sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

" COMO UM PRESENTE DE NATAL ... "






Liceu Nacional de Évora - MEMÓRIAS


As gaivotas voavam em bando  bem  aqui por cima.
A tarde estava cinzenta, emborrascada, desalinhada.   Elas também.
Parecia não se chocarem  nos céus, apenas por acaso, num remelexo indisciplinado, acompanhado de grasnidos cortantes.
Tinham pressa, as gaivotas, uma estranha pressa de recreio de criançada.  Uma aparente hora de ponta lá pelo alto.
Perdi-me por ali, quieta, apenas olhando e pensando, do alto do meu sétimo andar : como o tempo nos foge !  Como corre célere, dobra esquinas, voa nas rectas, desaparece no nevoeiro, escapa-nos na vida !...

Hoje experimentei viver uma espécie de milagre.  Um milagre de Natal, seguramente !
É certo que os milagres têm tamanhos, talvez.  Talvez tenham graus, julgamos ... mas não deixam de ser milagres !

E entrar na máquina do tempo, recuar mais de meio século, abrir cortinas e espreitar ...
Desencaixotar imagens, reabilitar rostos, desempilhar emoções, faxinar a poeira dos anos como quem abre uma arrecadação de conteúdo meio esquecido, como quem viola um baú arquivado que não cogitávamos arejar ...
Esgaravatar em lembranças algo difusas já, em memórias meio empalidecidas, rebuscar histórias que nos fogem, e querer agarrá-las com desespero, antes que se esvaiam de vez, só de pirraça ...
Virar menina outra vez , pegar na pasta, vestir a bata, calcorrear as ruas, procurando nas calçadas o eco dos meus passos de então ...
Esperar de novo que o sino interrompa as brincadeiras, o jogo do "mata" e do agarra,  no encaminhamento da meninada para as salas ( será que ainda toca ? ... )
Olhar o sr. Francisco , miudinho, mexidinho, pelos claustros ... afobado, no uniforme de botoadura dourada ...

... requer uma robustez de coração, e uma estrutura de alma que não lembra ao Diabo !  ( rsrsrs )

Pois foi o que me aconteceu neste dia cinzento, de gaivotas em algarviada nos céus aqui por cima.

Quando as tecnologias da actualidade  ( que invadem, quantas vezes abusivamente as nossas casas e devassam as nossas vidas além da conta ), resolveram surpreender-me e me deixaram bem no colo, um "embrulho de Natal", com laço de fita e tudo, com estrelinhas em piscadela, recheado de surpresas e emoções, de sorrisos e de afectos resguardados nas memórias, conservados nos tempos, partilhados nos corações, arquivados na vida  ... eu fiquei pasma, enquanto o sorriso enternecido e a lágrima emocionada se atropelavam, na pressa de romper  !...

Sensação de contornos difíceis de definir... Surpresa, alegria, ternura ... saudade !
Sim ... saudade, o sentimento maior de todos eles, sem sombra de dúvida !...

Bem haja a quem tenazmente me "procurou" ao longo dos tempos !





Anamar

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

" WHEN WINTER COMES ..."




Assistir ao declínio de um pai ou de uma mãe, é assistir à pré-figuração do seu próprio fim.
Não se descreve.  Sente-se.  Vive-se !
É um processo de uma violência sem tamanho, no misto de emoções, de estados de alma, de interrogações, de culpas, de dúvidas, de impotências e de medos que nos assaltam e nos atormentam, dia após dia.

Cair-nos nos braços aquela "criança" engelhada, encarquilhada, aquele ser tão indefeso quanto um dia o teremos sido... aquele ser cujos olhos opacizados,  pouco já  exprimem além de ausência, tristeza e indiferença ...

Cair-nos no colo alguém que quase nos volta a caber nele, naquela figura fetal  e desarticulada, esquálida e esfíngica, de ossos cobertos por pele ressequida ... naquelas pernas imprestáveis, naqueles braços que mal nos envolvem o pescoço, naquelas mãos que atontadamente atiram beijinhos para todos e para ninguém, para tudo e para nada ... para um  infinito, quiçá finito na memória que já não tem ...

Escutarmos aquelas palavras desconexas, aquelas frases sem significado, discursos sem linhas de lógica ... encararmos posturas que não reconhecemos, identificamos e jamais lembramos no percurso daquela alma ...

Confrontarmos aquela fragilidade, aquela completa dependência, aquela folha de papel pregueado que o destino amassou e jogou para uma cadeira, que nem consegue mover ...

... são realidades em que mergulhamos, com que convivemos e que temos que aceitar, embora com revolta, embora sem que o percebamos, embora o achemos monstruoso, aviltante e injusto !
Embora seja uma gigantesca maré que avança e avança e avança, bem por cima da nossa cabeça e do nosso coração, com toda a força destrutiva  da sua agressividade, em dor e em desespero .

Uma mãe e um pai foram sempre as figuras maiores das nossas vidas.
Foram sempre os seres ímpares em quem nos revimos, que ansiávamos alcançar, que desejávamos seguir.
Foram sempre as imagens que o espelho da vida  nos devolvia, como referências, como poço de valores, como repositório de ensinamentos e princípios.
Eram figuras agigantadas, intocáveis, quase inquestionáveis. Eram muralhas e fortalezas inexpugnáveis aos nossos olhos.
Uma espécie de "deuses" confinados à condição humana.
Eram entidades que nos pareciam imbatíveis, irretocáveis, inatingíveis ...
E por isso, "imortais", perenes, imunes, invencíveis por todas as intempéries da vida, inclusive a morte, que não ousamos sequer questionar, quando ainda somos crianças.
Talvez por defesa ...
E recusamos sempre nas nossas mentes, esse pesadelo, esse sossobrar, essa finitude do percurso, afastando para tão longe quanto podemos, esse fantasma que sempre pensamos futuro e distante ...

Até que um dia, aquele pai e aquela mãe, se reduzem de repente ao seu real "tamanho", se remetem de repente, à sua pequenez de barro moldado, à sua dimensão de vulnerabilidade irremediável...
E caem-nos, bem nos nossos braços, que nada podem fazer, além  de segurá-los, ampará-los, aquietá-los no seu calor ... talvez embalá-los numa canção de ninar  ...

E surpreendemo-nos, e sempre somos apanhados desprevenidos e incrédulos, chamados que somos então, à dolorosa condição de pais dos nossos pais, na condução dos seus dias finais, no aconchego dos nossos corações ...

E simultaneamente também, bem na nossa frente, como uma imagem desfocada reflectida num espelho - para que o não esqueçamos - estamos nós mesmos, enfrentando um Inverno que se aproxima a passo estugado, com um frio gélido e paralisante, que ameaça descer ... ali, no virar da esquina !...

Anamar

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

" COMO UMA CONDENAÇÃO "





Cortavam a relva na praceta.
Os sons da rua chegavam-me ao sétimo andar, pela fresta da janela entreaberta, para que o resto deste sol de Outono ainda luminoso e quente ( neste "intermezzo" de regra, de meio de Novembro ), me pudesse inundar a sala.
Breve chegarão os dias escuros, a chuva tamborilará na cobertura do terraço ou escorrerá pelas vidraças.  Breve Dezembro, breve Natal, breve um novo ano ...
E o pingue-pingue do calendário a jorrar dias, datas, anos, numa determinação impiedosa e tirana, sempre irredutível !

O tempo !...

Este tempo que não existe, a empurrar-nos adiante, implacável, na fila imparável em que nos seguimos ...
É uma fila silenciosa, de gentes silenciosas e submissas, em que ninguém ousa contrariar a "ordem normal" .
É uma fila cinzenta, de gentes descoloridas e cinzentas também, que carregam consigo o peso absurdo das memórias ... só das memórias.  Essa, a bagagem que transportamos, enquanto não somos atraiçoados ...
Fernanda Montenegro diz : " Não quero perder a minha memória, porque EU sou a minha memória "!...

A memória ... a nossa identidade, o que nos correlaciona, nos situa, nos refere.
E tão precária, tão a prazo, tão injustamente brincalhona, sempre a olhar-nos com ar de escárnio.
Senhora absoluta dos destinos, algoz de vida, manipuladora da existência ...
Joga de esconde-esconde, trapaceia vezes de mais, ludibria as vontades, desorienta o caminho !
Qual bússola descomandada, qual farol desactivado e imprestável, qual norte sem norte, a memória aliada ao tempo, cria mecanismos e circuitos viciados que conduzem o ser humano a estradas sem luz, a rotundas entontecidas, a túneis escuros sem saída !...

O desgaste físico do Homem, perturba-me, mas entendo que este, como máquina complexa que é, tem associada  a si um prazo de validade.  A deterioração das peças que a constituem parece uma inerência evidente a qualquer mecanismo de utilização permanente.
As engrenagens emperram, os rolamentos enferrujam, os amortecedores tornam-se ineficazes, o envelhecimento instala-se ...
O coração da máquina e os veios de transmissão bloqueiam.
Parece objectivo, compreensível, aceitável ... inevitavelmente !

Agora, a degenerescência do seu centro de comando, a delapidação do seu património essencial, a falência da matriz diferenciadora enquanto ser espiritual, emocional e sensorial que é,  a perda da sua herança pessoal única e intransmissível, a desestruturação do seu arquivo referencial no tempo e no espaço ... são dolorosas, injustas e violentas facécias do percurso a ser trilhado pelo ser humano, com que nos  confrontamos, que não consigo entender, aceitar, sequer conviver pacificamente ...
... provação a que ninguém deveria ser condenado a  sujeitar-se um dia !...

Anamar