quinta-feira, 10 de março de 2016

" TESTAMENTO VITAL "





Deve ser bom andar lá por cima !...

A tarde fechou com aquele céu cinzento uniforme, sem sol nem nuvens.  Apenas uma abóboda sem princípio nem fim.
Há um recolhimento íntimo na natureza ...
Elas andam bem por aqui.  É um bando displicente  de asas esticadas, bailando indiferente  ao sabor do vento.  Uma ronda de liberdade pelos céus fora, até onde a minha vista alcança.
E chove.  A chuva miúda tamborila na vidraça, a aragem desconfortável agita a folhagem das poucas árvores que se divisam, e o céu é um imenso oceano agitado com ondas incessantes, para cá e para lá.
Elas, as gaivotas, pequenos barcos sem leme nem velas ...

Algumas parecem rasar-me a janela.
Se errassem de rumo, tenho a certeza que viriam povoar este meu ninho de quatro paredes, que às vezes se alteiam, indiferentes à minha solidão.
Se percebessem como as invejo,  deixavam-me partir com elas num destino sem tamanho ou limite ... na medida  do que sonho ...
Iria ver o mundo de cima, cortaria os oceanos, pisaria as terras de sol quente e cheiros doces.
Olharia os infinitos que o não são, desceria vales e subiria montanhas . Pisaria as areias escaldantes dos desertos, porque também eles são espaços de liberdade, num abraço volúvel de dunas inconstantes .

Por enquanto, venho à janela ... Vejo-as por detrás dos vidros, espicho o olhar no desenho dos seus volteios, perco-me sonolenta no encantamento de estar viva e no sonho de voar no pensamento ...
Por enquanto, inspiro fundo o ar volátil e manso, ganho asas no coração e parto ... sempre parto ...
Destinos incertos ... são os meus !...

E sinto um reconforto na alma, porque ainda sou timoneira da minha própria embarcação.
Porque ainda me faço ao leme em mar flat ou alteroso.
Porque ainda me guio na estrela polar dos meus céus.
Porque acordo em cada manhã, acreditando que um sol claro iluminará o meu dia, ou que um céu cinzento mas pintalgado de gaivotas livres, encimará as minhas horas.
Porque me faço à vida no crédito das minhas forças, da minha coragem e da minha esperança ...

E sorrio ... interiormente sorrio, no beijo solto e leve com que toco o botão florido nessa noite.
Sorrio pelo privilégio do dia a despontar ...
Na carícia doce com que afago a gratidão que o coração me sopra, por existir, por me saber e por  me amar ...
E vejo-me abençoada, e vejo-me redimida e vejo-me solta, no desalinho das emoções ...

"Tenho saudades de andar" - dizia-me ela, cativa de uma cadeira de rodas ...
"Tenho saudades de ser" - soltava aquela voz encurralada numa cama de hospital.
Rosto macilento, esfíngico, olhos encovados, desesperança no silêncio doído . Tudo tão penumbrento quanto a luz coada pela janela púdica.  Vida suspensa de tubos, de agulhas ... de máscaras ...

E  tanta luz a jorrar além ...
E tanta música dos pássaros primaveris ...
E um exagero de cheiros, de cores, e deleites a exorbitarem nos sentidos !...
E tantas promessas veladas, desmascaradas na cabeceira dos sonhos !...
E a Vida provocadora no esbanjamento  dos corpos ...  E o insulto da morte demasiado perto e demasiado longe !...

Por enquanto, venho à janela ...
Por enquanto, velejo a minha própria embarcação ...
Por enquanto, vejo a chuva tamborilar pela vidraça ...
Por enquanto, tenho um céu pontilhado de gaivotas na aragem ... em ronda de liberdade !...
Por enquanto ...

Anamar

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