domingo, 21 de abril de 2019

UMA "OUTRA" BIRMÂNIA ...




Se tivesse que dar um nome àquela estrada, chamar-lhe-ia a "estrada da morte" ...

Aquela estrada é a estrada de peregrinação ao Monte Popa, em Myanmar, antiga Birmânia.
Não pude fotografar ... Não entenderam conveniente, na óptica do "turismo sustentável" defendido no país.  Como se eu devesse ser portadora de uma borracha para apagar o que os olhos teimavam ver, ou pudesse cobri-los com palas, na esperança de não ver mesmo !...

O Monte Popa é um vulcão com 1518 m de altitude, extinto há 15 milhões de anos, que alberga no seu topo um santuário mandado edificar por um guru religioso no século XII, dedicado aos Nats.
O seu topo dista da base uma subida de 777 degraus, rochedo acima, como um cogumelo cujo chapéu demandássemos.
Como local de peregrinação, exige-se sacrifício, pena, esforço.
É uma via sacra, de redenção e penitência, a que se fazem todos ... crianças, velhos, novos, anciãos mesmo, mais carregados do que autónomos.
Não se questiona se se consegue ou não.  É imperativo subir, pagar promessa, angariar protecção, oferecer ... flores, frutos ... doar dinheiro ... mesmo o que não se tem ...
Afinal, são todos penitentes ...

O nome Popa vem de Puppa no idioma páli / sânscrito, significando flor, e Nats são espíritos que fazem parte da crença popular de Myanmar, desde a sua fundação pelo primeiro imperador.
Os Nats precedem mesmo o Budismo, introduzido no país vindo da Índia, e que é a religião predominante.
Acredita-se que os espíritos, almas ou Nats, têm capacidade de ajudar as pessoas ( provendo-lhes dinheiro, saúde, amor e outros ), ou podem, ao contrário, atrapalhar-lhes as vidas, causando-lhes mesmo, a ruína.
Há que apaziguar estes espíritos, com festivais místico-religiosos, que ocorrem anualmente em Agosto, em todo o país.

Ao Monte Popa, situado no centro da Birmânia, na região de Bagan, acede-se, como disse, por aquela estrada empoeirada, de vegetação ladeante seca e escassa, de asfalto precário, sem limites que a definam.
A temperatura atmosférica chega a atingir quarenta e muitos graus, para uma humidade excessiva.
Chuva, cai pouca, mesmo na monção.
É um cenário dantesco de abandono e solidão, estranho, que incomoda e fere.  Gruda nos olhos, mas sobretudo no coração !
É que é ali, naquela paisagem de terra queimada e de destruição, debaixo de abrigos improvisados com galhos secos entrelaçados, que elas estão !

Elas, são figuras esquálidas, tão ressequidas como a paisagem, enegrecidas pelo pó seco que se levanta à passagem dos veículos, encolhidas, embiocadas em andrajos que as cobrem desde a cabeça, na defesa de um sol que não dá trégua.
São bichos enrodilhados sobre si mesmos, que parecem adormecidos, acocorados no silêncio e na solidão.  Solidão de gente, solidão de miséria, solidão de fome e de pobreza ...
Muitos apoiam-se a cajados que os amparam.  São rostos "parados", sem expressão, sem vida, numa antecipação de morte anunciada.
Há velhos e velhas, muito velhos, deixados à sorte e ao destino, a quem o país não protege.
Há crianças também, muitas, por ali, acompanhando as mães ou os avós ...

"Acordam" a cada passagem de carro, de camião de peregrinos, de autocarro de turismo.
Erguem-se num salto, estendem a mão, acenam, suplicam, soltando uns gritos lúgubres e lancinantes ... e esperam, porque é também de tradição que lhes seja atirado de quando em vez, pelas janelas dos veículos que não param ... nunca param ... algum dinheiro, que aliviaria um pouco a má sorte ...
Quando isso acontece, digladiam-se, rolam na poeira, disputam fisicamente a parca esmola ...
E voltam de novo a ser sombras invisíveis, na beira da estrada ... naquela estrada da morte ...

O sol queima tudo e todos.  O ar é sufocante.  Mas elas, aquelas esfinges humanas, ali continuam ... sempre ... aqui, ali ... além ...

Será que os "Nats" os esqueceram nesta vida ?  O que será que Siddhartha Gautama lhes pregou, SER iluminado que foi, defensor dos valores, da humanidade, da justiça, da equidade ???
O despojamento, o desapego e a aceitação ... Afinal, talvez a aceitação seja o único sentimento possível, que ainda os mantenha vivos, naquela estrada da morte que são as suas vidas ... e em que eu tive vergonha de passar !!!...

... Pois "o ódio não termina com o ódio, mas sim com o amor " ... disse Buda !...

Anamar

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