sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

" PARTIDA "






" Não existe partida para os que ficam para sempre nos nossos corações" ...

É uma frase feita, talvez.  Daquelas boas de aplicar nas pagelas das câmaras mortuárias.

A minha mãe está no fim, acredito.  Não o quero encarar de frente.  Prefiro fingir que não é bem isso, ou então que talvez não seja tão difícil assim de suportar, ao acontecer, dada a situação mais que precária, dolorosa, violenta, de sofrimento psicológico atroz, em que se encontra há já tanto tempo, e porque afinal ... como profetiza a frase, não existirá de facto, partida.
O meu pai morreu há quase 26 anos.  Recordo até hoje, não o seu rosto, não a sua expressão, mas apenas os seus olhos e as suas mãos ...
Ah, é verdade, e muitos jeitos, hábitos, pequenas manias do dia a dia que o caracterizavam.
É essa panóplia de marcas deixadas por uma pessoa, que a tornam ímpar, irrepetível e provavelmente, inesquecível ...

A minha mãe é uma guerreira de vida.
A sua rebelião contra a inevitabilidade da existência é que lhe tem permitido driblar vezes sem conta, espantosa e quase absurdamente, as ameaças sérias de ordem de marcha.
Com quase 97 anos, com um comprometimento cardíaco seríssimo, que inclusive lhe inviabilizou o sucesso de um cateterismo, há já anos atrás ... com uma demência profunda, com uma imobilização que a confina há largo tempo a uma cadeira de rodas ( ela que sempre foi autónoma, independente, indómita ) ... claudica, oscila, parece sucumbir ... mas não cai.
E não cai, porque quer ficar.  Quer estar.  Agarra-se, como um náufrago, ao pedaço de madeira que lhe flutua ao lado.
Tem momentos em que parece ter desistido.  "Negoceia", inclusive, com os seus mortos e os seus santos, que bem poderiam vir buscá-la ...
Mas quando a coisa fica feia, como uma menina reguila, parece tocar à campainha e fugir rua abaixo, antes que lhe abram a porta !...

Acredito que o segredo reside aí mesmo.
Nessa força indomável de resistência face aos temporais da vida, e de aposta no amor a todos nós, os poucos que formamos a sua família.  São esses que ela não quer de forma nenhuma, deixar para trás !
Queria poder viver até ver as netas terminarem os cursos ... até ver o António chegar ao liceu ... depois à Faculdade ... ver a Vitória nos Jogos Olímpicos  ( já que no seu tempo e para seu grande desgosto, as mulheres não praticavam desporto ) ... ver o Frederico a ser tão bom aluno quanto a mãe ... possivelmente ver a Teresa, recém-chegada a este mundo, talvez casadoira ... não sei !!!

"Como queres que eu vá e os deixe cá, todos ?" - dizia-me, quando ainda dizia ...
"Como queres que aceite não ver mais a minha casa e as minhas coisas ?" - dizia-me, quando ainda lhe era dado sonhar ...

Desta feita, o cansaço é extremo.
Desta feita, cerrou os olhos, como querendo que lhe deixem a alma na penumbra reconfortante de claustro de mosteiro.
Parece incomodar-se com a luz, com o som, com o sol, com a alegria ... com a Vida e todas as suas manifestações de exuberância .
Parece ter encerrado as portadas, ter despejado as flores que adorava, das jarras, ter silenciado por dentro, do coração à garganta, e ter permitido que uma indiferença cinzenta e pesada, ameaçadora de borrasca, esteja a descer sobre ela ...
Sobre ela, e sobre todos nós ...

Não haverá partida, tenho a certeza !
A minha mãe nunca foi mulher de despedidas.  Por isso, sempre nos "indrominou" numa pirraça de menina brincalhona ... Era o que faltava que a apanhassem distraída !  Ainda não era hora !...

A minha mãe está a ficar distraída agora ... parece-me ...

Anamar

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