sexta-feira, 24 de maio de 2019

" PÁSSAROS "



Aqueles tocadores de sonhos começaram cedo pela manhã.  E não arredaram pé, por todo o dia, da calçada junto à porta do prédio, zona de passagem de quem se faz às compras diárias, aos autocarros e aos comboios.
Por certo, esperançavam-se ser ali, lugar de generosidades dos passantes.
Duas bicicletas, um  atrelado por cada uma, mais umas tralhas logísticas, mais um cão ... mais a magreza inerente à escassez adivinhada, mais a sujidade dos trajes e das "rastas" nos cabelos imundos ...
Ah ... e um pífaro.  Um deles tocava uma espécie de música, sempre a mesma, extraída daquele instrumento.
Esse, em pé, bamboleava o corpo como quem experimenta uma  dança nos acordes musicais.  O outro, sentado no chão, num pano estendido sobre as pedras, fazia uma qualquer bricolage que expunha na calçada, sonhando talvez que alguém pudesse comprar aquelas peças, cuja serventia não descortinei.

O sol esteve agressivo por todo o dia.  Forte de mais, apesar do céu se mostrar nublado a espaços.
E eles ao sol, alheados do que os rodeava.  Silenciosos.  No seu mundo, apenas.
O cão dormia, o pífaro tocava aquela lenga-lenga, o rapaz da bricolage terminava acabamentos, o rapaz do pífaro ora num pé ora noutro, parecia não estar por ali .
Não pediam esmola, não pediam comida, não falavam com ninguém.
Dois perfis esfíngicos, alheados do contexto à sua volta, numa postura total e absolutamente zen ... eu diria ...

Conhecemos gente assim. Vagueiam nas cidades, pedalam nas estradas, acampam nas falésias frente ao mar.
"Hippies", marginais, "outsiders" ... gente estranha ... vá-se lá saber ... era o que se adivinhava na postura selectiva e xenófoba de quem os olhava e rapidamente desviava os olhos.  Eram incómodos, sem o serem ...

O ser humano, sem querer obviamente generalizar, reage mal ao diferente, ao que desafia as estruturas, ao que questiona, ao que mexe com o instituído, ao que quebra regras ...
E a presença daqueles jovens, assumidos na forma comportamental escolhida, confrontava quem passava, se mais não fosse, porque acenava com a coragem de se mostrarem livres. Independentemente de serem ou não aceites numa sociedade  toda ela articulada, desenhada em figurinos musculados e "correcta", enjeitam literalmente o estabelecido, ainda que este os hostilize.

Do meu sétimo andar, onde chegavam os acordes daquela melopeia repetida, espreitei-os vezes sem conta.
Certamente serei demagógica ... mas aquelas figuras descomprometidas causavam-me alguma inveja. De certa forma, despertavam-me simpatia e admiração ... a nós, que acomodados ao conforto das seguranças na vida, nas certezas dos trilhos desejados e escolhidos, optamos pelo imobilismo de ir ficando por aqui ... ainda que os sonhos fiquem quase sempre  da  "porta" para fora !

Transportam mundo nas costas, carregam estrada nas pernas ... e asas ...
Pousam nas grades da nossa "gaiola" e sorriem.
Não sei se são tocadores de sonhos, não sei se são adoradores de sóis e de luas, amigos do vento e da chuva ... filósofos da vida ...
Não sei se serão só isto, se serão exactamente isto ... ou muito mais que isto ...
Ou apenas, pássaros !...

Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2019

" DESABAFO "




Ando a escrever pouco ...  Menos ainda, poesia ...
Hoje, foi "dia" ...


" DESABAFO "


Se de girassóis, tivesse um mar,
e o sagrado silêncio da alvorada,
deixaria a minha alma atormentada
nas asas de um pássaro, voar ...

Se eu tivesse do céu, o infinito
e deixasse o coração falar tudo o que cala,
partindo com a nuvem que se abala,
soltaria no vento, este meu grito ...

Porque eu sou alguém que não se entende ...
e só quem sabe, pode adivinhar ...
Sou caule e sou raiz que à terra prende
um barco, que se quer fazer ao mar ...
Uma flor que brota da semente,
e que querendo partir, tem que ficar ...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2019

" CARTAS DE AMOR ... "






“Cartas de amor, quem as não tem ?...“   cantava  Francisco José ... 

Ainda sou capaz de trautear a melodia, embora ela pertença mais à geração da minha mãe, do que à minha. Era eu então uma criança, quando este tema, à semelhança de outros mais, que alguns recordarão, fazia estremecer os corações à boa moda do romantismo da época.
Exactamente a época das "cartas de amor"...

Escritas, trocadas, lidas, relidas, cheiradas, suspiradas e guardadas em laço de seda e fitas acetinadas, nos baús e nas gavetas, formavam o espólio dos apaixonados de então.
Devolviam-se também, quando os romances punham fim aos sonhos daqueles que as escreviam.
Eram cartas longas, cheirosas, osculadas muitas vezes pelos lábios da mulher que as endereçava, transportavam juras, promessas eternas, levavam sonhos pueris, desejos inconfessáveis ... e flores meio secas, como um bouquet de sentimentos ...

Eram clandestinas, às vezes.  Corri atrás de algumas, à posta restante dos correios, à revelia da vigilância da minha mãe ...
Era o tempo da adolescência, dos amores nem sempre aprovados, muitas vezes contrariados ... escondidos, por isso.
Mas sempre se arranjava forma de driblar os esquemas...
E tudo era por isso, de uma dimensão de fogueira descomandada.  Tudo se vivia  no ímpeto e na chama da pureza dos sentimentos, que eram sempre imensos, na altura, com uma exuberância fatal e sofrida, como nas telas ... o que os envolvia numa magia de história romanceada !

Havia "tempo" para se escreverem as cartas ... para se rascunharem primeiro e burilarem depois.  A vida não era tão assoberbada e corrida.  Os valores eram absolutamente díspares dos de hoje.  A realidade e os interesses também.  As pessoas eram menos descartáveis, as emoções igualmente.  Os códigos de conduta estereotipavam-se em modelos rígidos e pouco permissivos.  A sociedade, de certa forma, era mais espartilhante e controladora.
Hoje, a liberdade alcançada, a capacidade de escolha, o livre arbítrio e a determinação prodigalizados pela cultura, pela informação e pelo acesso a todas as fontes disponíveis, orientam por isso o Homem, para outros padrões comportamentais.

Mas os sonhos são transversais à vida, e sempre fazem sentido e norteiam os seres humanos.  São determinantes e impulsionadores do amanhã de todos nós.
E os amores e os afectos, felizmente continuam com a doce "pieguice" do ontem e com a capacidade suprema de nos surpreenderem e nos "melarem"os corações ...

E embora os anos avancem e teoricamente a disponibilidade emocional pareça regredir, já que  tendemos a endurecer-nos a nível sentimental  ( afinal, a vida, "grosso modo", encarrega-se disso mesmo, retirando-nos o espaço da emoção, da surpresa e da ingenuidade, em que a inocência se vai quase sempre, perdendo ), deveremos lutar para que se reverta essa situação. 
Manter, adubar e regar tudo aquilo que ainda consegue acelerar-nos as pulsações, enrubescer-nos o rosto, e potenciar-nos  um  sentimento de bem estar e felicidade ... é determinante à vida e ao estar-se vivo !

Cartas de amor, há muito não recebo.
Tenho nos meus guardados, bilhetes ternurentos, guardanapos de papel escritos, textos incipientes,  naïfs, rabiscados às vezes ... pedras da praia com locais e datas ... folhas secas e flores meio desfolhadas ... botões de rosa esmaecidos, mas sobreviventes aos tempos e às vicissitudes ...
Todos são afinal, verdadeiras cartas de amor indeléveis, codificadas nos afectos, nos sentimentos,  nas linguagens,  eternizadas  no  coração  e  na  mente,  até  ao  fim  dos  meus  dias !...
Pois afinal ... "cartas de amor ... quem as não tem ?... "

Anamar

domingo, 5 de maio de 2019

" UMAS E OUTRAS ... "





É ... é mesmo verdade !  As nossas cegonhas já não vão embora .

Fiz-me ao sul, numa de aproveitar alguns / poucos dias estivais que assomaram por aqui, neste Verão ainda longe de o ser.  Atravessei o Alentejo, que nesta altura do ano consegue estar ainda mais belo.
Os matizes de verdes, misturados com uma paleta que esgota todos os tons, das flores em explosão pelos campos, pintam uma aguarela assombrosa !
Os animais pastoreiam.  Na hora da sossega, as sombras dos sobreiros, das azinheiras ou das oliveiras, fazem do montado um céu pintalgado de pequenos pontos imóveis, adormecidos.  De quando em vez, pachorrentamente, deixam-se  ouvir os chocalhos ecoando na planície que se perde ...
Lá, as cegonhas ocupam os lugares altos. Os postes de alta tensão albergam ninhos e ninhos, numa convivência pacífica de condomínio.  As crias, de tamanho menor, habitam tribunas de privilégio, enquanto os pais catam pelos campos, o sustento necessário.
E rasam as copas das árvores, de asas esticadas, num voo soberano, aragem fora, garbosas, altivas, senhoras e donas da charneca.  É um enlevo olharem-se ...

E já não vão, de facto, embora.  As alterações climatéricas notoriamente mais favoráveis, neste nosso torrão abençoado, de pés de molho no Atlântico, já não lhes justifica a longa viagem em demanda do calor do norte de África.
Ficam ... Casa já têm ... pequenos arranjos de obras básicas, garantem-lhes de novo a estadia com qualidade ...

Por pássaros, incoerências e afins, lembrei dos passarinhos que vi em Myanmar, à porta de um Templo Budista.  Eram muitos, miudinhos, talvez menores que os nossos pardais dos telhados.  
Esvoaçavam, em espaço reduzido, numa gaiola quadrada, ao lado da qual uma mulher birmanesa se acocorava no chão.
O calor era violento, o sol era carrasco e a precária sombra que os protegia, não seria suficiente para os aliviar daquele sofrimento visível.  Água e comida, penso que não tinham.
Inocentemente, e com o conhecimento ocidental, indaguei dos seus destinos.  Se terminariam em iguaria culinária ...
Que não.  A sua liberdade, "comprada" por um euro, garantiria "pontos" no karma de cada um, que a essa boa acção se propusesse ...
Formas enviesadas de angariar o sustento, subterfúgios ardilosos de subsistência ... ou uma simples "transacção" com o além, num país de preceitos teoricamente rigorosos e condutas impolutas sob orientações e valores inquestionáveis ?!
Ou ... ( pensava eu ) apenas imperfeições, adulterações e incoerências humanas ???!!!...

Eu, ter-lhes-ia aberto simplesmente a gaiola, olhando-lhes a liberdade alcançada de um céu imenso, inteiro, sem limites,  para desfrutarem, seres vivos que são, numa terra por onde Buda apregoa uma lição de amor ...

Hoje, primeiro domingo de Maio, institucionalizado "Dia da Mãe", põe uma outra vez o consumidor, na senda exacta do consumismo, em mais um dia do calendário destinado a isso mesmo.
Sou dos tempos em que o Dia se assinalava tão só com o beijinho especial, carinhosamente trocado logo pela manhã, e a oferta de um cartãozinho feito pelas nossas mãos infantis.  Despretensioso, naïf, simples ... escrito com as letras pequeninas, cuidadosamente desenhadas ... traduzia na sua singeleza a autenticidade das coisas raras, realmente sentidas.
Após a partida da minha mãe, no desfazer da sua casa, encontrei alguns, religiosamente preservados entre os seus guardados.  Uma das netas quis manter a sua posse.
Afinal, como qualquer mãe sabe claramente ... e ninguém como ela consegue perceber com justeza e atestar com veracidade ... mãe  é  coisa de sempre, de todos os dias, de todas as horas ... de toda a vida ! Mãe é incondicional, é irrestringível, é perene !   É coisa de plantão ... tempo integral ... Porque é sangue e é carne, é amor e é dor !...  E o cordão que nos garantiu a vida durante nove meses, nunca nos é realmente cortado !
Quando já não está entre nós ... mãe, está dentro de nós !  Presente, "ad eternum" !...

Bom, hoje foi assim.  Divagações ao sabor das histórias, conforme me chegaram, umas e outras, à memória e ao coração ...



Anamar