quinta-feira, 12 de julho de 2018

" E TER, DEPOIS, MENINOS ... "



" O amor em Portugal continua a ser diferente.   Começou pelos sinos a tocar e um par que se ajoelhava e acabou por um anúncio no jornal e uma fotografia que se devolve ... "

" Antigamente, quando o amor sorria
e os vates o cantavam com talento,
tudo em volta de nós era poesia,
ternura e sentimento !
Os olhos das mulheres enamoradas
brilhavam como sóis,
os cardos eram rosas delicadas,
as águias rouxinóis,
o riso era cristal, a pele arminho
e a vida cor-de-rosa !
Os poetas em tardes outonais
não estavam lá com tretas
descobriam no cheiro dos currais
o aroma suave das violetas ;
a Lua era de prata,
as tranças d'ouro, os lábios de coral
e quatro pés de couve a verde mata
as áleas dum quintal ...
Como era bom, então, viver, amar
e unirem-se os destinos
quando bastava apenas p'ra casar
ouvir tocar os sinos,
por o joelho em terra aos pés do altar
e ter, depois, meninos ...

Mas hoje não arrulham pombas mansas,
nem se murmuram já palavras ternas ;
são outras as andanças
das práticas modernas
e como o Tempo volta a toda a hora
as costas ao passado,
aquele que hoje em dia se enamora
e quer mudar de estado
para seguir, enfim, p'la vida fora
até se reformar divorciado,
dispensa a frioleira
duma aliança d'ouro ou dum bragal,
não faz questão co'a flor de laranjeira,
põe de parte o que for cerimonial,
convivas mascarados,
passadeira e cortejo nupcial
com fatos alugados
que assentam muito mal
e chapéus com grinaldas de florinhas,
em troca dum anúncio no jornal
de quatro ou cinco linhas :
"  P'ra fins matrimoniais, sem mais rodeios,
um homem que não tem bens de raiz
pretende uma mulher com alguns meios,
que faça um lar feliz ;
uma mulher que entenda os seus anseios,
loura ou morena, de qualquer idade,
viuva ou separada, 
esteja ou não esteja em plena mocidade,
ou já recauchutada ... "

Diga o leitor agora, francamente,
com a sinceridade habitual,
se continua ou não a ser diferente
o Amor em Portugal ... "

                     V. M. S.



Estou a desfazer a casa dos meus pais.  Paulatinamente ... ao sabor da força e da coragem.

Afinal, foi casa de uma vida, carregada de histórias, de sombras e memórias.
Custo a mexer-me.  Quero e pareço não querer fechar definitivamente aquela porta, já que as janelas estão fechadas há largo tempo.
Tudo me tem passado pelas mãos.
Quando se desfaz uma casa, as coisas sabidas e impensadas nascem como cogumelos, das gavetas, das estantes, dos lugares que não frequentávamos.
Se nas nossas casas, isso acontece, imaginem em casas que não foram exactamente nossas ...

A minha mãe, num afã de afecto e saudosismo, tudo parece ter guardado :  o registo das minhas notas do colégio ao liceu ( e de outras colegas também, para ter bem a certeza, por comparação, que eu havia sido a melhor aluna da turma ... rsrsrs ) ... fotografias aos montes ( de caras conhecidas e de muitas outras que não identifico de nenhuma forma.  A maioria, a preto e branco ou a sépia, atestam bem a época a que respeitam.  Cavalheiros com bigodes façanhudos e respeitáveis, chapéus e raposas nos ombros de ignotas senhoras ... criancinhas com folhos e touquinhas ... ou completamente nuas, repousadas no cetim do fotógrafo de ocasião ... ), registos de actos públicos  como certidões, contratos, cartas de condução caducadíssimas, bordadinhos feitos por mim no colégio, mais tarde nos lavores femininos já no liceu ( logo eu que não fui dada a prendas domésticas !... ), rendas iniciadas e jamais acabadas ... quilos de cartões de felicitações por aniversários, Natal, Dia da Mãe ... pequenos riscos e desenhos feitos nos primeiros anos das netas, versinhos e pinturas feitos por mim e esquecidos em papéis velhos e rasgados, textos já então desabafados ... enfim ... um acervo interminável !

Eu própria, que sempre vivi muito sozinha naquela família curta, de pais velhos, sem autorização para grandes saídas e convívios, ocupava também os meus tempos livres, coleccionando religiosamente alguns tesourinhos da época : fotos dos meus ídolos do cinema e da canção, revistas femininas e ingénuas e recortes, muitos recortes de jornais e outras publicações, que reputava certamente como interessantes, por razões que hoje não descortino ! ( rsrsrs ).

É exactamente aqui que se prende o tema deste meu texto.

Entre toda a panóplia inimaginável e ternurenta, caíu-me nas mãos um pequeno recorte de jornal amarelecido, da década de sessenta.
Não tinha data precisa e está assinado por um, ou uma tal V.M.S.
Transcrevi-o e apu-lo a este post.

É incompreensível, coisa de extra-terrestre mesmo, para as gerações actuais, o seu teor.
As pessoas da minha geração entendê-lo-ão, certamente, e lembrarão que o mesmo respeita ainda assim,  já a dois períodos cronológicos distintos .
Ri-me ao lê-lo. O "naïf" do seu conteúdo, revelador de valores sociais, familiares, pessoais mesmo, bem característicos de tempos idos, é duma ternura imensa, duma ingenuidade quase infantil, que nos dias de hoje, lembra uma historinha inverosímil ...
Pela curiosidade e por se tratar de um apontamento literário praticamente humorístico, resolvi trazê-lo a té aqui.

Pergunto-me então, o que escreveria hoje ( certamente escandalizado até à medula ), o ou a  V.M.S. se pudesse deitar um olhar sobre a actualidade, e sobre as formas como se vive nas sociedades actuais, à luz dos costumes, das revoluções sociais, tecnológicas e todas as outras nossas conhecidas e com as quais já nem pestanejamos ... o famigerado " amor em Portugal " ?!...



Anamar

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