terça-feira, 6 de julho de 2021

" VIDAS ..."



Escrevo ao som de Fausto Papetti.  Temas imortais, relaxantes, com a fantástica capacidade de me  apaziguarem a alma e o coração.
"Herdei" este CD, muitos outros, livros, roupas.  Herdei de alguém que conheci pouco, com quem privei um número de vezes que seguramente se contariam pelos dedos das duas mãos.  Herdei, duma casa a desfazer-se, quando talvez não fosse ainda previsível vir a sê-lo.
É uma sensação doída, a que experimento.  A sensação estranha de estar a usufruir indevidamente de algo que me não era legítimo usufruir, como se estivesse a invadir a privacidade de outrém, as sensações de outrém, as suas emoções e os seus sonhos ... a sua história, enfim ...  
Afinal, tenho para mim que cada pertence nosso, com ou nenhum valor material, sempre é uma parcela do nosso eu, nele depositado.  Sempre é um pedaço de história, um pedaço de vida ... um momento, um instante, um sonho concretizado, um gosto realizado.
Ali estará sempre um pouco de nós próprios.

O desfazer duma casa é um processo contra-natura, como o desfazer dum ninho é um adeus àqueles que nele habitaram depois do construírem.  É um bater de porta, um fechar de janelas, um apagar de luzes.
É uma agressão sem tamanho, sobretudo se quem tem que a desfazer, está emocional e afectivamente ligada a ela, se de alguma forma a ela pertence ou pertenceu, se teve também a sua existência com ela interligada.
É doloroso, é destruidor, é mortal !

Lembro vagamente o desfazer da casa dos meus avós, após a partida da minha avó, seis anos depois do meu avô. Já lá vão mais de cinquenta anos.
Eu era então uma adolescente ainda, e naturalmente, não estava directamente envolvida nessa tarefa. Ela cabia aos filhos, a minha mãe e os meus tios.  Mas até hoje, quando regresso àquele Alentejo que já é já só de silêncios e solidão, aquele nó que me estrangula a garganta, e aquele aperto no peito que me atormenta a respiração, sobem e fazem-se presentes e sentidos.  Fico estática, perscruto as janelas já não minhas, deixo o olhar perambular lentamente, descendo da chaminé ao portão, por cada divisão do que era, por cada memória do que foi ... 
E volto a rever o poço de água fresca no quintal, com as rochas ornadas de avencas, volto a rever as galinhas e os pintos ciscando no terreiro e até as andorinhas nos voos rasantes nos beirais.  Até me volto a ver, a mim, menina de bibes e bonecas, mais tarde jovem de corpo fresco apetecendo os primeiros amores ...

Depois foi o desfazer da casa de Évora, onde vivi mais de dez anos.  Casa que se manteve estranhamente fechada e desabitada após a nossa saída rumo à capital.  
E de novo, as sensações e as emoções de desconforto e tristeza me invadem, quando a olho, como em romagem obrigatória, sempre que volto à cidade.
Também aí "repasso" a mente e o olhar perdido, por cada divisão, por cada objecto, por cada móvel.  E com eles, vêm o meu pai e a minha mãe, vêm as vivências recuadas dos anos escolares ainda despreocupados e leves ...
E uma vontade imensa de bater naquele número quarenta, naquela porta fechada esperando que ma abram, uma vontade imensa de subir a escada, desvendar o corredor, percorrer as divisões, olhar a chaminé de tijolo, em frente, onde a esta hora as cegonhas já haviam nidificado, ano após ano, todos os anos para alegria da menina que eu era ... me empurra em vão, sem que contudo eu saia do outro lado da rua ... porque tudo aquilo afinal ficou lá e não é mais meu, nunca mais será meu.  Porque o tempo já passou, porque os dias se fizeram e porque o destino se escreve, irreversivelmente, dia após dia.

A casa da Beira Alta foi "encerrada" na minha vida, anos mais tarde.  Por razões pessoais e familiares, foi chão que deixou de me pertencer.
Essa foi a casa dos verdes anos das minhas filhas, a casa dos dias ociosos das férias, o campo em volta, o rio ao fundo, a figueira de "pingo mel" guloso e irresistível ... a casa dos jogos de cartas em horas intermináveis, na mesa de pedra sob a tileira de copa farta. Casa de jogos, de correrias, de bicicletas, de gargalhadas, de espigas de milho roubadas nos milheirais vizinhos e assadas na fogueira ...

A casa da Verdizela, comparativamente mais recente e estreada em 93, também deixou de estar nas minhas mãos, embora permaneça na família em boas mãos também.  Hoje, a minha neta de quatro anos que não conheceu mais nenhuma, chama-lhe por direito "a sua casa" ...
Nunca lhe contaram ainda, que por ali paira o dedo da avó, o desenho da avó, muitos dos sonhos da avó.
Uma casa estudada ao pormenor, do interior ao jardim, foi decorada canto a canto e cresceu com a ternura e o desvelo com que se cria um filho.
Nela e no seu conforto, a minha mãe deu o último suspiro ... ela que lá vivera os últimos anos da vida, com uma ligação profunda de coração a todo aquele espaço, na preocupação de perpetuar a minha pegada por ali.
Mas a "casa", aquela que foi a minha, também já não existe, obviamente ...

Finalmente, a casa que mais me doeu a desfazer, a casa cuja porta mais me doeu a encerrar, aquela a que não gosto de passar ou mesmo de olhar, foi a casa dos meus pais, de quase toda a vida, por mais de cinquenta anos.
A ela cheguei ainda não tinha treze anos, e dela me desliguei com bem mais de sessenta.
Filha única que fui, coube-me exclusivamente a dor do desmanchar desse ninho, com o destino do recheio material, o alienar dos pertences, o violar dos recantos ... a disseminação das coisas impossíveis já de guardar ... 
Porque as memórias, essas vieram comigo, imortais que são, não ocupam espaço.  Guardá-las-ei nos arquivos do coração e da alma para todo o sempre !

Hoje, olhando para trás, vejo que a minha vida foi atravessada por dobrar de esquinas, viragens de ruas, desfolhar de páginas, encerrar de portas ... se calhar, como a vida de toda a gente, afinal.  
Mas, porque dolorosos normalmente são esses acontecimentos, pelo que eles representam no desencavar das memórias, no rewind dos percursos, no devassar das existências, eles representam um fim inglório e injusto para qualquer ser humano.  
Olho sem querer olhar, vejo sem querer ver, a minha casa de hoje, as minhas coisas cujo valor, para mim, é cada vez mais religiosamente considerado como uma extensão da pessoa que eu sou, da história que eu vou vivendo, dos sonhos que eu vou arquitectando, das flores e das pedras que me atravessaram o caminho e que guardei, todas elas sem enjeitar nenhuma.
Sei que o sol continuará a inundá-la sempre que na torre da igreja derem as quatro badaladas, sei que a luz da lua a incendiará, quando cheia, a devassar sem pudor ou contenção ... como agora, como sempre ... Sei que as divisões continuarão habitadas por mim, que por ali andarei a olhar os livros, os móveis, as molduras pejadas de rostos, que por ali andarei escutando os sons do silêncio, sorrindo ao Jonas, ao Chico, ao Óscar e à Rita que hão-de passear-se comigo do quarto à sala, do hoje ao ontem, numa história de eternidade resgatada.

E a porta também se cerrará.  Dessa feita, não serei eu a fazê-lo ...😢😢😢

Anamar

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