Já faz hoje sete anos que a minha mãe partiu.
Foi embora de mansinho, sem estardalhaço, com aquela discrição de pessoa humilde que sempre a caracterizou.
A vida permitiu-lhe fechar o ciclo perfeito, pois noventa e sete anos antes, exactamente noutro onze de Abril, numa vilazinha do interior no Alentejo, haveria de abrir os olhos ao mundo, para o bem e para o mal...
Sete anos que me deixaram numa orfandade que não sei descrever. A sensação de solidão, de desproteção ... a sensação de ausência de referências, de me sentir perdida, têm às vezes uma dimensão atroz e abissalmente doída.
São emoções que contrariamente ao que imaginava, têm-se instalado em grau crescente na minha vida à medida que o tempo passa. Costuma dizer-se, sobre perdas emocionais e afectivas, que elas nunca desaparecem, mas que o tempo é um conselheiro mestre no seu esbatimento. Tal como a terra abate, no chão que as acolhe, assim a dor vai amainando, ficando mais difusa e leve para o ser humano que as suporta.
No meu caso, isso não tem acontecido. De dia para dia, o buraco na alma deixado pela ausência da minha mãe, bem ao contrário, parece recrudescer e é como se a ferida sangrasse tanto ou mais que nos primeiros tempos.
Comunico-me mentalmente com ela quase em permanência, como se ela por aqui ainda estivesse. Pareço pressenti-la quando a chamo, a questiono, a suplico. Pareço perceber-lhe respostas, pareço sentir-lhe o amparo ...
Vivo só. Na minha casa, sou eu e dois gatos. O silêncio "ribomba", a ausência de "vida" parece respirar-se em cada canto. São as noites, são os dias ... são de novo as noites ...
Entrei numa escalada de desinteresse, sem rumo, sem foco ... não vivo, sobrevivo apenas.
E ninguém vive se não tiver metas, objectivos, sonhos ... ninguém vive se por cada manhã não sentir dentro de si uma razão, um valer a pena, um incentivo para reiniciar a jornada. E esses são exactamente os meus dias. Nada parece justificar-me o reinício. Nada é suficientemente importante para me reerguer.
E é quando percebo claramente a falta que ela me faz.
Sempre foi uma pessoa de bem com a vida, sem exigências ou vontades elaboradas. Era feliz com pouco, nunca tinha vontades ou sonhos acima do que considerava o necessário e o suficiente. Sempre tinha uma palavra de compreensão e conciliação. Vivia em função da felicidade dos outros ... dos seus ... da família. E procurava sempre aplacar os desacertos de quem a elegia para amparo e ajuda.
Tanta coisa que hoje, só com ela poderia dividir !... Tantas angústias que hoje, só ela poderia entender ! Tanto amparo e afecto que hoje, só ela me poderia dar !... Tanto colo que já não tenho !...
As pessoas estão nas suas vidas. Com as minhas filhas tenho uma objectiva dificuldade em comunicar. Há uma décalage geracional perfeitamente cavada entre nós. Hoje, eu estou sempre errada. Hoje, sou eu a omissa por definição, e aquela que parece nunca ter capacidade ou inteligência para perceber o que acontece, que não entendo, que não sabe fazer pontes, mas sim conflituar.
As outras pessoas, têm mais o que fazer. Cada um vivendo ou apenas sobrevivendo, creio ( às vezes vindo à tona à força de esbracejar ), como pode e dá. Vão também passando pelos intervalos da chuva, com a resiliência e a coragem que têm ... Não adianta muito, quando nos cruzamos ...
E por tudo isso, remeto-me ao meu canto, cada vez mais. A paciência é pouca, a motivação decrescente, o interesse não justifica. E portanto, cada vez mais desaprendo a socialização, cada vez mais emperro na linguagem escrita ou falada ... Não vale a pena !
E um cansaço atroz invade-me. Sei que estou psicologicamente afectada, sei que nada disto me é benéfico, sei que as forças e o empenho claudicam, tropeçam nos dias enormes... que não tão grandes porque parte deles os passo a dormir ...
É então que vejo a minha mãe sentada no sofá da salinha, é então que a oiço com aquela bonomia que a caracterizava, dizer-me : " Não pode ser, filha ... tens que reagir ..."
E a sua mão encarquilhada acariciava-me o rosto, enquanto que o seu colo se agigantava e me aninhava com a doçura que apagava a dor, que injectava a força e a coragem na minha alma ...
Hoje ela já não está ... hoje, estou irremissivelmente SÓ !...
Anamar