sexta-feira, 13 de maio de 2022

" AS MÃOS "



Como sempre as minhas caminhadas pela mata, no meio do silêncio e da natureza, são momentos de introspecção, são oportunidades de, do nada e por nada em especial,  ir desfiando pensamentos avulsos que obviamente não têm que obedecer a razões, a lógicas ou a motivações especiais.
Vêm porque sim, perseguindo por certo algum impulso interior que não consciencializo ou descodifico.

Entretanto a mata, nesta Primavera instalada, fulgurante em todas as suas fascinantes manifestações, envolve-me docemente com uma natureza que esbanja beleza a rodos.  
O verde de tons diversos em cada planta, em cada árvore ou arbusto, o colorido de todas as flores que assomam em cada trilho ... flores não plantadas, não semeadas, apenas oferecidas pela generosidade da vida ... e os trinados de todos os pássaros que, de criação já independente, saltitam de galho em galho, em "conversas" de tons e "assuntos" diversos, fazem-me sorrir, extasiada que fico, a ponto de emudecer por falta de argumentação, veia ou vocabulário que os descrevessem ...
A perfeição, a harmonia,  a  ordem  são de tal forma inquestionáveis, que  talvez só o silêncio mesmo, as possam traduzir com eloquência !!!

Entretanto um ano transcorrido, já há de novo patos bravos nos dois tanques da mata.  Duas famílias de crias bem pequeninas ainda, nadam sob supervisão das progenitoras, no meio dos juncos, descontraídas e felizes !
A mata, como já contei por aí, é propriedade do Estado,  adstrita ao Regimento de Artilharia Antiaérea de Queluz, é portanto uma zona militar, disponibilizada ainda assim como zona de lazer e de prática de desportos da população de Queluz e Amadora. Situando-se na fronteira entre as duas cidades, é um pequeno pulmão verde , ao serviço destas duas comunidades.  
Ela é uma extensão do  Palácio Nacional de Queluz, que está ligado às vivências de três gerações da Coroa Portuguesa .
Este palácio, do século XVIII em estilo rococó, foi concebido como retiro de Verão de D.Pedro de Bragança, que se tornaria marido e rei consorte da sua sobrinha a rainha D.Maria I.
Depois da destruição pelo fogo do Palácio da Ajuda no século XVIII, tornou-se então residência oficial do príncipe regente D.João VI e da sua família, até que a mesma viajou para o Brasil em 1807, após a invasão de Portugal pelos franceses.
Veio posteriormente a ser um discreto local de encarceramento para a Rainha D.Maria, que padecia de loucura.

E lembrei-me das mãos ...
As mãos que são seguramente dos órgãos que mais inapelavelmente nos testemunham duma forma implacável, o tempo que já vivemos.  
O pescoço parece que também, mas as mãos, sem dúvida não nos deixam esquecer de nenhuma forma desse percurso.
À Teresa, nos seus cinco anos incompletos, faz muita confusão a flacidez e enrugamento da pele que as cobre.  Sentada no meu colo, com os seus dedos fininhos e minuciosos, olha longamente, apanha entre eles as dobras das preguinhas deste "papel" antigo, perscruta-me o semblante entristecido, acredito, e diz-me : " avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota ..."
E vendo o meu ar penalizado e impotente, sorri e diz-me : " estou a brincar, avó ... "
Bem se vê que a Teresa não alcança a dimensão da coisa ...

Guardo até hoje, com uma nitidez absoluta a imagem das mãos dos meus pais nos seus últimos tempos de vida, pese embora o meu pai já me tenha deixado há trinta anos e a minha mãe há quatro.
Lembro claramente aquelas "folhas de papel" ressequido, onde as pregas se multiplicavam e o azulado das veias serpenteava na transparência.  
Lembro a fragilidade preensiva, lembro a insegurança do gesto, lembro a falta da força no movimento ... lembro a leve e envergonhada tremura, no desânimo de se ostentar algo que já foi forte, robusto, potente, seguro ...  
Como se esses gestos titubeantes e imprecisos, carecessem dum pedido de desculpas, uma explicação para o tíbio movimento que se desenha, uma justificação para que aquela fortaleza, aquele pilar, aquele porto seguro, aquela amarra ... aquele tudo de amparo que tantas vezes nos ergueu do chão, já só fosse um esgar, uma tentativa ... uma desistência !...

São isso as mãos ... São segredos guardados, são histórias contadas, são caminhos trilhados, são memórias vivas ... sangrantes !
São vida ... mesmo quando já são morte anunciada !...

"Avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota !... " - a ingenuidade da boca inocente  duma criança !

Anamar

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