domingo, 27 de abril de 2025

" CATARSE "



Aqui estou num domingo ensolarado, cinco horas da tarde, silêncio total dentro de casa. Da rua chegam acordes de música pimba, em algum palco improvisado desta bendita terra, que distrai as pessoas fiéis ao estilo, de acordo com as datas que transcorrem.  
Hoje certamente trata-se do rescaldo do 25 de Abril ...
Os gatos dormem, cada um para seu lado. O Jonas junto à janela, no sol que não dispensa , a Rita, certamente na penumbra das colchas da cama do outro quarto.  
Não a entendo, veio da mata, sempre viveu na mata onde as madrugadas chegam mais cedo ainda, e onde os dias são claros, luminosos, com verde e passarada até tarde da noite, e só gosta do escuro, ou talvez só nele se sinta segura.  A Rita está comigo há um ano e três meses e ainda não se desarmou por completo face a um movimento mais estranho, um barulho, a qualquer coisa que na sua cabeça de ventoinha lhe inspire cuidados ...

Para amortecer o som da rua que não me apetece ouvir, coloquei agora um CD na aparelhagem ao meu lado.
Sinto-me totalmente vazia.  Vazia e desconfortável como se tivesse perdido por aí, uma parte de mim, como se o meu eu fosse um puzzle inarticulável, um puzzle que perdeu peças pelo caminho... algo amputado e irrecuperável. 
Sinto dentro de mim a confusão de um desnorte em manhã de neblina cerrada.  Sinto-me a viver, só porque respiro, o coração bate, repito gestos, mexo-me, às vezes falo, alto ou baixo, para os gatos ou para dentro de mim ... pouco mais.
Não tenho um foco, um objectivo, uma razão por que ... Nada de importante, nada de valer a pena ponteia a minha vida.  As pessoas têm histórias, vivências, memórias, capítulos a que reconhecem interesse ao lembrar.  Eu sou tomada apenas por três sentimentos ... irresolúveis todos eles : angústia, ansiedade e saudade.

A angústia e a ansiedade apertam-me o peito e a garganta.  Pesam-me quilos sobre as costas, sufocam-me, assomam-me água aos olhos, dor ao coração.
A saudade crava-me garras na carne, quase até sangrar.  A saudade puxa-me lá atrás, exactamente aos lugares e aos momentos que já lá não estão.  A saudade agarra-me pela mão e passeia-me pelas estradas que foram, traz-me as pessoas inalcançáveis porque viraram esquinas, dobraram a folha do livro, sumiram na nuvem que se desfez ...
A saudade acicata-me a alma, porque é a inevitabilidade frente aos meus olhos, porque os caminhos sempre são apenas para a frente.  Na vida não há retrocessos. Reescritas, também não. A vida não tem rascunhos.  Sempre e só o texto definitivo.

O tempo, inexorável, segue adiante.  Há um momento em que são mais os lugares devolutos que os preenchidos e diariamente a vida se redesenha, queiramos ou não, saibamos ou não viver com ela num novo figurino.
De repente, consciencializamos que a realidade que conhecíamos, que nos dava segurança e conforto, que tinha as regras e os parâmetros no meio dos quais nos movíamos, desapareceu, sumiu sem avisar.
Não vale a pena buscar, procurar, tentar reencontrar. 
Pessoas, coisas, lugares, rotinas, as certezas e as  verdades que orientavam os nossos azimutes, os sentires e até a vibração das nossas vivências ... de repente foram, já não estão, escaparam ao nosso olhar.  E de repente também , ficamos numa terra estranha, estrangeiros no nosso lugar, sem pertença ou raiz. 
E tudo deixa de fazer sentido, tudo deixa de ter nexo ou motivo.  Resta o vazio e o silêncio.
A história encerra o capítulo, a agulha percorre a última faixa do disco ...

Anamar

segunda-feira, 21 de abril de 2025

" EU SOU APENAS UM PASSO ... "



Jorge Mario Bergoglio ( Buenos Aires ) - 1936 - 2025

O homem que quis ser médico de um hospital de campanha, foi o primeiro Papa oriundo da América Latina e consequentemente do Hemisfério Sul, jesuíta, que adoptou o nome Francisco, aquando da sua escolha para figura máxima na hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, e cujo pontificado ocorreu entre 2013 e 2025.


Não sou católica... serei cristã já que em menina fui baptizada nos preceitos, já não sou crente ... ( disso se encarregou a Vida ).

Liguei o telemóvel e as notícias eram claras.  Apesar de já há razoável tempo Francisco estar profundamente debilitado, depois de um longo internamento motivado por uma pneumonia dupla que colocou em sérios riscos a sua vida, havia tido alta e apesar da sua fragilidade física, regressou a casa. 
Fui acompanhando a evolução da sua saúde.  
Ontem, Domingo de Páscoa, vi-o pelas televisões, a dar a bênção Urbi et Orbi, saudando e abençoando os peregrinos da Praça de S. Pedro, a cidade e o Mundo, num abraço que agora me surpreende ... quase lembrando um qualquer e talvez inexplicável sinal ...

A sua voz sumida, claudicante, atraiçoava-o, tendo sido o Mestre de Cerimónias quem leu, depois da Santa Missa presidida pelo Cardeal Angelo Comastri, a mensagem escrita pelo próprio Pontífice, e que derradeiramente, uma vez mais apelava à paz, ao desarmamento, à canalização dos recursos disponíveis para ajudar os necessitados, ao combate da fome e ao incentivo do desenvolvimento, na construção do futuro, ao invés da loucura humana "espalhar a morte entre civis indefesos, que não são alvos, mas pessoas com alma e dignidade".
E que sejam libertados os prisioneiros de guerra e os presos políticos !"... suplicava. 

Francisco, o Papa que assim se intitulou em homenagem a S.Francisco de Assis, que sempre adoptou a pobreza em detrimento do fausto e do luxo, foi um homem absolutamente ímpar e carismático na Igreja de Roma.  Inesquecível, seguramente. 
A voz dos calados e dos silenciados, defensor de todos os homens perante a injustiça, a violência e a incompreensão, independentemente dos seus credos ( o que lhe angariou inimizades dentro da hierarquia a que pertencia ), o homem do diálogo e das pontes, talvez o mais político de todos os Chefes de Estado contemporâneos do Vaticano, morreu na madrugada desta segunda feira, 21 de Abril de 2025.

Não sou católica, como afirmei.  No entanto, tenho que reiterar aqui a admiração, o fascínio, a gratidão até, que aprendi a nutrir mais e mais, ao longo destes seus anos de pontificado, por toda a prestação, coragem, frontalidade, sabedoria, generosidade, abnegação, tolerância, exemplo, que sem arredar pé, sempre moveram as suas posições, dando a cara, envolvendo-se, nunca se furtando a meter a mão no "vespeiro", que não ignoramos, o rodeava.
Francisco, o homem que amava as crianças e norteava os jovens ...
Tudo o que possa dizer-se sobre ele, já foi exaustivamente dito, é do domínio público ... é recorrente .
Desde a guerra da Ucrânia, a guerra no Médio Oriente, as guerras em África, desde as questões da política europeia para os refugiados, do controle da imigração, o repúdio pela construção do muro entre os Estados Unidos e o México, as questões relacionadas com as alterações climáticas ... a condenação do abuso de menores no seio da Igreja, a aproximação a outros credos fora do quadro apostólico romano,  ( como a Igreja Ortodoxa ( "Deus não pertence a nenhum povo " ), bem como a sua bondade e humanidade na abordagem das relações homossexuais ( "Se alguém é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-lo ?" ).  A integração e não a marginalização, é o caminho para estas questões.
A "purga" feita no Opus Dei ( o que o colocou em risco objectivo, face ao ódio desencadeado na instituição ), bem como a defesa de uma Igreja mais austera que servisse os necessitados, uma Igreja pobre e frugal, que sirva os pobres, de acordo com os valores franciscanos, Francisco partiu pedindo apenas para "ser lembrado com ternura" ...

Certamente, mesmo que o não pedisse, este Papa único na História da Igreja Católica Apostólica Romana, ficará para todo o sempre na memória de crentes e não crentes.

Receio que ele, que diz de si próprio ser apenas "um passo ... e que a Igreja seguirá em frente ", não se tenha enganado, e que muito daquilo por que lutou e se empenhou,  não seja engolido pelos interesses,  conservadorismo e ortodoxia das correntes mais estagnadas e imobilistas da Igreja Católica !

Hoje é um dia triste.  Triste, porque todos ficámos mais pobres e desamparados, talvez menos esperançosos e sonhadores ...

Anamar




sábado, 12 de abril de 2025

" A AUSÊNCIA ..."

 



Já faz hoje sete anos que a minha mãe partiu.
Foi embora de mansinho, sem estardalhaço, com aquela discrição de pessoa humilde que sempre a caracterizou.
A vida permitiu-lhe fechar o ciclo perfeito, pois noventa e sete anos antes, exactamente noutro onze de Abril, numa vilazinha do interior no Alentejo, haveria de abrir os olhos ao mundo, para o bem e para o mal...

Sete anos que me deixaram numa orfandade que não sei descrever.  A sensação de solidão, de desproteção ... a sensação de ausência de referências, de me sentir perdida, têm às vezes uma dimensão atroz e abissalmente doída.
São emoções que contrariamente ao que imaginava, têm-se instalado em grau crescente na minha vida à medida que o tempo passa.  Costuma dizer-se, sobre perdas emocionais e afectivas, que elas nunca desaparecem, mas que o tempo é um conselheiro mestre no seu esbatimento.  Tal como a terra abate, no chão que as acolhe, assim a dor vai amainando, ficando mais difusa e leve para o ser humano que as suporta.
No meu caso, isso não tem acontecido.  De dia para dia, o buraco na alma deixado pela ausência da minha mãe, bem ao contrário, parece recrudescer e é como se a ferida sangrasse tanto ou mais que nos primeiros tempos.
Comunico-me mentalmente com ela quase em permanência, como se ela por aqui ainda estivesse.  Pareço pressenti-la quando a chamo, a questiono, a suplico.  Pareço perceber-lhe respostas, pareço sentir-lhe o amparo ...

Vivo só.  Na minha casa, sou eu e dois gatos.  O silêncio "ribomba", a ausência de "vida" parece respirar-se em cada canto.  São as noites, são os dias ... são de novo as noites ...
Entrei numa escalada de desinteresse, sem rumo, sem foco ... não vivo, sobrevivo apenas.
E ninguém vive se não tiver metas, objectivos, sonhos ... ninguém vive se por cada manhã não sentir dentro de si uma razão, um valer a pena, um incentivo para reiniciar a jornada.  E esses são exactamente os meus dias.  Nada parece justificar-me o reinício.  Nada é suficientemente importante para me reerguer.
E é quando percebo claramente a falta que ela me faz.
Sempre foi uma pessoa de bem com a vida, sem exigências ou vontades elaboradas. Era feliz com pouco, nunca tinha vontades ou sonhos acima do que considerava o necessário e o suficiente.  Sempre tinha uma palavra de compreensão e conciliação.  Vivia em função da felicidade dos outros ... dos seus ... da família.  E procurava sempre aplacar os desacertos de quem a elegia para amparo e ajuda.

Tanta coisa que hoje, só com ela poderia dividir !...  Tantas angústias que hoje, só ela poderia entender !  Tanto amparo e afecto que hoje, só ela me poderia dar !... Tanto colo que já não tenho !...

As pessoas estão nas suas vidas.  Com as minhas filhas tenho uma objectiva dificuldade em comunicar.  Há uma décalage geracional perfeitamente cavada entre nós.  Hoje, eu estou sempre errada.  Hoje, sou eu a omissa por definição, e aquela que parece nunca ter capacidade ou inteligência para perceber o que acontece, que não entendo, que não sabe fazer pontes, mas sim conflituar.
As outras pessoas, têm mais o que fazer. Cada um vivendo ou apenas sobrevivendo, creio ( às vezes vindo à tona à força de esbracejar ), como pode e dá.  Vão também passando pelos intervalos da chuva,  com a resiliência e a coragem que têm ... Não adianta muito, quando nos cruzamos ...
E por tudo isso, remeto-me ao meu canto, cada vez mais.  A paciência é pouca, a motivação decrescente, o interesse não justifica. E portanto, cada vez mais desaprendo a socialização, cada vez mais emperro na linguagem escrita ou falada ... Não vale a pena !
E um cansaço atroz invade-me.  Sei que estou psicologicamente afectada, sei que nada disto me é benéfico, sei que as forças e o empenho claudicam, tropeçam nos dias enormes... que não tão grandes porque parte deles os passo a dormir ...

É então que vejo a minha mãe sentada no sofá da salinha, é então que a oiço com aquela bonomia que a caracterizava, dizer-me : " Não pode ser, filha ... tens que reagir ..."
E a sua mão encarquilhada acariciava-me o rosto, enquanto que o seu colo se agigantava e me aninhava com a doçura que apagava a dor, que injectava a força e a coragem na minha alma ...

Hoje ela já não está ... hoje, estou irremissivelmente SÓ !...

Anamar