sábado, 20 de fevereiro de 2016

" A MINHA QUARESMA "





O Carnaval passou.  No calendário religioso, entrou-se na Quaresma.

Tive formação católica desde menina.  Tradicionalmente, também os meus pais, ou melhor, a minha mãe, cumpriram os preceitos em relação a mim.
O meu pai sempre foi ateu convicto, a minha mãe, "crente", não praticante, contudo.
Como timoneira quase absoluta da nossa curta família, decidiu que eu seria baptizada, que eu assistiria a missas dominicais, e que oportunamente, chegada a idade, eu frequentaria a catequese. Decidiu que mais tarde faria a Primeira Comunhão, o Crisma e a Profissão de Fé.
O meu pai "resistiu" inicialmente ao meu baptismo, que só se concretizou quando eu já tinha 4 anos de idade.
Depois, capitulou e distanciou-se desse percurso.

E eu, sem ser perguntada, lá fui !!!

No liceu, ao tempo, as aulas de Religião e Moral eram integrantes do currículo, e ministradas por um padre.
Em Évora recordo o Padre Manso ... enjoativo que só !...

Pelos 16, 17 anos, atravessei uma crise de misticismo.  Em plena idade "do armário", em plena e difícil adolescência, com problemas existenciais da mais variada ordem a atormentarem-me, com dúvidas, angústias e inseguranças a perturbarem-me, muito só ( porque filha única, em educação excessivamente castradora ), voltei-me perturbadoramente para a Igreja.
Nela encontrava refúgio, respostas, caminhos, ou ... julgava encontrá-los !
Passei a assistir  diariamente à missa, passei a ser de confissões e comunhões com excesso de regularidade ...

Na minha paróquia estava ao tempo, um padre muito novo, muito bonito, muito dinâmico e com um ascendente notável sobre os jovens, que facilmente mobilizava e arregimentava para as iniciativas que implementava.
Tinha uma linguagem vanguardista ... próxima.  Introduziu a missa acompanhada com cânticos à viola, que ele próprio tocava, com adesão e participação óbvia, dos mais novos.  As confissões tornaram-se "conversas" tidas cara a cara ( se o quiséssemos ), na sacristia, o que as tornava menos penalizantes,  obviamente ...
E tinha uma voz perfeitamente arrebatadora e celestial ... que nos transportava, ao cantar, a um qualquer céu que eu não sabia muito bem onde se encontrava !...

E andei por ali uns tempos, oscilando entre estados de alma atormentados  ( que sempre achava pecaminosos, maculados, culpabilizantes ), e a redenção que os Sacramentos da Igreja me repunha, readmitindo-me na essência e pureza do Seu seio, mercê da adequada penitência.
Oscilava, seguramente ... com precária convicção !...

Aos 19 anos, conheci e casei com um homem convictamente agnóstico.  Claro, que apenas no Civil ...
Posteriormente, as minhas duas filhas também não foram baptizadas.
Escolha nossa, na circunstância.  Nada impositivo, coerência de alma, apenas.
Mais tarde, em consciência, teriam total liberdade de escolher sê-lo, na religião católica ou em qualquer outra ... Ou não o serem, simplesmente !...
Afastei-me totalmente da Igreja.
Já então pusera em causa muitas orientações inaceitáveis que perduram até hoje, um conservadorismo absurdo e bafiento,  e um desconhecimento e distanciamento cómodos das realidades objectivas e das dificuldades com que o ser humano se confronta e se debate diariamente .
E não se vislumbrava sequer, por perto, nenhum Papa Francisco !...

Os anos avançaram, a maturidade e o conhecimento também.
A observação, a capacidade de análise, de crítica e de opção, evoluíram.
Procurei-me isenta nas escolhas, livre nas decisões, avisada na observância dos dogmas, dona dos meus caminhos.

Hoje,  no meu laicismo assumido, não professo nenhuma corrente religiosa.  Digo-me agnóstica, porque não nego ... desconheço !
E tenho comigo outras convicções, talvez mais alicerçadas na formação científica que me tem forjado ao longo da vida.

Mas continuo a entrar nas igrejas.
Continuo a admirá-las arquitectonicamente, do ponto de vista histórico, cultural, monumental.
Continuo a sentir-me bem no seu interior, a buscar a paz do seu silêncio, a quietude das suas pedras, a beleza dos seus altares de talha, o cheiro das velas tremeluzentes que se consomem, o eco dos seus claustros, a vetustez das suas imagens compungidas ...
Hoje, só assisto a serviços religiosos, por imposições sociais.
Mas continuo a emocionar-me com a luz coada por frestas e vitrais, com a sonoridade esvoaçante dos seus silêncios profundos .
Hoje, quando entro, silencio, recolho-me ... resguardo-me em mim mesma.
Ocupo  o último banco, onde me sento e fico.  E espero ...  O quê ?  Não sei !...
Talvez já só respostas humanas dentro de mim, e não respostas divinas, às minhas inquietações, às minhas inseguranças e às minhas interrogações .
Procuro a serenidade necessária ao tumulto da existência.
Procuro conciliação comigo e com o mundo.  Falo-me e questiono-me e busco equilibrar-me nas raivas, nos amores, nas decepções e no tumulto de todas as emoções terrenas que me assolam e me dominam ...  De certo modo, ali busco fazer a minha Quaresma interior ...

Quase sempre saio mais leve, mais alinhada, mais reforçada.
O diálogo silencioso comigo terçado, é uma pacificação da alma, é um reforço energético para o espírito, é um encontro ... é um êxtase.

Afinal experimento-o também, da mesma forma, frente ao mar incessante, calmo ou tormentoso ...
Experimento-o também quando olho o firmamento azul, intensamente límpido e lavado, inundado por um sol luminoso e branco ... como hoje ...
Experimento-o quando a brisa gélida de um Inverno promissor de Primavera, que nos trespassa e talvez nos afague, nos convida a festejar, a glorificar a Natureza,  e sobretudo a bendizer o privilégio de estarmos vivos !!!...

Anamar

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