segunda-feira, 17 de junho de 2019

" SIMPLESMENTE UMA RECAÍDA ... "



Um pardal cisca na mesa da frente, as migalhas por ali deixadas.  Reparo que as alfazemas já estão em flor e os jacarandás, eu sei que iluminam de lilás esfusiante as ruas, os largos e alamedas por toda a cidade.
Na mata, os "bordões de S. José" estão também a começar a florir, neste mês de santos, que não o seu ...
Tempo vai em que Junho era um mês de muitas ocupações.  Desde logo, os exames à porta, no quinto ou no sétimo ano, relegavam-nos ao reduto do quarto, em noites de estudos intermináveis, quando a rima dos manuais a serem dissecados, parecia infindável.  Três de História, três de Geografia, três de Física e outros tantos de Química dos terceiro, quarto e quinto anos, e por aí adiante ... em todas as disciplinas curriculares.
Eram noites para estudar e manhãs para dormir, já que o silêncio da concentração só nos ajudava pelas madrugadas. Eu vivia num rés-do-chão de uma avenida barulhenta e movimentada, e por isso, não era fácil durante o dia conseguir o sossego desejado.

Já aqui contei, creio, que a minha mãe entendia que se me fizesse companhia noite dentro, tudo me seria mais fácil. E por isso, vinha para junto de mim  fazer renda e obsequiar-me com miminhos constantes ... miolo de pinhão, bolachinhas a gosto, ananás em calda, pratinhos de arroz doce, frutas caramelizadas e tudo o mais que lhe viesse à cabeça.
Sempre gostei de estudar com música, baixinha, e nessa altura do ano, toda a noite as marchas populares ocupavam as estações de rádio.

Depois, Junho era o mês dos casamentos de Sto.António e assisti-los pela televisão, era um programa e tanto ... As  marchas  populares, no  desfile  pela avenida, eram  outra  "maravilha" !...
Os afazeres eram aligeirados ou acelerados mesmo, para que não se perdesse pitada !
O Festival da Canção parava o país ...
E a vida corria mansa e simples.  As tecnologias que nos absorvem e estupidificam hoje em dia, não existiam, e por isso, ler, escrever, desenhar para quem gostava e deliciar-se com o que um dos dois únicos canais televisivos exibiam, já estava de bom tamanho ...

Os horizontes passavam muito pelos desígnios norteados pelos pais, que ansiavam que os filhos fossem mais além do que a bitola e a fasquia das suas próprias vidas !
Os objectivos a atingir eram por isso óbvios.  A vida era modesta, aparentemente sem grandes surpresas ou sobressaltos.  Os valores eram aqueles que a boa formação que nos era transmitida, impunha.
As casas eram lares, as famílias eram clãs, os sonhos eram direito da existência, os relógios pareciam correr devagar, e os anos pareciam mais generosos do que agora.
As estações estavam definidas, e sabíamos perfeitamente que grossas camisolas de gola alta eram imprescindíveis no Inverno.  Sabíamos que as andorinhas e as cegonhas haviam de emigrar, quando os primeiros tremores da estação se fizessem sentir.
Sabíamos vagamente que no mundo havia conflitos, e que existia um fantasma que se chamava "guerra fria" ... Mas tudo isso era lá longe !... O muro de Berlim parecia dividir o mundo, e tudo se passava entre a América e a Rússia, que assustava, e onde existia uma gente estranha, dura e má ...
Por cá, convinha ser discreto, andar na linha, não fazer politiquice ...
As férias do Verão eram intermináveis e passavam-se por aqui mesmo. Quem tinha "terra", recolhia uns dias ao chão onde nascera e donde no regresso vinham as batatas, as chouriças, até o azeite e o vinho, da colheita do ano ...
As roupas faziam-se nas modistas.  Pronto a vestir era ainda uma ideia estranha.  E não havia marcas. Todos usávamos mais ou menos indumentárias semelhantes, sem luxos ou exibicionismos.  Não existiam as "jeans" e as raparigas quase sempre usavam saias.
Víamos o Flipper, golfinho inteligente que sempre nos deliciava, e a Bonanza entrava-nos em casa na garupa dos cavalos dos Cartwright ...
A mãe comprava a Crónica Feminina, a Flama, os Lavores Femininos e nós líamos os "Caprichos" meio à surrelfa. Amor e sexo, pertenciam um pouco ao imaginário de adolescentes como eu ...
Passávamos o cabelo a ferro na tábua de engomar, e em vez de condicionador usava-se cerveja para o fortalecer ...
Começávamos a reivindicar os primeiros biquinis, que não o eram, mas sim os púdicos "duas peças" ...
Sonhávamos ouvindo Roberto Carlos, delirávamos com o romantismo de Adamo, Hardy, Silvie e o seu romance escaldante com Hallyday ... Bécaud, Aznavour ...
Livros existiam, alguns ... não muitos ... os clássicos ... Eça, Herculano, Guerra Junqueiro, Florbela, Camilo e outros. Encadernados, com bordaduras e letras a ouro, davam requinte às estantes que os exibiam ...

Enfim ... o pardal acabou voando, o perfume das alfazemas impregna-me o coração e eu ... acabei "acordando" desta recaída nostálgica a um tempo já esbatido, como o são as imagens a sépia que ocupam ainda muitas das nossas molduras ...

Saudades do que era ... das que éramos ...

Anamar

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