quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

" ÀS VEZES A GENTE SÓ QUERIA UM MIMO ..."



Dia 3 do primeiro mês do ano que há pouco se iniciou.  
O tempo, profundamente instável, presenteou-nos com um dia escurecido, abóboda cinzenta pesada, com chuva ininterrupta desde ontem.  Dia bom para estar à lareira, ou não a tendo, dia bom para deixar perder a vista até onde ela chega, através das vidraças, por onde os pingos escorrem desenhando linhas incertas e imprecisas.
Hoje foi o funeral de uma colega de trabalho, contemporâneas que fomos a vida toda na mesma escola e antes disso, colegas de liceu, da mesma turma, no tempo em que éramos estudantes.  Tínhamos portanto exactamente a mesma idade.  A doença "da moda" vitimou-a depois de prolongado sofrimento, ao que parece.
Fui ao velório ontem.  Hoje, poupei-me.

Com o avanço dos anos, estou a atingir um grau de fragilidade enorme, absurdamente preocupante.  Sempre fui saudável, costumava dizer que nem as "simpáticas dores de costas" que se tornavam amigas inseparáveis das pessoas minhas contemporâneas ( inevitáveis parecia ), queriam nada comigo.  Nem coluna, nem "cruzes", nem pernas, nem braços me atormentavam.
"Sortuda" ... era assim que me diziam, era assim que me considerava ...
Só que, sem eu dar por isso, de repente, de supetão, apanhando-me na curva da estrada, parece que tudo se me chegou. Ou então sou eu que de repente também, dei em viver com medos, com temores assombrados, com fobias idiotas... E aquela mulher destinada a varar a bitola do tempo, ficou da noite para o dia, como um passarinho assustado.  
Deito-me e até que o sono faça a caridade de me levar para os seus braços, passam por mim todos os filmes possíveis.  Sozinha em casa, com o gato aos pés, em cada noite que chega, a reprise assustada vai desfilando.  Tudo fica passível de acontecer.  Tudo é mais do que provável que aconteça ...
E fico encolhidinha entre o macio dos lençóis e o quente aconchegante do édredon, tentando sonhos e não pesadelos ...

Eu sei que a vida se fez, que os anos foram indo.  Sei que os filhos cresceram, que as crianças que eram não são mais, que hoje estão aí aos comandos das próprias vidas e próprias responsabilidades.  
Olho-lhes as rugas à socapa, para não darem conta da fortuita avaliação ... Sei-lhes as dificuldades, as preocupações. E lamento-as.  E sofro com elas ...  
Percebo-lhes o tempo de que não dispõem, o muito que têm que fazer ... Falar-lhes da dor do joelho que me atormenta, é pura ousadia ... lamentar que os olhos ainda que operados, não voltaram a ser o que eram e que os ouvidos também me atraiçoam despudoradamente, é falta de senso...
Não caibo nos cólos que já aninhei ... nem posso embalar-me nos braços que já embalei ...
O equilíbrio ... ( Queres o quê ? Tens a idade que tens !... )... é inquestionável, pieguice e exigência absurda, esperá-lo afinado ...
E tudo o mais ... o medo do "escuro", do frio, da dependência ... os degraus da escada ... o esquecimento, a confusão que se gera quando à nossa revelia os neurónios resolvem fazer um baile de trapalhões na cabeça, que até há algum tempo atrás, era finória, esclarecida, decidida mesmo nas curvas do caminho ...

E acontece tudo num piscar de olhos ?!  E de repente a estrada fica caótica no trânsito do raciocínio ?!
E sabotam-nos os pensamentos, esvaziam-nos as ideias, fazem-nos tropeçar nas palavras como se precisassem de bengala para andar ?!
E de repente ficamos estranhos face ao espelho.  Nem fisicamente ele nos devolve a grata imagem que ainda, esbatida, lembramos de nós mesmos ...
E foi apenas há meia dúzia de anos !...

Falar  estes  despautérios,  com  quem ?  Expor  esta  avalanche  de  mágoas  onde  e  para  quê ?  
Desvendar estas ironias tontas, em praça pública ?  Ridículo !  Será que também perdi o senso do razoável, do lógico, do real ?... 
Ou simplesmente conflituo com a inevitabilidade da vida, recuso o percurso inexorável comum a todos, digladio o destino ... escrito sei lá por quem ?!...

E é isto !

É que às vezes a gente só queria um mimo !...

Anamar

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