sexta-feira, 13 de junho de 2014

"COISAS QUE FICAM ... HISTÓRIAS ANTIGAS "



O  Santo  António,  cartão  de visita e rosto de Lisboa, está de novo no calendário.  No calendário e nas ruas ...

Tenho esse problema mal resolvido na minha vida ...
Seguramente ... porque  se ainda me regressa à memória ano após ano, e me deixa um gostinho de mágoa ténue, é porque não está resolvido na minha cabeça.
Passo a explicar :  desde adolescente, desde os áureos tempos das loucuras, das brincadeiras, dos convívios, na fase irreverente da minha história, e numa altura em que os riscos sociais não eram gravosos ... sempre sonhei festejar uma noite dos "Santos", como se dizia.
Ir a Alfama, percorrer os bairros alfacinhas, madrugada adiante, comer as sardinhas a pingar no pão, o vinho e outros petiscos, ao som das marchas populares, debaixo dos mastros armados nas ruas, com grinaldas e balões, bandeirinhas em papel, ver os tronos nas pracinhas e vielas, visitar as escadinhas, os becos e os pátios ... saltar as fogueiras ... com o cheiro a manjerico a tiracolo ... sempre foi um sonho meu.
A maioria das colegas de faculdade não faltavam, sobretudo as que, sendo da província, estudavam sozinhas em Lisboa, alojadas em residências universitárias ou em casas particulares.
Contavam então histórias inocentes de paródia, de alegria, de irreverência, de saudável convívio, no dia seguinte, ou no outro ... porque o seguinte era o feriado da cidade, e a noite também fora longa, e havia que dormir ...

Eu, nunca tive autorização para ir.  A minha mãe, no seu melhor "estilo de educação", não me permitia alinhar nessas brincadeiras, apesar dos meus pedidos insistentes .

Visse as marchas pela televisão, visse a transmissão dos casamentos na Sé, comprasse um manjerico como mandava a tradição, uma alcachofra para florir, fizesse umas "simpatias" ao Santo, com uma amiguinha vizinha do mesmo prédio ... e já estaria de bom tamanho ...
Até  porque a data, sempre beirava a época de exames, que não se compadeciam com dispersões supérfluas ...

Queimava a alcachofra ( no bico do fogão, porque as fogueiras pertencem às festas ) e deixava-a ao relento para florir, como bom presságio, deitava um ovo num copo com água, para  que nele  se desenhasse ou não, o almejado véu de noiva  ( rsrsrs ), sinal de que, solteira não ficaria ... colocava num prato com água, exposto à madrugada, pequenos papéis dobrados, com nomes de candidatos, para que no dia seguinte, o mais aberto, me desvendasse o esperado nome do futuro namorado ... e pouco mais ...

Essa, a minha "relação" com o santinho casamenteiro, à altura, apesar de, sempre de "olho gordo", eu invejar a liberdade de quem podia brincar noite dentro, numa confraternização e num bairrismo únicos, na noite em que Lisboa se torna menina-gaiteira !

Mas o tempo passa, os anos também, e a época para tudo, esfuma-se ...

Seguiram-se as minhas filhas ...
Essas sim, já não faltavam às festas, na melhor tradição lisboeta, em grupos de amigos e colegas de estudos.
"Vamos aos Santos" ? - ouvia-as combinar pelo telefone ...
E eu, magoada por dentro !...

E nunca percebi, e sempre me interroguei se seria mesmo assim ( e não uma enorme injustiça ao Santo ... ), quando me garantiam no dia seguinte, que a magia, a aura dourada e a mística com que eu emoldurava o evento, estava só na minha cabeça, porque sempre o proibido será o mais desejado ...
Uma grande confusão, uma grande barafunda, sardinhas a preço proibitivo, frias e mal conseguidas, num atendimento péssimo...
Em suma, simplesmente um bilhete postal elaborado e aproveitado para turista consumir  ...
A isso se resumiam os Santos Populares ...

Bom, não posso confirmar nem desmentir .
Acho que vou morrer sem nunca ter feito o gosto ao pé, à boca, aos olhos e ao coração !
O Sto. António sempre irá ser para mim, apenas um registo de imagens desfilando pela televisão, um clima adivinhado mas nunca vivido, de um povo e de uma cidade que jamais toquei de perto ou experimentei, um pulsar desconhecido, de corações foliões que se partilham a compasso, num bairrismo que só eles conhecem, uma mágica ou uma "religião" seguida fervorosamente, sobretudo pelas almas brejeiras de pessoas simples, anónimas, que por tradição, fé e alegria esfuziante, esquecem tudo por uma noite, e vêm p'ra rua brincar !!!...


Anamar

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