Aqui estou num domingo ensolarado, cinco horas da tarde, silêncio total dentro de casa. Da rua chegam acordes de música pimba, em algum palco improvisado desta bendita terra, que distrai as pessoas fiéis ao estilo, de acordo com as datas que transcorrem.
Hoje certamente trata-se do rescaldo do 25 de Abril ...
Os gatos dormem, cada um para seu lado. O Jonas junto à janela, no sol que não dispensa , a Rita, certamente na penumbra das colchas da cama do outro quarto.
Não a entendo, veio da mata, sempre viveu na mata onde as madrugadas chegam mais cedo ainda, e onde os dias são claros, luminosos, com verde e passarada até tarde da noite, e só gosta do escuro, ou talvez só nele se sinta segura. A Rita está comigo há um ano e três meses e ainda não se desarmou por completo face a um movimento mais estranho, um barulho, a qualquer coisa que na sua cabeça de ventoinha lhe inspire cuidados ...
Para amortecer o som da rua que não me apetece ouvir, coloquei agora um CD na aparelhagem ao meu lado.
Sinto-me totalmente vazia. Vazia e desconfortável como se tivesse perdido por aí, uma parte de mim, como se o meu eu fosse um puzzle inarticulável, um puzzle que perdeu peças pelo caminho... algo amputado e irrecuperável.
Sinto dentro de mim a confusão de um desnorte em manhã de neblina cerrada. Sinto-me a viver, só porque respiro, o coração bate, repito gestos, mexo-me, às vezes falo, alto ou baixo, para os gatos ou para dentro de mim ... pouco mais.
Não tenho um foco, um objectivo, uma razão por que ... Nada de importante, nada de valer a pena ponteia a minha vida. As pessoas têm histórias, vivências, memórias, capítulos a que reconhecem interesse ao lembrar. Eu sou tomada apenas por três sentimentos ... irresolúveis todos eles : angústia, ansiedade e saudade.
A angústia e a ansiedade apertam-me o peito e a garganta. Pesam-me quilos sobre as costas, sufocam-me, assomam-me água aos olhos, dor ao coração.
A saudade crava-me garras na carne, quase até sangrar. A saudade puxa-me lá atrás, exactamente aos lugares e aos momentos que já lá não estão. A saudade agarra-me pela mão e passeia-me pelas estradas que foram, traz-me as pessoas inalcançáveis porque viraram esquinas, dobraram a folha do livro, sumiram na nuvem que se desfez ...
A saudade acicata-me a alma, porque é a inevitabilidade frente aos meus olhos, porque os caminhos sempre são apenas para a frente. Na vida não há retrocessos. Reescritas, também não. A vida não tem rascunhos. Sempre e só o texto definitivo.
O tempo, inexorável, segue adiante. Há um momento em que são mais os lugares devolutos que os preenchidos e diariamente a vida se redesenha, queiramos ou não, saibamos ou não viver com ela num novo figurino.
De repente, consciencializamos que a realidade que conhecíamos, que nos dava segurança e conforto, que tinha as regras e os parâmetros no meio dos quais nos movíamos, desapareceu, sumiu sem avisar.
Não vale a pena buscar, procurar, tentar reencontrar.
Pessoas, coisas, lugares, rotinas, as certezas e as verdades que orientavam os nossos azimutes, os sentires e até a vibração das nossas vivências ... de repente foram, já não estão, escaparam ao nosso olhar. E de repente também , ficamos numa terra estranha, estrangeiros no nosso lugar, sem pertença ou raiz.
E tudo deixa de fazer sentido, tudo deixa de ter nexo ou motivo. Resta o vazio e o silêncio.
A história encerra o capítulo, a agulha percorre a última faixa do disco ...
Anamar