terça-feira, 28 de janeiro de 2025

" MEMÓRIAS "

 


Da torre sineira da igreja soam as doze badaladas.
O dia não está famoso.  Não chove, o céu enfeita-se de nuvens errantes, que se deixam atravessar por um sol pouco fiável, mas o vento que sopra lá fora é desabrido.  É Inverno, afinal !...

Há dois dias que não desço sequer, a esta praceta desinteressante, limito-me a subir e descer as persianas a bem das plantas, como o que há no frigorífico, de preferência, se confeccionado. 
Nada justifica ter de me vestir para compras, num dos dois super-mercados que me ficam no rés-do-chão ...  
Não me apetece ! Até um simples pacote de leite e uma torrada ou duas bolachas me chegam para não enfrentar o mundo lá fora.  Não me apetece encontrar rostos familiares, perguntas repetidas, respostas feitas ... Não me apetece !
Afinal eu vivo num mundo de silêncios, em brumas nebulosas, num mundo que não interessa e daria demasiado trabalho a contar aos estranhos ...
Tocam à porta ... não me chateiem aqui na paz da minha toca !
Não estou para ninguém ...

Mas estou para elas ...
A torre sineira solta as doze badaladas, como disse, depois de uns acordes religiosos quaisquer, e eis que o bando se avista ... Todos os dias, à mesma hora não me defraudam ...
Aqui bem por cima e frente à minha janela, dezenas de gaivotas, enfrentando a aragem, exibem um bailado de liberdade ao sabor do vento.
Em tempos, "tive" uma gaivota.  Rasava-me a janela, exibia-me a plumagem e eu acreditava que ela me trazia notícias lá de longe, desde as ravinas abruptas, ao cheiro e ao sabor da babugem das ondas rendilhando os areais.  Eu acreditava que ela era a minha mensageira da paz, da saudade, da memória ...a estafeta das minhas emoções ...
Hoje, em dias e horas incertas, pousa elegante e desafiadoramente uma gaivota garbosa e altiva, na esquina do terraço ao lado.  Meneia a cabeça, alisa vaidosamente as penas, apoia-se criteriosamente ora numa pata ora noutra, bate o bico em chamamento e olha, com aqueles olhinhos espevitados, quem a observa de longe ... eu !
O meu gato, apesar de eu o incentivar a aproximar-se da vidraça ( coisa que suponho, o deixaria muito feliz ), não está para se maçar... Assim como assim, ela está demasiado longe ...

E o bando, impreterivelmente a essa hora, brilhe o sol ou caia água desbragada da abóboda cinzenta aqui por cima, chega, dança, exibe uma performance invejável, asas estendidas, pernas recolhidas como verdadeiras "prima-donas" num ballet invejável e inimitável ...

Eu fico como que hipnotizada, fascinada, solta e liberta, como se fosse eu que deambulasse à boleia de uma delas, nas ondas da correnteza, a tentar ver um mundo melhor cá por baixo ...
Não mexo, não falo ... só olho, só as acompanho com o coração e a mente ...
Até onde irão ? Porque respeitam o relógio dos Homens, se elas são bichos livres e, como eu, sem horizontes, caminhos ou metas?!
Porque não me levam, se aqui por baixo já não há nada de interessante ??!! ?

A melancolia toma-me.  A saudade também... sensação estranha !!!



Anamar

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

" TUDO E NADA ... "

 






E as águas começaram a subir ...

Vivo só, às vezes gosto, outras não gosto.  Não tenho uma forma de ser fácil, penso que ao longo dos anos e dos diversos formatos que a minha vida foi assumindo, me tornei demasiado eremita, talvez arrogante, talvez autoritária.
Em tempos idos, quando a família das quatro pessoas coabitavam, o meu ex-marido apelidava-me a brincar, de "dama de ferro", epíteto que vinha dos tempos da Margaret Thatcher, significando com isso a rigidez e talvez a intolerância perante pequenos desvios, formas de fazer as coisas, enfim ... características de quem vive em comunidade. Talvez prepotência ... seria ??!!
Hoje, e porque fisicamente já estou só há cerca de vinte anos, porque a idade avançou e porque não devo satisfações objectivas a ninguém, aprimorei as manias, as posturas, os desígnios do dia a dia, com requintes de malvadez ... 😁😁 
Dito de outra forma, cada vez me sinto menos "disponível" para muitas coisas.  Não abdico fácil, não me sujeito a decisões "extra-muros" quase nunca ... enfim, estou a tornar-me "pouco recomendável" 😀😀, um lobo demasiado solitário aqui no meu reduto, pouco maleável e disposta.
Devo dizer, que na verdade não gosto muito da "imagem" interior que o espelho me vai devolvendo, diariamente. Não é louvável e até acho que provavelmente esta auto-ostracização não me fará nenhum bem, mesmo à saúde física.
Cada vez convivo menos, cada vez me refugio mais em casa, como se ela fosse o ninho onde me sinto realmente abrigada, como se fosse um bunker de refúgio e de defesa ... da vida.  
Cada vez me escasseia mais a paciência para ouvir os outros, não atendo telefones frequentemente, adio ou recuso convites maçantes, ainda que culturalmente aplaudidos por gente normal ... sim, porque começo a duvidar da minha sanidade mental ...

Olhando atrás, as voltas e cambalhotas que pautaram a minha existência, tornaram-me, creio, execrável.  O tipo de pessoa que ninguém tem obrigação de aturar ou pelo menos de entender.
Sou feliz ?  Não. Sou profundamente infeliz, perdida e confusa num vórtice existencial que não sei onde começa nem onde termina. Vivo labirinticamente, extenuada sem sair do mesmo sítio, enferma dum cansaço interior e de um desinteresse por tudo e todos.

Vivo com dois gatos, tão silenciosos quanto eu.  Gosto de sentir pelas noites de desconforto, o contacto físico do que se aninha na minha cama, nas curvas do meu corpo.  É um calor de aconchego, uma espécie de carinho através dos cobertores.
Oiço Enya e vejo o cinzento lá fora, enquanto o vento desabrido sibila pelos interstícios mal vedados das janelas.
Enya vive, ao que parece, no país dela, a Irlanda, que não conheço, só, num castelo, acompanhada por gatos.  Imagino uma colónia de gatos, o verde contornante, o mar bravio, o vento a soprar nas ramagens... e paz, muita paz !...
Sei lá se será assim... isto sou eu a imaginar ... mas invejo-a...


Ultimamente retornei às fotos, de lugares que conheci, de viagens que fiz ... Invariavelmente a natureza está presente. Não aprecio fotos com pessoas.  Acho que "poluem" os cenários ...
Os lugares transportam-me lá, e carregam consigo as memórias, os sons, os cheiros, os silêncios, as palavras ditas ou recordadas, as cores e tudo, tudo aquilo que preencheu momentos felizes, lá longe, noutro pedacinho de mundo ...

Lembro a subida das águas em dois momentos marcantes.  A Amazónia, exactamente há dez anos, naquele nascer de sol em que os lilases foram dando lugar aos róseos como se um candeeiro fosse acendendo o céu, até que o fogaréu alaranjado irrompesse no silêncio do chocalhar das águas mansas ...
Lembro a chegada das águas, no passado ano de 2024 espraiando-se pelo deserto do Kalahari, vindas dos planaltos de Angola e transportando consigo a vida que todas as espécies aguardam, ano após ano, pululando naquele fantástico delta do Okavango ...
Visto do céu, o Okavango rendilha em braços, enche charcos, inunda a planura onde os animais retomam a felicidade da frescura, naquele tórrido inferno do calor africano ...

E é como se revivesse tudo aquilo.  E é como se lá voltasse, se lá estivesse, eu, e mais ninguém ...

Estarei doente ??
Não, não é uma interrogação ! Estou doente, sim.  Sinto-me profundamente doente, acuada no desinteresse de nada me interessar ...
Cansada, desenquadrada, como numa matemática de exercícios sem solução ...

Desculpem este "tudo ou nada", mais nada que tudo ... sobra-me o papel, e às vezes, necessidade de escrever ...

Anamar

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

" O NOSSO MANDACARU ..."



A vida é certeiramente efémera. Todos sabemos que começamos a morrer mal damos o primeiro vagido ao deixarmos o ninho que nos acolheu durante nove meses.
Também sabemos que enquanto dela desfrutamos, temos mecanismos mentais,  emocionais ou outros que têm a capacidade de fixar em nós para todo o sempre, flashes de acontecimentos, de momentos, de sentires, que não se descrevem, apenas de quando em vez nos visitam com uma definição e uma precisão impressionantes.

Assim, enquanto esquecemos facilmente por exemplo o que jantámos ontem, lembramos com doçura, a quietude mágica daquele dia, daquela luz, daquele som, daquele abraço ou do beijo trocado enquanto o vento nos desalinhava o cabelo.
Lembramos o voo rasante da gaivota pescando junto às ravinas, lembramos o calor abrasador e envolvente da savana africana, o frio entorpecente mas delicioso da neve pendurada em cachos das coníferas árticas ao romper do sol fugitivo.
Assim, eu lembrei agora, e não sei porquê, aquele nascer de sol no sertão, e a afobação com que rompemos o luar sertanejo a tempo de ainda nos maravilharmos com a beleza efémera do mandacaru que floresce durante a noite e encerra para sempre a beleza das suas pétalas aos primeiros raios de sol.
Flor de um dia ... ou melhor, flor de uma noite, de uma madrugada, irrompe do corpo esquálido da planta ( que pode atingir 6 m de altura ), como um sopro, uma gota de orvalho, um adeus ...

Embora seja uma planta que pode viver em ambientes inóspitos, climas semiáridos e caprichosos, vi pela primeira e única vez o mandacaru, aos primeiros raios da alvorada, no Pantanal de Mato Grosso, assim, de repente, como quem chegou e já tem pressa de partir, porque o sol se anuncia ainda pelos alvores da madrugada, quando a escuridão da paisagem já alaranja à chegada do "rei" ...
Quem lhe viu ontem as flores de pétalas esbranquiçadas nascidas de brotos ovalados presos aos caules, que enfrentam ano após ano, secas, chuvas e trovoadas, já as não verá hoje. 
É no escuro e no silêncio da noite que o mandacaru, planta que vive um século inteiro, em meio de sol abrasador, secas devastadoras, promessa de morte na magreza e na secura em que apenas os espinhos permanecem intocados, que o seu florescimento irrompe, no que parecia ser uma morte anunciada ...
Reza a lenda que quando uma flor de mandacaru aparece no sertão, é sinal de chuva, fartura e alegria .

Mas efemeramente... como a vida... num mistério nunca desvendado pela natureza ! 
Flores grandes, prontas, belas e majestosas, nascem já enfeitadas para morrer ... luas cheias no negrume da noite !

E perante o milagre da vida, houve assim uma espécie de encantamento, uma surpresa de gratidão, quando repentinamente os nossos olhos as surpreenderam ... Afinal, um ventre que a gestou face às adversidades, por tão poucas horas dela disporá !...

Assim também é a vida. 
A curta duração do que quereríamos perpetuar, a impermanência dos factos e das existências, o cumprimento duma sina e dum destino ... tempo pra nascer, pra viver, pra ser feliz ou entristecer ...
tempo para amar, para ter esperança e acreditar ... tempo pra morrer ... um mandacaru para cumprir no sertão dos nossos dias !...

Anamar

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

" PESADELO "



O dia faz jus à época do ano que atravessamos.  Está totalmente fechado, cinzentão, húmido, desconfortável. A chuva tem caído impiedosa e de acordo com a meteorologia mais uma depressão a atravessar o país, lembra que afinal é Inverno ... simplesmente !

Tenho estado fora de casa em apoio domiciliário à minha filha, recém operada a um carcinoma da mama.  Hoje vim a casa, onde ficaram sozinhos os meus companheiros de quatro patas, que reclamam naturalmente a minha companhia.  Não falam, mas sabem exprimir-se muito bem e o meu coração fica espremidinho por cada vez que fecho a porta da rua e parto, mas obviamente a priorização da situação assim o impõe.
Mas, como dizia alguém amigo que a conhece razoavelmente, ela é uma força da natureza e tem vivenciado todo este pesadelo com uma normalidade que me impressiona.
A Catarina é intrinsecamente uma "cuidadora" e como todos os cuidadores quase nunca se deixam cuidar.  Cuidou estoicamente da avó em sua casa onde a acolheu até à sua partida, cuida de todos quantos vê que pode ajudar, é enfermeira de profissão, óbvio, e dá-se por inteiro a quem dela precisar.
Mesmo agora, com alguma limitação, socorre vizinhos, pessoas que precisam de cuidados primários, como aquela brasileira que não conseguia quem lhe fizesse a transfusão do ferro de que necessitava ...

Operou as duas mamas embora a direita estivesse felizmente sem problemas ... ainda ... mas num acto de muita coragem e determinação, preferiu cortar o mal pela raíz e acautelar futuras surpresas.
Ainda assim, nunca parou, e apesar das limitações provocadas pela colocação dos drenos e o desconforto das próteses implantadas  ( mas ainda com muito a fazer até se poder considerar terminada essa fase ), nunca foi à cama, tenta ser ela autonomamente a realizar as tarefas possíveis, como as  caseiras, cuidados de higiene e cuidados pessoais, do vestir ao calçar, etc.  
Pergunto-lhe muitas vezes afinal qual o meu contributo, além da companhia, pelo facto de estar em sua casa ?!.... "Deixa, eu faço !  Não preciso de ajuda, se precisar, peço" ... e por aí fora.  Não pára um minuto, e tanto teimou que a fisioterapeuta autorizou-a a conduzir, uma vez que o carro é automático, e sem isso sentia-se enclausurada e dependente, coisa que não é para o feitio da Catarina !

Não somos nada parecidas na forma de encarar e enfrentar as dificuldades que a vida nos larga no caminho.
Ela encara, eu sossobro.  Eu desisto, ela esbraceja enquanto tiver um sopro de força e esperança.  Eu acobardo-me, escondo-me, fujo das pessoas, deixo-me tomar pelo negativismo, pelo maldito copo sempre meio vazio.  Isolo-me, refugio-me na cama, não tenho fibra, coragem ou determinação para lutar.. 
Acredito que nunca terei.
Ela cuida e cuida-me, mesmo no meio da intempérie... e esquece-se de ser cuidada ... Às vezes acho que não sabe mesmo como isso se processa ...

Hoje, nesta tarde escura e fria voltei a ouvir Enya.  Enya que tantas memórias me traz, que tantas vivências me desperta numa cabeça e num coração meio entorpecidos, muito doídos e cansados ...

E pasmo ... pasmo quando penso, quase não acreditando, nas voltas e reviravoltas que a minha vida sofreu em tantos planos, num curto espaço de tempo ... Nada, nunca pode ser tomado como certo, como adquirido, como imutável ...
Um dia adormecemos, para na manhã seguinte já não nos reconhecermos ao acordar ... 
Isto é a vida !!!

Anamar 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

" ANO BISSEXTO, ANO TRAVESSO "

 


Não sei definir o meu estado de espírito no dia de hoje.  O stress, a angústia, a aflição, o medo que se têm estendido no tempo, acumulando-se e rompendo-me por dentro, hoje, perto de cortar a "primeira meta" desta louca prova de resistência, parecem ter apostado em rebentar-me ... Sinto-os no corpo, na mente, na pele, sinto-os nas veias onde o sangue lateja, nas batidas dentro do peito ... no vórtice alucinado que me desce da cabeça aos pés .

Dia 22 de Outubro uma das minhas filhas foi realizar os exames que qualquer mulher deve acautelar, de rastreio mamário. Também os faço, dantes descontraidamente, agora apreensivamente em crescendo.
Ela havia-os feito um ano e alguns meses antes e tudo foi totalmente pacífico.
Desta vez, o telefone tocou-me às dez e pouco da manhã.
"Mãe, já estás acordada?" perguntava-me sob choro convulsivo do outro lado.  "Mãe, tenho um nódulo na mama esquerda, a médica fez a mamografia, a ecografia e marcou-me de imediato uma ressonância magnética.  Não gosta do que vê nas imagens. "

Não sei bem o que pensei, o que senti, penso que fiquei tolhida, estática, encolhida apenas debaixo do édredão, com o raciocínio parado, como se tivesse levado uma bruta pancada na cabeça ...
Apenas lhe disse :" Tem calma, já vou ter aí contigo".

Não chorei, desta vez estava tão entupida que as lágrimas apertam e sufocam mas não saem, não aliviam ...
Venho a sentir isto há muito tempo. Penso que gastei as últimas lágrimas com a morte da minha mãe.  Desaprendi de chorar, e daí que o meu peito se transforme numa represa que me afoga por dentro e objectivamente magoa, que dói, como se me estivessem a retalhar a seco ... Mas não verto uma lágrima !

Quando cheguei perto dela, havia já outro exame a ser feito a seguir ... uma biópsia ao nódulo, mas já com uma espécie de pré-percepção algo segura, que estaríamos mesmo perante um tumor maligno, o que veio a confirmar-se.
Entretanto muitos e muitos exames têm sido feitos. O estudo da situação tem sido exaustivo.  Está entregue a uma equipa médica referenciada, experiente e muito conceituada.  Os exames levam tempo a produzir resultados laboratoriais.  Por vezes realizam-se em laboratórios ou instituições fora de Lisboa, e requerem o tempo devido ... não se podem acelerar, ao ritmo da nossa angústia.
Entretanto atravessámos um período de desaceleração a todos os níveis : as Festas de Natal e Ano Novo e virámos a página ... o malogrado e maldito ano de 2024 cessou e anseia-se que o novo ano seja menos carrasco e mais esperançoso.
Foi um ano bissexto ( dei por isso não há muito tempo ... já tinha esquecido ). A minha mãe dizia "Ano bissexto, ano travesso !"
A sabedoria popular transmite-se de boca em boca, e fundamenta-se nas vivências experimentadas.  O meu Alentejo é rico em transmitir, geração após geração, o saber de experiência feito, para que nada se esqueça nesta vida. Desgraças, estragos, prejuízos, devastações, doenças, guerras, prejuízos de má memória, reiteram por outro adágio, que algumas vezes já ouvi, estas verdades também : " Deus que o marcou, algum defeito lhe encontrou !
Comigo será seguramente um ano para esquecer ... ou para não esquecer nunca mais, tantas e tão variadas mágoas ele me trouxe !...

Amanhã, finalmente será a intervenção cirúrgica a ser feita.
É o fecho de uma primeira etapa, e o início do ciclo que agora começa, o pós-operatório e toda a panóplia de protocolos a cumprir, bem difíceis e penosos.... Apenas deixámos de estar parados e começaremos a dar os primeiros passos no sentido do restabelecimento possível.
Ou seja, ganhamos uma dose suplementar de esperança no sentido do sol ... 

Continuo sem chorar, continuo entupida por dentro, mas o apoio à minha volta, de todos os que me amam, não me tem deixado sossobrar ... e haverá sempre uma estrela no céu, mais brilhante que todas, que  iluminará o nosso caminho daqui para a frente ... tenho a certeza!
E há uma criança de sete anos a quem um dia, quando eu for bem velhinha, contarei que a mãe terá sido uma guerreira, porque sabia que tinha uma filha que não podia nunca desamparar ...

Anamar

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

" A NORMALIZAÇÃO DO INORMALIZÁVEL "... "

 


Estamos uma vez mais no ritual anual da despedida do ano velho e da saudação do ano novo. 
As famílias ou simplesmente os amigos reúnem-se à volta de uma mesa que continua os despautérios gastronómicos que já vêm do Natal, e em que o avanço da faixa etária vai determinando os que ainda estão e os que já não ... Menos um, menos um, menos um ...

É por isso a altura então de os lembrar por este ou aquele motivo, por esta ou  aquela aventura, normalmente, as gargalhadas das historietas lembradas, animam o serão até que as doze badaladas toquem a reunir. São as passas, o champanhe, a afobação dos brindes, dos abraços, dos beijos ... são os votos e os desejos só pensados e não verbalizados enquanto o relógio dá as doze badaladas.
Nas ruas e nas janelas, a euforia do momento justifica a batida das tampas , das panelas, o estralejar do fogo de artifício, os apitos, as cornetas ... enfim, qualquer coisa que faça barulho e queira transmitir o que se entenda por alegria, graça, felicidade, animação.
E desejo... um desejo incomensurável de abraçar o mundo e que esse abraço, ao menos uma vez na vida a paz a fraternidade, a saúde e o amor com a sua chave secreta, pudesse trazer um resquício que fosse, de felicidade para todo o ser vivente ...

Mas não é nada disso.
As bombas, os mísseis, os raides aéreos destruidores ... a fome, o frio, a miséria, a solidão continuam indiferentes às intenções momentâneas da bonomia do coração de muitos ... e a seguir encolhemos os ombros ... tudo isso já está assimilado na vida do cidadão comum. Seja a Ucrânia, Gaza, Síria, Líbia, Palestina ... sejam os países da América Latina e por aí fora ...

Infelizmente tudo isto são já lugares comuns, tudo isto são realidades demasiado conhecidas, tão conhecidas que quase indoloridas. É sempre assim, temos à frente barbaridades tão impensáveis e incomensuráveis que acabam quase invisíveis, de tão normalizadas se tornam no dia a dia que vamos vivendo. 
Até porque, sobretudo então os rostos das crianças que são permanentes acusações legítimas, os olhos cansados e doídos dos velhos empurrados daqui para ali, sem tecto que os abrigue, são  qualquer coisa de que fujo, cobardemente, eu sei, mas a resistência humana também tem limites. 
 
Costumo dizer que já não pertenço aqui. Este mundo sufoca-me de ininteligível. As angústias, as incertezas, os medos, as ameaças constantes que nos pairam sobre as cabeças, conseguem sempre ser superados por algo ainda mais ameaçador, mais injusto, mais impensável.  Nada é suficientemente  mau que chegue, frente às atrocidades levadas a cabo dia após dia ...

E por tudo isto e muito mais, cada vez menos valorizo dias de calendário, cumprimento de rituais só porque sim, protocolos inventados nas linhas dos show off, em que se exibe tudo menos o que genuinamente se sente. 
Procuro sentimentos, tento auscultar sentires, busco valorizar a simplicidade do que deveria ser e não é mais ... e não tenho p'ra onde fugir ... 
Este mundo já não é para mim ... semeia-me um desconforto que dói, e por tudo isso isolo-me na segurança do meu quarto, qual bunker protector, onde conto com os sóis a porem-se no laranja do infinito,  onde conto com a chuva tamborilante quando é dia dela e onde uma família de dezenas e dezenas de gaivotas aqui por cima, se anuncia como querendo tirar-me da cama a horas normais ...  

Anamar