segunda-feira, 27 de maio de 2024

" PERDIDA NAS CATACUMBAS ..."




"Nunca falámos muito, acho que nunca falámos nada. E não sinto necessidade de começar agora. O que poderia dizer? Existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras..."

António Lobo Antunes


Este texto de Lobo Antunes caíu-me no papel, caíu-me no coração, caíu-me na alma. Logo hoje em que os cacos estão espalhados pelo chão !... Porque há dias assim ...
Não choro. Sequei por dentro. Que coisa estranha, pareço ter empedernido até às fímbrias do meu ser.
Pareço já não ser gente, vazia de emoções há muito despidas, como se um casaco fossem, sem serventia ...

Desisistir seja do que for, é difícil, é violento, é contra-natura, é como se nos amputássemos. Percebermos que o caminho parece ter fechado depois daquela curva e que não continua para nenhures, é desesperançoso, quase sempre dói muito.
Percebermos uma cerração densa, pesada, irreversível, cega-nos o coração.
Desistir é um acto de perda, de desaposta, de descrédito, de deitar a toalha ao chão, na percepção de fim de linha. Mas também de cansaço, às vezes dum cansaço mortal.
Desistir, surge-nos como uma fraqueza, uma incapacidade, uma inabilidade, um insucesso gigantesco. Uma fotografia rasca, uma história de déficit, um vazio atroz !
Mas ter envergadura para o entender, o olhar, o aceitar e o conseguir suportar nas costas, esse sim, um acto de coragem, um acto de humildade, um acto de submissão à vida.
Sim, porque esta nunca se compadece. Ordena, dita, decide. E cada um, aguenta-se ou cai ...

Desistir de pessoas então, é monstruoso. Sangra, deixa-nos em carne viva. Esfacela-nos por dentro.
Desistir de filhos ... não há palavras ditas ou inventadas, capazes de o traduzir.
Morre-se, morre-se mesmo por dentro. Sem remédio ou solução. Sossobra-se ao cansaço do determinado.
A princípio tenta perceber-se. É o período das interrogações infinitas, intermináveis. É o período da busca da compreensão, o período em que se revira o destino de trás para diante e de diante para trás, na busca de uma luz. É o período em que se esmurram as paredes que se nos erguem pela frente, em que se pontapeiam as pedras na esperança de as remover, em que se golpeiam as mãos na incapacidade de enfrentar as pontas das facas do que não se entende e em que uma impotência avassaladora é mais onda, que onda de borrasca em noite de tempestade !...

Mas a vida vai seguindo, coxa, aos trancos e barrancos, levando nas mãos um crer sem crer na verdade. E se o hoje ilumina o horizonte, o amanhã destrói toda a ânsia, toda a esperança, toda a convicção ancestral de que sempre depois da tempestade, o bom tempo se avizinha ...
E não se sai do mesmo sítio. E percebe-se a dureza das coisas, consciencializam-se os silêncios, a incompreensão das linguagens, a desafinação dos valores, o desacerto dos azimutes ... os silêncios de palavras estioladas nas gargantas ! Sem conserto, sem sentido, sem escapatória, em linguagem de surdos ...

E tanto para se dizer ... E tanta dor no coração para se cuidar. E tanta precisão de um olhar, de um afago, um mimo, um carinho ... um cólo ... tanta precisão de nos darmos no calor de um abraço ...
Impossível ! Já percebemos então, que impossível !...
Não há volta, não há solução, não há já verdades ! Uma irreversibilidade total instalou-se e tudo se transforma em desconhecido !

Cansaço, só cansaço ficou.
"Existem séculos e séculos de silêncio entre nós ... e lá no fundo, talvez apenas as tais coisas anteriores às palavras, que prefiro não transformar em palavras ... e que doem, doem horrores "
Mas tenho pena ... pena de perder esta batalha, talvez a última !...

Anamar