segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

" CONTO DE NATAL "





Eu tinha um gato e uma gaivota ...  Já todos sabem.

Há para lá de tempo que eles povoam os domínios que o meu olhar alcança, encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar.
Neste meu tempo de silêncios, de muros altos e horizontes distantes, neste tempo de muita gente e poucas pessoas ... habituei-me à janela.
Da janela eu sou dona do mundo!  Salto as casas, os telhados, as chaminés e os muros, que não me interessam nada, e voo lá para bem longe, onde as escarpas da serra se divisam, onde as nuvens se passeiam, onde o sol adormece e onde a lua sempre assoma, engalanada de festa.
Monto a cauda dos arco-íris, quando se desenham e participo das "raves" estelares, quando desbundam na agitação feliz dos solstícios.
Tenho a brisa que me afaga o cabelo, tenho o ouro e o vermelho do plátano que em rituais de adormecimento se despe, preparando o sono regenerador, neste Outono já Inverno.
Tenho o som do mar, ora tempestuoso ora doce, no bater e no estreitar dos rochedos com carícias atrevidas ...
Isto, já sem falar na canção dos búzios, que de lá me contam o vaivém das ondas ...
E tenho os cheiros dos musgos e das carumas, dos azevinhos e da humidade sombria que amarinha os troncos, o cheiro das heras e da folhagem tombada que atapeta os caminhos ... que eu não vejo, não escuto e nem cheiro, mas que adivinho, porque os tenho todos guardados na mente e no coração.
E eu sou livre de querer, de inventar ou só de lembrar !

E depois, tenho a minha gaivota que me liga aos céus, e o meu Farrusco preto lá de baixo, que me prende à terra .
E entre este céu e terra vou vivendo, rica de sonhos e de amores.

Só que ...
O meu Farrusco partiu !  Não sei dele faz tempo !
Bem me esgueiro da janela, bem tento variados e possíveis ângulos da vista o poder alcançar ... ingloriamente !
Se chove, esmiúço os recantos do terraço, cantos protectores e de guarida ... em vão !  Se faz sol, esmiúço os muros de espreguiçamento, os parapeitos de sestas ... em vão !
Eu sei que os gatos são aventureiros e independentes.  Nisso, somos bem iguais.  Eu sei que os gatos são irremissivelmente sonhadores, teimosos e livres.  Nisso, somos mais iguais ainda ...
Mas o Farrusco já há muito que é um gato ancião, que eu sei, e a sua provecta idade deveria contê-lo na aventura e no devaneio.  Seria prudente.

Depois, também não é justo que o Farrusco faça isto comigo em plena quadra natalícia ...
Deixar-me com o coração apertado, o olhar perdido e uma orfandade que me atormenta a alma ... não me parece bem, nem coisa adequada  ao coração generoso de gato !...

Não quero acreditar que ele partiu para a Terra do Nunca, sorrateiramente (com a discrição que só eles sabem ter ),  porque nunca vou poder aceitar que ele se cansou do meu terraço, da Terra dos Homens, dos frios Invernos, impiedosos para um gato cujo único tecto é o céu estrelado das noites escuras ... se cansou da barriga vazia e da incerteza dos restos deixados por uma que outra alma caridosa ... se cansou até do amor que cá de cima eu lhe devotava, em segredo ... sem que ele soubesse ...
Porque afinal, nós tínhamos um pacto silencioso de afecto.  Ele era " pertença " minha, há muito !

Hoje, eu vasculhava uma outra vez o terraço do Farrusco ...
Com um  céu escuro e indiferente, que se debulha em água cá para baixo, com o frio gélido do Inverno que resolveu fazer as honras, o desconchavo que nos envolve é total.  O desconforto impera .
As gaivotas, que há pouco deambulavam em voos incertos na aragem, desapareceram em busca de poiso, longe que lhes ficou o mar alteroso.

Desisti de o esperar...

Os gatos são filósofos, sonhadores e poetas ... que eu bem sei.
A esta hora o Farrusco já deve estar na dimensão dos que conversam com a lua, dos que escutam as estrelas e amam a imensidão do Universo !
A esta hora ele, a quem a dimensão do terraço não chegou, voa seguramente na liberdade do vento, trepa os telhados das madrugadas e espreita-me por entre as nesgas das nuvens ... quando elas, de "carneirinhos", esvoaçam lá longe, no limite do meu horizonte ... encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar ...

Porque  nós  tínhamos  um  pacto  silencioso  de  afecto ... e  os GATOS  não  nos  faltam  nunca !...

Anamar

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