terça-feira, 28 de novembro de 2017

" AS PEQUENAS COISAS "






Um dia talhado a pedido ...

Parece que a natureza, a vida, o tempo, sei lá ... resolveram dar-me uma colher de chá, nesta tarde mansa, cinzenta e chuvosa.
Frente à minha janela, o dia fechou docemente, o casario foi ficando restringido no alcance da vista, silenciaram os ruídos lá fora ...
Tudo se esbateu, como a subtileza de uma aguarela pintada.  Lá longe, na linha do horizonte pouco se divisa, e muito se pode imaginar.  Sei claramente tudo o que está para além, mas sou livre de voltear na aragem desabrida deste fim de dia e dançar por ali, nas correntes que empurravam há pouco as últimas gaivotas, que em recuo, se atreveram ...
Também como elas, posso esbaldar-me céu fora, sem limite ou barreira, sorvendo apenas a quietude e a paz !
Junto de mim, a música que sempre me acompanha, torna maior e mais cúmplice o aconchego que me envolve.
Deixo-me tomar pela emoção das pequenas coisas ...
Deixo-me o direito de me embrulhar neste silêncio gostoso, nestas notas largadas no éter, como cobertores envolventes, como macieza de lençóis de cetim, como sorrisos de madrugadas promitentes !
E é uma volúpia, um estado de graça, uma espécie de clímax, com o mesmo sabor de um orgasmo desejado ...
Quase não ouso mexer-me além do essencial.  Quase não ouso perturbar esta bênção descida, esta beatitude de silêncio e tranquilidade. Quase não ouso ... simplesmente ...

 E viajo.  Viajo pelas memórias, pelos lugares, pelas pessoas ... Todas.  As que amei, as que amo, as que me amam ... Mas também as outras ... as que não me escolheram ...
As que estão, as que se perderam, as que ficaram, as que partiram e me deixaram mais só ... Todas.

Olho os lugares. A minha infância, que foi o lugar mais seguro e certo que já tive. O cólo da minha mãe ... as mãos do meu pai ...
Depois, o amanhã que já foi ontem ... e o amanhã que será depois ...
Olho as marés nas praias todas que pisei. Recolho o que me trouxeram e o que levaram, no incessante vai-vém das ondas da vida ...
Olho as noites enluaradas a coroarem-se em auroras de desejos, sonhados em silêncios.
Olho o sol amarelo, laranja, vermelho do fogo de outros ocasos, de outros levantes , distantes ... À distância de memórias impressas debaixo da pele ...
Escuto os sons das matas, do vento, das vozes que se foram apagando no vórtice da intemporalidade ...
Escuto o grasnar das garças na renda da rebentação. Oiço o pipilar das aves ao raiar do dia. Comprazo-me com a melopeia incessante do pica-pau no coqueiral ... com o açoitar da chuva lá, na floresta  cerrada ... com  o  tamborilar  das gotas  aqui, na  vidraça  da  minha  janela ...
Impregno-me com os cheiros, adocicados das paragens inóspitas...   salgados, das maresias espreguiçadas ...
O cheiro das rabanadas no Natal dos meus avós ... o cheiro da coentrada na açorda de domingo ...

Enfim, o  privilégio das coisas pequenas e insignificantes  é  um brinde de dia de festa, é presente de aniversário festejado, é oferta para a alma e para o coração, recebida com a ternura e o carinho daquilo que não se compra , não se paga, não se exige ...
Recebe-se com o calor da emoção, surpreende-nos com a autenticidade do que não tem preço ... maravilha-nos com a força do inesperado, sempre novo e surpreendente ... ainda que seja apenas uma " pequena coisa " !...

Anamar

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