Fui muito mimada. Fui filha única de pais não novos, direi assim, pai sobretudo mais avô que pai, pois nasci já ele tinha 48 anos e a mãe, de acordo com o normal nesses tempos , com trinta anos também não era já nenhuma jovenzinha.
Subi rapidamente ao "estrelato" naquela família de três pessoas, quase sempre de duas, já que o meu pai, sendo viajante de uma firma de ferragens, passava muito tempo fora.
Para a minha mãe eu era a boneca que lhe preenchia a vida. Vivia para mim, viveu para mim e assim foi até que partiu.
Eu era boa aluna, reconhecida e premiada e isso deixava-a orgulhosa e dava-lhe profundo sentido à vida. Sempre fui o foco da sua existência, tornei-me a razão dos seus dias. Primeiro eu, segundo o meu pai, depois ela ... Sempre assim em tudo.
E como os "tesouros" por serem únicos e irrepetíveis, a gente guarda, protege, defende e cuida desveladamente, assim eu me tornei uma ave rara numa gaiola dourada. Nada me faltou, de tudo eu tive em excesso, apenas tiveram o cuidado de me cortar as asas, garantia duma protecção considerada imprescindível à vida. Não aprendi a voar ...
O mundo sempre foi visto por mim com olhos mais ou menos facilitadores, dificuldades materiais ou outras sempre me foram contornadas, os caminhos atapetavam-se de relva, ladeavam-se de flores e o céu era quase sempre azul e luminoso.
Deram-me o peixe ... pouparam-me de o pescar ...
Lido mal com a vida. Desajusto-me das suas dificuldades, ultrapasso os sofrimentos com dores acrescidas ... porque não o sei fazer de outra forma ...
Sou desajeitada no viver, não tenho armas para as guerras do dia a dia, a borboleta que há em mim nunca chegou a sair da crisálida ...
Tornei-me assim um espécime estranho. Sou acusada de ser egoísta, egocentrada dia e noite, não me transcendo por nada nem ninguém, "sei lá o que custa viver" como me dizem, pagando em permanência o ónus de tudo o que não aprendi, sobretudo porque não me deixaram rasgar a carne nas quedas com que infalivelmente a vida não poupa ninguém ...
Em suma, sinto-me uma inábil por cada dia que desperta. Sinto-me desinserida e não pertença de uma realidade na qual não me sei mexer.
O que me rodeia não me faz sentido, as coisas e as pessoas não me fazem sentido. A linguagem que falo parece outra, sinto-me a mais numa realidade que custo a descodificar. É como se me tivessem largado numa praça duma terra cujas pessoas não conheço, cuja língua não domino, cujas regras desconheço ... Uma estrangeira em qualquer lugar do Mundo !...
Sofrer de Alzheimer deve ser algo parecido com aquilo que experimento, apenas gorando o entendimento daqueles que sabem que não padeço da enfermidade ...
Sinto-me muito, muito cansada !
Pareço aquela alga que a maré traz e leva no recuo, para voltar a trazer e voltar a levar, porque afinal a maré sobe e desce e a alga não encontra, nos avanços e nos recuos, uma amarra, um cais, um porto de abrigo que lhe desse descanso ...
Uma alga à deriva, afinal !...
Em Agosto passado, Alain Delon, um ícone do cinema da minha geração, deixou-nos aos 88 anos, após ter solicitado uma morte medicamente assistida, permitida na Suiça, onde vivia..
Expressara várias vezes que este mundo já nada lhe dizia, e que era penoso viver nele.
"Envelhecer é uma merda!" ... assim expressou o cansaço interior que o tomava.
Olhando fotos suas de diversas idades, ele que foi dos actores fisicamente mais belos da sétima arte, realmente, só se pode terminar com essa inequívoca e realista afirmação !!!
Anamar
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