sexta-feira, 21 de novembro de 2025

" NEM SEMPRE O AMOR CURA "

 


Vivo há mais de cinquenta anos nesta casa, neste andar desta praceta, num nascente poente que me inunda de sol de manhã à noite.

Para aqui vim em início de vida, tinha vinte e três anos de idade, ainda só uma filha, vida profissional a iniciar-se, quilos de sonhos a cumprir.  E por cá vivi, com os altos e baixos, provavelmente normais a todas as vidas.  Nasceu outra filha, escreveram-se páginas e páginas de histórias, realizações ou não, alegrias ou não, coisas boas a recordar e outras nem tanto.
Afinal as histórias do ser humano serão todas um pouco parecidas e infinitamente diferentes também !

Leccionei na escola aqui do burgo, e por mim passaram gerações e gerações cada uma com as suas idiossincrasias, das quais guardo até hoje, rostos, nomes, guardo memórias quase sempre felizes.
E constato que a reciprocidade dos afectos perdurou pelos tempos ... apesar de hoje já sermos outros !
Afinal, uma das características da memória é ir colher lá atrás, com grande grau de precisão, exactamente essas lembranças que ainda hoje aquecem o coração !

A minha casa é pertinho do céu e sobranceira a um casario descaracterizado, desordenado... eu diria, caótico.
Resta-me o céu azul ou carregado de nuvens ameaçadoras, se o tempo não está de feição, resta-me a lembrança da Pena lá longe, na linha do horizonte antes de terem construído um intrometido edifício de seis ou sete pisos que a cobriu do meu ângulo de visão, restam-me os pombos que decoram qualquer ambiente urbano neste momento, os periquitos de colar que atravessam aqui por cima, quase sempre apressados e que se anunciam pelo seu piado  característico e finalmente as gaivotas, em bandos desordenados ou espanejadas na aragem que passa, como se encetassem apenas um bailado e não tivessem rumo ou norte. 
E finalmente restam-me os pôres de sol inigualáveis e por isso mesmo, inesquecíveis, que me são presenteados a partir desta minha janela privilegiada, fechando os dias, virada que está a poente, com Sintra lá ao fundo, bem longe e bem saudosa ...

E pronto, a minha casa, que tem de tudo um pouco, já com uma vetusta idade, encerra o espólio da minha existência.
Cada peça que a compõe, é um tesouro para mim.  Cada uma tem um valor que não é material, mas incondicionalmente afectivo. Se tivesse que as escolher em função da dedicação que lhes tenho, seria uma tarefa hercúlea.
A minha vida gira dentro desta casa, como ninho de protecção e conforto.  Por maneira de ser nunca fui dada a muitos e variados convívios.  Sou uma pessoa de fácil relacionamento mas preferencialmente escolho o isolamento no meu "buraco"... Não é por mal, talvez seja assim por ter um carácter reservado, que foi sendo lapidado ao longo do meu percurso de vida, mercê do "figurino" desenhado desde a infância, numa vida vivida praticamente a sós com a minha mãe.  Mas, sendo curto o meu núcleo de relações, sinto que sou estimada pelas pessoas ... acho que posso dizer isso.
O facto de há já mais de vinte anos viver só, porque me divorciei, a Covid que também condicionou o convívio entre as pessoas e em última mas não despicienda razão do avanço da idade, vivo cada vez mais confinada a este reduto só meu.
Meu e dos meus gatos, um casal que divide as vidas dia e noite, com a minha ...

"Os anos tudo trazem e tudo levam" ... era uma velha máxima que a minha mãe usava e abusava, coisa que me irritava profundamente, quando parecia que eu afinal tinha a vida toda para viver... o mundo todo para conquistar ...
Hoje, ver a vida do patamar onde já me encontro, permite-me perceber quão verdadeira e adequada aquela era...
Hoje, a minha filha mais nova, que cuidou da avó até ela nos deixar, antecipa novamente o cenário que me espera ... 
A minha filha é doente oncológica de há um ano a esta parte. Eu digo "é", porque quem tem a desdita de contrair esta doença, por mais benigna que esta o seja, o que parece ter sido o quadro para ela diagnosticado dentro da panóplia de hipóteses com que poderia ter sido "sorteada", é-o para toda o sempre.  É um quadro clínico que não tem certezas, é traiçoeiro e surpreende.  Demasiadas vezes surpreende!
Acresce, que ela é sozinha e tem quase inteiramente a seu cargo uma criança de apenas oito anos.
Vive na margem sul, é enfermeira também num dos hospitais dessa localização, e tem toda a logística de vida dela e da filha, instalada naquelas bandas.
Como se imagina, o meu equilíbrio emocional virou da noite para o dia, complicando ainda mais o mundo caótico que sempre é o meu espírito.  
Assim, fui confrontada com talvez a necessidade ( vou chamar-lhe assim ), de nos aproximarmos em termos habitacionais, que é como quem diz, eu ir viver para mais perto delas as duas. 
Eu avanço na idade, logo nas exigências inerentes a essa situação, o futuro dela em termos sanitários sobretudo, é imprevisível, bem como o são, as capacidades que venha a ter futuramente e a impossibilidade dos nossos poderes adivinhatórios vislumbrarem o futuro que nos espera.
Sem dúvida o tempo urge e a partilha entre nós, é escassa.

E vou ter que resolver.
Nunca sequer imaginei vir a ter que passar por uma situação destas, porque vender a minha casa está longe de ser uma mera transação financeira; envolve um lado emocional profundo e uma sensação de despedida.
Fechar esta porta é um virar de página, é um encerrar de um enorme capítulo da minha vida, num período desta em que a resistência emocional e afectiva é mais vulnerável do que nunca.  É um desafio à minha capacidade de superação de sentimentos intensos de nostalgia, de apego e de incertezas.
É um desafio à capacidade de que consiga dispor, de pragmatismo, frieza, objectividade, pressão emocional ...
Ainda não parti e já tenho saudades, ainda não parti e já lido com sentimentos contraditórios do que classifico de egoísmo, desumanidade, falta de amor ... se optar por ficar ...
A minha filha pensa nela, mas também pensa em mim se quando eu precisar dela me não puder ajudar como fez com a avó...
Sem dúvida é uma duplicidade de sentimentos que me atormentam, é uma mescla de amor e de dor, como se no coração me estivessem a roubar as memórias, as histórias, a vida !...

E em contínuo, pelas madrugadas de insónias, vejo e revejo o filme dos cinquenta anos em que, bem ou mal, a rir ou a chorar por aqui estive ...

Lá fora, hoje, as gaivotas dançam na aragem fria do vento que corre, enquanto que um laranja doce escurece aos poucos na linha do horizonte, lá para os lados de Sintra ... anunciando que mais um dia chegou ao fim !

Anamar 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

" CANSAÇO "

 


Júlio Machado Vaz no seu último livro Outonecer que entre muitos outros aspectos incide na temática do envelhecimento ( referindo o "peso" psicológico que nos toma exactamente com a entrada no Outono da vida ), descreve que como nenhuma outra idade, os três quartos de século completados no ano passado, o mexeram por dentro. 
Até então, as décadas anteriores foram vivenciadas com um olhar de normalidade, de aceitação, de pouca ou nenhuma perturbação emocional.
Mas completando setenta e cinco, percebeu objectivamente aquilo a que verdadeiramente chamamos de "o peso dos anos".
Li o seu livro há pouco tempo e é verdade que JMV me mostrou nesse seu livro uma faceta de melancolia e até talvez de um entristecimento que nunca lhe havia sentido até então, como se de repente ele se tivesse voltado mais para o seu eu interior, e desligasse do mundo fora desse casulo ...

Eu sou absolutamente contemporânea do professor.  Eu também completei ontem três quartos de século de vida.  Não três quartos da jornada que me coube ou caberá. Afinal, o caminho percorrido encurta cada vez mais o que está por percorrer ... 
Contudo, também, tal como ao professor, este outonecer, ou até mais ... este invernar da vida, me magoou, feriu, atingiu, como se tivesse sido surpreendida à má fila, pelo transcurso do tempo.  
É como se não me tivessem avisado... é como se me tivessem apanhado distraída ... sem que ninguém acendesse para mim, pelo menos, o semáforo amarelo !!!

Sou muito introspectiva.  Muito negativa, muito derrotista, pouco esperançosa ... sempre com o copo meio vazio na mão.  É característica personalística, infelizmente.  E por mais que psicologicamente eu "trabalhe" em mim esta forma errónea de encarar a vida, não consigo alterar, com argumentos nenhuns, esta malvada forma de a enfrentar e de sentir ...
Muita coisa aconteceu e acontece na minha vida, nos últimos tempos ... e não forçosamente coisas felizes.  Experimento ou uma sensação de desistência com a praia à vista, ou sinto um abandono que me faz encarar os dias como em fim de caminho.
É uma sensação de não valer a pena isto ou aquilo, não valer a pena pôr a mesa da vida, porque já não ocorrerá nenhum banquete mais, não valer a pena desarrumar nada porque seria uma perfeita inutilidade fazê-lo, parece estar tudo em fase de acabar e não de recomeçar ...
Não tenho um foco, um objectivo, uma meta, algo por que me esforçar, algo que justifique continuar a esbracejar no meio da tempestade, algo que me faça sonhar, algo que afaste de mim este mofar que parece circundar-me e apodrecer-me aos poucos ...
Detesto-me, estou exausta, sinto-me um peso morto, algo de fétido ... uma merda !
Não me reconheço ! Perdi-me totalmente nas encruzilhadas da vida ... esqueci o caminho e o nevoeiro adensa-se ao meu redor.  Pouco já se divisa, pouco se enxerga, um negrume está a descer mais e mais ...
Veremos até onde e quando suportarei a tempestade ...
Veremos até onde terei olhos para a sempre beleza do crepúsculo ...

Anamar

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

" E O INFERNO ALI TÃO PERTO ... "



"Santa Bárbara bendita, que no céu está escrita e na Terra iluminada, quantos anjos há no céu, protejam as nossas almas"... ou " Santa Bárbara afastai a trovoada para onde não haja eira nem beira, nem raminho de oliveira, nem fiapinho de lã, nem alminha cristã " ... ou ainda " abrem montes, se abrirão ... oh Virgem Pura amparai-nos, salvai-nos Senhor São Manuel, salvai-nos Senhor, salvai-nos !"...
Sendo que este Sr. São Manuel, não sei bem porque é para aqui chamado, já que pesquisei o mais que pude mas não me elucidei sobre os seus poderes divinos.

O que garanto é que quando "a coisa estava preta", ou seja, quando o céu se encrespava com uma negritude assustadora, as nuvens tormentosas e carregadas já vinham em nossa direção, tudo se irava lá por cima e os primeiros trovões ainda distantes já ribombavam no firmamento, a minha mãe começava com estas ladainhas, paralisava de medo e as orações eram a salvação que se lhe afigurava no momento em apreço.

E porque fui eu buscar a Sta. Bárbara e restantes ajudantes, neste momento ?

Pois bem, nunca vi a minha mãe fugir de casa de avental, ou como  estivesse, me agarrasse pela mão, nos meus sete ou oito anos, e debandasse avenida acima, em busca do arrego de companhia para atravessar o pavor que sentia.  Era Junho, S. João em Évora, época de feira da cidade, a canícula que se sentia, impiedosa e as benditas trovoadas, "secas" como se dizia, isto é, sem alívio de um pingo de chuva que aligeirasse a ameaça, sempre carregavam na cidade.
E lá fomos... ela tartamudeando as ladainhas de Sta.Bárbara.
Lembro como se fosse hoje, estou-me a "ver", estou a "ver-nos",  a caminho da casa da Sra. D.Maria Capucho, a vizinha salvadora naquele aperto !

São tão engraçados estes mecanismos mentais do ser humano !...

Quase todas as noites sonho com a minha mãe.  Quase todos os dias a refiro, a propósito disto ou daquilo ...
Esta noite ela andou mesmo por aqui, invocando a Sta. Bárbara a pedido meu, que não sou católica nem nada.
Estivemos, estamos e vamos continuar a estar, meteorologicamente vítimas de um evento atmosférico assustador.  Chuva forte, ventos igualmente de consequências imprevisíveis e trovoadas, haviam sido o aviso do IPMA a partir da noite de ontem.
Eu vivo num sétimo andar, meio desacompanhado de outros prédios, a marquise do meu vizinho paredes meias, já voou totalmente, neste ano que passou, e eu vivo uma penitência quando as intempéries complicam.  Sinto-me apavorada, coloco o olho clínico para antever de que lado sopra a borrasca, vou à frente, venho atrás, desço praticamente duma forma integral, as persianas, mas não sossego.
As alterações climáticas cada vez mais imprevisíveis acentuam-se de ano para ano ( a tudo isso assistimos por imagens televisivas devastadoras, noutros países ), e eu, não tenho mais paz no coração !

Ontem, até à hora de desligar a luz e me desligar a mim e aos gatos para dormir, tudo parecia calmíssimo, apesar do céu algo carregado. Mas pensei ... "uma vez mais aqueles tipos meteram água ! Na ! ... A superfície frontal buscou um novo rumo !"
E fui dormir.
Eram exatamente 3,33 h da madrugada ( acho sempre piada à tendência que tenho para olhar para o relógio luminoso da cabeceira da cama, e demasiadas vezes encontrar coincidências sequenciais dos mesmos algarismos - ainda hei-de decifrar este inexplicável acontecimento ... ), levantei-me, resolvi o que tinha a resolver e remeti-me de novo ao édredon, onde o Jonas que não se mexera, continuava a dormir.
Convém explicar que faço tudo isto às escuras ... O caminho é meu muito conhecido  !
No quarto, a janela que é muito grande, divide-se em duas, digamos.  Numa delas eu, diariamente, desço totalmente a persiana. Na outra, exatamente a que está em frente a este lugar onde estou a escrever, fica diariamente um bom pedaço  com a persiana subida, pois gosto de aqui estar e ter paisagem diante de mim, sendo que não estou para ter o trabalho diário do sobe e desce da mesma.

Daí a pouco, apesar de ter os olhos fechados e não estando ainda de novo nos braços de Morfeu, comecei a sentir uns fogachos de luz que piscavam ininterruptamente, e me acendiam e apagavam o quarto.  Sabem aquela sensação que se consegue detectar apesar dos olhos não estarem abertos ?  Pois é ... era como se as luzes de uma árvore de Natal acendessem e apagassem sem parar.
"Que raio ?! O que é que deixei ligado ?!"- pensei.
No quarto há sempre luzinhas de presença que conheço bem, afinal o quarto é meio sala e escritório, além de dormitório. São luzes do computador, da aparelhagem musical, do modem, da televisão, enfim ... todas minhas habituais conhecidas !
Agora aquelas que me invadiam e iluminavam desbragadamente todo o espaço, é que não !

Comecei então, quase de imediato a ouvir a batida da chuva fortíssima, do vento ameaçador e o ribombar dos trovões.
Saltei da cama e vim à cozinha cujos vidros não têm protecção contra a luz exterior, e o que vi, deixou-me alucinada !
Todo o céu era uma massa espessa, carregada, como uma abóboda uniforme, faíscando, iluminando-se  ininterruptamente, de todos os lados. Eu nunca havia visto nada assim. Normalmente os raios desenham fantasmagoricamente o céu, percorrem-no quase sempre em direção à Terra, ao que se segue o estrépito mais ou menos demorado do trovão. Pois nada disto era o espetáculo assustador que eu tinha perante os meus olhos.  As frentes donde dimanavam os relâmpagos eram várias, em torno do meu horizonte visual, um "fogo de artifício" infernal ... era um céu a explodir de todos os lados, numa visão apocalíptica indescritível !

Foi então que a ladaínha da minha mãe me assaltou o espírito ... "Sta.Bárbara bendita ... Sr. S.Manuel,  ( seja lá quem tenha sido ), salvai-nos Senhor, salvai-nos !" ... 
Eu, que até sou agnóstica ... 😞😞





Anamar