sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

" APONTAMENTO - II "




Numa mesa em frente, um homem idoso de cabelo branco e sobretudo escuro, acomodou-se e pediu uma sopa.
"É só a sopa" ? - inquiriu a empregada.
" É só a sopa " ! - confirmou o homem, sozinho, com ar distante.
Percebo que vai dizendo umas coisas cá e lá, a meia voz.  Penso que está, e não está neste café, o único aberto nas imediações, em dia dito de "Ano Novo".

Mais uma ou outra pessoa, das do costume, e o café está praticamente vazio.
São sobretudo homens avulsos e velhos ;  a maioria já portadores de enfermidades visíveis, inerentes à idade, e à vida ... talvez.
E solidão ... muita solidão espreita por aqui !

Afinal, o  que leva um homem idoso, a um café quase deserto, sombrio, desconfortável, iluminado pela luz fria das fluorescentes no tecto, um espaço incaracterístico, feio, angustiante mesmo ... a pedir uma sopa, na inutilidade deste dia que promete sonhos, esperança, calor humano, aos que têm gente em casa à espera ??...
E lá fora, um sol lindo num céu azul, diáfano  e imaculado, e uma temperatura, eu diria amena, a lembrar aqueles dias beirando a Primavera !...

Na mesa ao lado, outro homem que já esteve, e já saíu, volta a estar ...
Já o conheço de outros dias.  É magro, macilento, barba por fazer, sempre enverga a mesma roupa. Cachecol ao pescoço, sem casaco, ar pobre e postura de pardalito aos saltos .
Por cada vez que chega, passa pelo balcão, enche um copo com água e senta-se.  Bebe a água gole a gole, degustando-a, como se de um verdadeiro néctar se tratasse, e fixa com um olhar baço  mas aparentemente interessado, um televisor que repete incansavelmente, as passagens de ano pelo Mundo.
Tem um grau de demência acentuado.  Não sossega na mesa.  Tem um fácies inconscientemente alegre.  A alegria e a ingenuidade dos que estão do outro lado, possivelmente delirantes, a observarem o lado de cá.  O lado da "normalidade" ...

Dirigiu-se a mim, rindo sempre, e entregou-me um pequeno rectângulo de papel, rasgado de um qualquer rascunho que encontrou, presumo.
Segundo ele, uma "mensagem do Menino Jesus" para mim.

Um texto sem sentido, rabiscado em letra de imprensa, dois pequenos corações e um desenho infantil, completavam o escrito.
Interessante início de ano, de facto !...

A  ternura deste gesto, assim do nada, das mãos de um desconhecido, um pacífico e simpático atontado, neste café escuro quase deserto, foi inesperadamente, a minha mensagem possível de Ano Novo !...
Será ela portadora de alguma premonição ???...

Anamar

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