sábado, 10 de janeiro de 2015

" A ESTAFETA "



Ainda não eram oito.
Oito horas da manhã, e o dia, de pestana fechada, decidia se abriria radioso e iluminado, azul e translúcido.
Ouvi-as.  Andavam por aqui.
Os seus grasnidos atravessavam os céus, e penetravam-me o resto do sono.
Não entendo estas gaivotas do betão, reféns da lixeira, oportunistas e estúpidas .  Afinal, gaivota que se preze, deveria sempre olhar para baixo e ver mar, deveria sempre ser salpicada pela espuma, nos rochedos, deveria patinhar na babugem da rebentação no areal deserto ... ou mesmo adormecer no embalo das marés, em tempos de mar "flat" ...

E logo elas, que têm asas !
Braços estendidos que as levam num baile molenga, ao sabor dos golpes de vento, as levam a cavalgar a aragem salgada, a verem o mundo de cima ...
Um mundo sem horizontes como é o mar, um mundo de nasceres e pores de sol, de mansidões e tormentas ...

Pudesse eu !...

Mas eu não tenho asas.  Tenho raízes.  Raízes que me prendem a um chão que nem é meu !...
Estou aqui, a morrer aos poucos, neste cubinho empoleirado em seis outros cubinhos, ao lado de sete cubinhos, frente a dez cubinhos ... num desenho atamancado em 3D.
Uma floresta de cogumelos mal nascidos !!!

Só o meu sonho, o pensamento e o coração podem voar.  Só eles são livres !
E vão, porque eu sei que para lá do que vejo, há muito mais.  Porque eu sei que além, onde a bola de fogo adormece todos os dias, quando a penumbra e a escuridão descem até mim, fica ele.
Esse mar que é sempre mágico, indomado, e berço de sonhos que às vezes nem se confessam ... que não aceita muros ou fronteiras, rédeas ou arnês ... lá longe !...

Eu já tive uma gaivota.
Mas essa, era uma gaivota a sério, não era uma gaivota mercenária.  Era livre e solta, e não era louca. Era garbosa, altiva, elegante ... bico empinado ... Tinha "pose" !
Vinha por aqui, rasava-me a janela, grasnava, encarrapitada na esquina do terraço sobranceiro.
Piscava os olhinhos miúdos, meneava a cabeça e olhava-me.
Eu sei muito bem que ela me olhava com comiseração.  Olhava as minhas raízes  fundas inevitáveis, cravadas na terra, perscrutava os meus olhos de olhar comprido, lânguido e sonhador ... e escutava o meu espírito intranquilo que baloiçava ... baloiçava ...

Fizemos um trato.

Ela vinha e contava-me das falésias, das areias e das algas.  Falava-me dos rochedos, cama de pancada das ondas impiedosas.  Descrevia-me a renda que o recuo da maré, por cada dia, deixava na areia, como um fino véu de noiva ou brocado de festa ...
E quando partia, a tempos de não perder o festim do repouso do "rei", carregava consigo as minhas emoções, era mensageira dos meus sonhos, cúmplice dos meus desejos, portadora das minhas inquietações e mágoas ... estafeta de pedaços do meu eu ...
E levava-os para lá da terra, para lá das nuvens, para lá das encostas ... para além ... onde o silêncio  se  embrenha  na  noite  e  onde  as  lágrimas  ficam  mais  salgadas  ainda ... No  mar !...

Há tempos que a   não vejo !...



Anamar

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