domingo, 11 de fevereiro de 2018

" PORQUE OS PENSAMENTOS TAMBÉM SÃO COMO AS CEREJAS ... "





Uma  tarde cinzenta  de um  Domingo  de  Carnaval  meio  mascarado  de  quarta feira  de  cinzas ...
A minha música que embala, o meu computador que me dá voz, o meu silêncio que pacifica, o meu quarto com esta janela sobranceira ao casario, Sintra que continua lá, lá por detrás daquilo tudo que já não alcanço daqui, uma que outra gaivota dispersa em céus que não são bem os seus ... enfim, uma realidade tão doce, palco da minha vida, desenhado ao meu jeito há quase década e meia, preenche gratificantemente a minha tarde.

Não sei se seria fácil para alguém que não eu, perceber como esta interioridade me equilibra, me aninha, me acarinha o coração, e como este ninho protector me faz sentir tão segura, tão defendida da adversidade com que a vida, em frequência, nos presenteia.
É um porto seguro, é um cais de ancoradouro, é uma estação de chegada ...
Os gatos dormem no calor do radiador aos meus pés.  Também eles fazem parte da moldura que me rodeia .

Inevitavelmente penso na minha vida.  Na que detenho actualmente, na que já atravessei, na que terei adiante, sabe-se lá até quando ...

A que me é oferecida por cada manhã em que acordo, viva... e que aprendi por isso a amar e a valorizar ... começou a fazer-me finalmente o sentido de que talvez nunca tivesse desconfiado, ou de que andasse injustamente distraída.
Comecei a senti-la como um presente de laço e fita .
Comecei a olhá-la como uma guloseima de dia de festa.
Comecei a aprender a usufruí-la, sorvê-la  como refresco doce, disponível a atleta em meta de chegada.
Comecei a degustá-la como aquele pratinho de farófias que a mãe nos punha na mesa ... iguaria perecível, quando a última colherada esvaziasse a taça ...
Tudo isto, toda esta atenção mais desperta à sorte que me é disponibilizada, adveio da modelagem doída, operada no meu coração,  adveio do milagre operado na minha alma, pelos tempos adversos, dolorosos e violentos que atravesso, face à degradação irreversível e sem volta, da minha mãe, e tudo o mais que rodeia esta situação.  Face ao anúncio iminente da sua partida, e talvez por isso eu poder perceber, como ela encheu a sua vida, de uma forma simples, singularmente alegre e feliz, com bouquets de pequenas coisas.  Perceber como ela sempre deu o justo valor ao que foi o passar por aqui, sem exigências, a dividir-se com todos os que amou. E amou muito ... todos.
Perceber que ela ainda não partiu, simplesmente porque ainda não o quis.
Porque para ela, a vida sempre foi muito ... sempre foi tudo.

Aprende-se com o sofrimento.  Cresce-se nas vicissitudes. Amadurece-se na dor.

Por tudo isso, duramente aprendido, não só me posiciono com mais positividade e relativismo face ao dia a dia, como posso agora olhar o passado com mais bonomia, aceitação, benevolência e tolerância.
E  gratidão, sem dúvida.
Por tudo isso, em momentos de reflexão e interioridade, como estes, exercito a paz com a vida que vivi, com humildade e sem exigências,  pratico uma mentalização de aceitação e alegria com o que conheci, quem conheci, percebo a sorte e a riqueza que tive, porque a vida se me coloriu generosamente, e afinal me abençoou ....
E  procurarei não esquecer nunca, que  sem dias de chuva não haveria arco-íris !...

Sobre a estrada que ainda terei que percorrer, acredito na sua mansidão e sombra ...
Acredito que o mar estará "flat", que não haverá grandes tropeços no caminho, que haverá pássaros e sonhos azuis ... porque acredito que a existência não poderá ser um castigo, e que a hora da reconciliação sempre chega !...

Anamar

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

" PARTIDA "






" Não existe partida para os que ficam para sempre nos nossos corações" ...

É uma frase feita, talvez.  Daquelas boas de aplicar nas pagelas das câmaras mortuárias.

A minha mãe está no fim, acredito.  Não o quero encarar de frente.  Prefiro fingir que não é bem isso, ou então que talvez não seja tão difícil assim de suportar, ao acontecer, dada a situação mais que precária, dolorosa, violenta, de sofrimento psicológico atroz, em que se encontra há já tanto tempo, e porque afinal ... como profetiza a frase, não existirá de facto, partida.
O meu pai morreu há quase 26 anos.  Recordo até hoje, não o seu rosto, não a sua expressão, mas apenas os seus olhos e as suas mãos ...
Ah, é verdade, e muitos jeitos, hábitos, pequenas manias do dia a dia que o caracterizavam.
É essa panóplia de marcas deixadas por uma pessoa, que a tornam ímpar, irrepetível e provavelmente, inesquecível ...

A minha mãe é uma guerreira de vida.
A sua rebelião contra a inevitabilidade da existência é que lhe tem permitido driblar vezes sem conta, espantosa e quase absurdamente, as ameaças sérias de ordem de marcha.
Com quase 97 anos, com um comprometimento cardíaco seríssimo, que inclusive lhe inviabilizou o sucesso de um cateterismo, há já anos atrás ... com uma demência profunda, com uma imobilização que a confina há largo tempo a uma cadeira de rodas ( ela que sempre foi autónoma, independente, indómita ) ... claudica, oscila, parece sucumbir ... mas não cai.
E não cai, porque quer ficar.  Quer estar.  Agarra-se, como um náufrago, ao pedaço de madeira que lhe flutua ao lado.
Tem momentos em que parece ter desistido.  "Negoceia", inclusive, com os seus mortos e os seus santos, que bem poderiam vir buscá-la ...
Mas quando a coisa fica feia, como uma menina reguila, parece tocar à campainha e fugir rua abaixo, antes que lhe abram a porta !...

Acredito que o segredo reside aí mesmo.
Nessa força indomável de resistência face aos temporais da vida, e de aposta no amor a todos nós, os poucos que formamos a sua família.  São esses que ela não quer de forma nenhuma, deixar para trás !
Queria poder viver até ver as netas terminarem os cursos ... até ver o António chegar ao liceu ... depois à Faculdade ... ver a Vitória nos Jogos Olímpicos  ( já que no seu tempo e para seu grande desgosto, as mulheres não praticavam desporto ) ... ver o Frederico a ser tão bom aluno quanto a mãe ... possivelmente ver a Teresa, recém-chegada a este mundo, talvez casadoira ... não sei !!!

"Como queres que eu vá e os deixe cá, todos ?" - dizia-me, quando ainda dizia ...
"Como queres que aceite não ver mais a minha casa e as minhas coisas ?" - dizia-me, quando ainda lhe era dado sonhar ...

Desta feita, o cansaço é extremo.
Desta feita, cerrou os olhos, como querendo que lhe deixem a alma na penumbra reconfortante de claustro de mosteiro.
Parece incomodar-se com a luz, com o som, com o sol, com a alegria ... com a Vida e todas as suas manifestações de exuberância .
Parece ter encerrado as portadas, ter despejado as flores que adorava, das jarras, ter silenciado por dentro, do coração à garganta, e ter permitido que uma indiferença cinzenta e pesada, ameaçadora de borrasca, esteja a descer sobre ela ...
Sobre ela, e sobre todos nós ...

Não haverá partida, tenho a certeza !
A minha mãe nunca foi mulher de despedidas.  Por isso, sempre nos "indrominou" numa pirraça de menina brincalhona ... Era o que faltava que a apanhassem distraída !  Ainda não era hora !...

A minha mãe está a ficar distraída agora ... parece-me ...

Anamar

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

" VOLTAR "






Voltar é juntar dois lados
Reunir pedaços
Reescrever a história ...
É buscar cá dentro
aquilo que fomos,
lembrando o guardado
na nossa memória ...

Voltar é ter na vontade
um recomeço  outra vez     
de cabeça erguida,
deixando p'ra trás
as lembranças tristes
a mágoa sentida
o desencanto e as dores ...
É prender a esperança
É crer no futuro
Apostar no sonho
de novos amores ...

Voltar é sorrir à vida,     
como se ela fosse
uma nova alvorada
É renascer
É pegar a estrada,
sempre olhando em frente
e é acreditar   
fazer do amanhã
um novo presente !...

Anamar