectora.
E a passagem dos anos, e as limitações que acarretam em termos de saúde física e mental, consciencializam-nos para a certeza de que os prazos de validade se nos escoam por entre os dedos, e  de que estamos mesmo a cumprir simplesmente um ritual de passagem ...

Vou p'ra outro mundo, outras civilizações, outras gentes e outros costumes.  Vou lá para os lados onde o sol nasce, onde os cheiros dos trópicos e o calor de dias com outras cores, nos afagam a alma.
Vou para uma terra com palavras que não conheço, com sabores que desconheço e com um desapego e uma espiritualidade que sempre me tocam.
Vou buscar silêncios ... talvez.  Vou buscar ecos nesses silêncios.  Vou ao encontro da genuinidade dentro da simplicidade.
Vou recarregar a alma, no conforto do reencontro comigo mesma, imergindo em multidões de seres.
Vou olhar as cores, beber a brisa adocicada das terras quentes, afundar a alma no azul transparente de águas mansas e escutar os sons.
Vou ... porque há tanto mundo a conhecer por aí ... e eu só tenho uma vida.  Uma vida curta, mas uma ânsia desmedida !...
Vou ... talvez simplesmente, em busca de mim mesma !...

Anamar

domingo, 3 de novembro de 2019

" A LENDA DE SANTO ANDRÉ "



É Dia de Todos os Santos.  Todos menos um ... dizia a minha mãe.

A minha mãe dizia muitas coisas.  Aliás, costumava dizer : " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim, por causa destas coisas que eu digo ..."
Não as registei. Achava que a memória não iria atraiçoar-me nunca, e que de todas eu lembraria.  Eram histórias, ditados, vivências passadas ao longo dos tempos.  Era um repositório da sua sabedoria de velha, mulher simples, que contava como era, o que era ...
Eram histórias de vida, da sua vida, mas também das tradições e da cultura do povo a que pertencia, lá, no Alentejo interior ...

Mas o tempo ... sempre o tempo se encarrega de contrariar o que tomamos como certo e seguro.  E se de algumas histórias, narrativas, frases, memórias repetidamente lembradas, eu ainda recordo, muitas delas perderam-se numa espécie de túnel de nevoeiro que atrás de mim mostra o poder do esquecimento.  E lamento-o profundamente, pois dou comigo a citá-la constantemente, tal como vaticinou.

O dia que hoje se comemora, o feriado que hoje se vive, festeja um evento religioso mas também pagão, que atravessa culturas, épocas e credos.
É vivenciado pelos cristãos, sejam católicos, ortodoxos, anglicanos ou luteranos.  É uma festa celebrada em honra de todos os santos e mártires, conhecidos e desconhecidos, perseguidos pela sua fé, conceito que se alarga aos que entregaram toda a sua vida a Deus, fazendo da mesma, uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
A comemoração regular deste dia remonta ao ano de 609 ou 610 d.C. com o Papa Bonifácio VII, para recordar todos os cristãos que tinham sido perseguidos e mortos pelos romanos, nos primeiros anos da Igreja Católica.
Em 731-741 o Papa Gregório III dedicou uma capela, em Roma, a Todos os Santos, todas as pessoas que haviam vivido uma existência pia, de acordo com o Evangelho, e ordenou que eles fossem homenageados no primeiro dia de Novembro.

O 1º de Novembro já era marcado em algumas culturas por festas dedicadas ao início do Inverno, época em que a natureza morre. Por toda a simbologia que associa a morte à fertilidade que nessa altura inexiste nos campos, seria naturalmente neste período do ano que se centraria a simbologia ligada à morte, seja o Dia de Todos os Santos, seja o dia seguinte, o Dia de Finados.

Na cultura Celta celebrava-se o Samhain, festividade pagã de que pouco se sabe, a não ser que se centrava exactamente na ideia de morte associada ao rito agrário.  Começava o Inverno, morria a natureza, até que de Abril para Maio, a natureza ressurgisse na sua capacidade geradora de vida.
Era, por assim dizer, o fim e o início de um Ano Novo.
Os mitos Celtas giram em torno do que acontece na Natureza.  O Inverno, a Primavera, o Verão e o Outono, associam-se intimamente ao seu nascimento, crescimento, decadência e morte.
A noite de 31 de Outubro, vivida como o Halloween, dia das Bruxas e das entidades do Além, representa um rito de transição entre a Vida e a Morte, em que se acredita que é esbatida a distância entre os dois mundos, e em que existe uma aproximação sentida, entre nós e os que já partiram .

Dias antes do Dia de Todos os Santos, já a frase da minha mãe sobre a festividade, me martelava a cabeça.  "Todos os Santos menos um, que chegara atrasado ?!... "
Cheguei a falar disto a pessoas amigas, que nunca tal haviam escutado ...
Atrasado onde ? Porquê ? Que Santo ?...
Por que não apontei os contornos desta lenda, ou tradição popular ( que acaba virando "lei", como sabemos ) ?

E, pode parecer estranho ou ridículo, mas sentia-me angustiada por não lembrar  de nenhum modo, a descodificação deste quebra-cabeças.  Não por ele, em si mesmo ( que não deixava de achar curioso, contudo ), mas pela percepção clara da implacabilidade do tempo e da forma como ele apaga as memórias, turva os trilhos e larga uma poalha de neblina sobre as pessoas, as vidas, e as histórias ...
Já fora à Net vezes sem conta, tentando que o Google em alguma busca mais feliz, me respondesse ...
Em vão.  Totalmente em vão.
Muita informação histórica, religiosa e pagã ... mas, infrutífera face à minha pueril questão...

Na noite de Halloween, já deitada na cama e em silêncio no meu quarto, voltei a "encompridar" o pensamento e a lembrança, até onde o cérebro mo permitia, espremendo o mais possível os retalhos de todas as partilhas que ao longo da existência mantive com a minha mãe, de quem sempre estive muito próxima, filha única que fui ...
Voltei à Net sem expectativa, e ... levei, absolutamente, um soco no estômago ...
Incrível ... ali, bem na minha frente, no monitor mínimo do telemóvel, como um recado generosamente dado,  a história da lenda do Dia 1 de Novembro, era contada ...

Santo André, irmão mais velho de Simão ( chamado posteriormente de Pedro, por Jesus ), filho do pescador Jonas, também ele um humilde pescador da  cidade de Betsaida às margens do Mar da Galiléia, que viria a ser discípulo de João Baptista, e que se tornou hierarquicamente o segundo discípulo, dos doze Apóstolos que seguiram o Mestre ao longo da vida, nascera com uma malformação : era coxo.
Conta a lenda, e o povo repete-a de geração em geração, que no dia 1 de Novembro todos os Santos haviam sido convocados para uma festa.  E todos compareceram ... Todos menos um, que por ser coxo não conseguiu chegar atempadamente ao evento.  Era ele Santo André.
Santo André só chegaria no último dia do mês, dia que a Liturgia Cristã lhe dedica no calendário religioso, até hoje.  E por isso, 30 de Novembro é dia de Santo André, coxo de um pé !
Mais diz a tradição, que o tempo atmosférico que se fizer sentir no Dia de Todos os Santos, se repetirá no último dia de Novembro.

Dei por mim a sorrir.
Tenho a certeza que a minha mãe, donde estivesse,  veio dar-me uma mãozinha  e contar-me de novo a história, ao ouvido, com aquele seu ar maroto ... "Eu não te disse que um dia, ias lembrar muito as minhas "doçuras e travessuras" ?..."

Ainda a vi a encostar-me a porta do quarto ...


Anamar

Nota : Este post tem um atraso de dois dias, como se perceberá do texto.
           Foi utilizada informação baseada em estudos do Professor Paulo Mendes Pinto,
           coordenador da área de Ciências das Religiões, da Universidade Lusófona.