quarta-feira, 11 de novembro de 2020

" DESFRALDANDO MEMÓRIAS "

 



Já não escrevo há muito tempo.  Por um lado, tenho estado dedicada a uma tarefa que aprecio particularmente - a correcção visual das fotografias tiradas na viagem aos Açores, já lá vai mais de um mês ( o tempo voa !... ), por outro porque me sinto meio seca por dentro, atrofiada mesmo, sem absolutamente nada para dizer, ainda que rumine o tempo todo, saltando de estados de alma em estados de alma, de emoção em emoção, de sentimento em sentimento ... ingloriamente !

Hoje, um assumido dia de Outono, daqueles doces, mansos, silenciosos ... em que o sol se envergonha até de brilhar, lembra que neste ano tão especial, também  nesta quadra em que tradicionalmente vivemos o "último Verão" do ano, o S.Martinho ... tudo se ficou pela metade ... nem bem carne, nem bem peixe !

"No S.Martinho vai à adega e prova o vinho" ... 
No liceu, há uma eternidade parece, num tempo sem tempo ... sempre neste dia, a Celeste que aniversariava e elencava o Conselho Directivo, levava para a sala dos professores uma cesta com castanhas acabadas de assar, e uma garrafa de água-pé.  
Quando chegava o intervalo grande  e regressávamos das salas de aula, lá nos esperava essa surpresa que passou a fazer parte de um código de afectos, ano após ano.  
A Celeste já partiu há muitos.  À escola também já não vou há demasiados.  Desses tempos ficaram as memórias, gratas, apesar de tudo.

Amanhã aniversario eu.  E se detesto ter de fazê-lo,  particularmente este ano tudo me é mais difícil de digerir ...
Há exactamente um ano, eu havia de ter uma festa surpresa em Ho Chi Minh ( antiga Saigão ), no Vietname, oferecida pela agência de viagens com a qual me deslocara em passeio nesta época, com a intenção de me afastar daqui neste dia.  
Foi emocionante e divertido, porque tive a honrar-me com a sua presença, todos os companheiros de viagem, bem como a guia que nos acompanhava. 
Ouvir cantar os parabéns lá tão longe, abrir o bolo de anos numa terra tão distante de Portugal e de todos os meus ... assim, de surpresa, sem que o suspeitasse ... receber um lindíssimo ramo de rosas antes do jantar, ocorrido num barco fantástico, fundeado na baía e totalmente iluminado, ter a festa abrilhantada com a animação local, sempre tão sensível e delicada como o são todas as manifestações artísticas orientais ... foi um gratificante e inolvidável acontecimento !

Há dez anos atrás, no difícil pra mim ano de 2010, pelos mesmos motivos, aniversariei em Bali, onde me refugiei, também lá do outro lado do mundo.  
Viajava absolutamente só, e fui também agradavelmente surpreendida, por parte do hotel onde me alojava, com uma festa  de comemoração do meu aniversário.
Aí, no meio de uma infinitude de línguas e de rostos, o transversal  Happy Birthday  tomou o lugar do nosso "Parabéns", cantado que foi, em uníssono por todos os presentes.
Foi portanto também, um carinho acrescido naquela solidão que me envolvia ...

Há vinte anos ... no carismático ano 2000, de mudança de século e de milénio, quando eu festejava igualmente o encerramento de mais uma década na minha vida ... nova festa, à minha revelia.
Desta feita, aproveitando a minha ausência em viagem pelo Brasil com a minha mãe, na realização do que era o seu grande sonho, os que cá ficaram, prepararam-me um evento absolutamente indescritível. 
Na Golegã, local escolhido, uma quinta ancestral albergou uma festa p'ra mais de cinquenta amigos que me homenagearam, vindos de lugares tão variados e distantes, como o Alto Minho ou o Alentejo.
Amigos que há muito não via, outros mais próximos e presentes ... amigos que caminharam comigo desde a escola, o liceu, a faculdade. Amigos de sempre !  Amigos de vida !
Houve fados de Coimbra, discursos, muito riso, muita festa, comida espectacular, serviço com pompa e circunstância ... tudo previsto e calculado nos mínimos detalhes, sobretudo pela minha filha mais velha que é exímia e completa nesse tipo de coisas .

Este ano, outra década que cessa.  Número redondo outra vez, nos anos que caminham comigo neste percurso destinado.
Este ano, de todos estes, seguramente o mais particular, o mais estranho, o mais inesquecível !....
Só que, desta feita pelas piores razões.
Será certamente lembrado como um penoso ano não vivido, um ano a mais no nosso cômputo existencial e um ano a menos na ampulheta real das nossas vidas !
A pandemia continua a ceifar vidas, esperanças, sonhos e projectos.  Continua a grassar a eito, indiferente a tudo e a todos, semeando dor, angústia e ansiedade.  Adoecendo as pessoas, matando aos poucos, por fora mas sobretudo no âmago dos nossos corações e da nossa alma. 
Este ano não tenho nada a festejar, num ano que é p'ra esquecer .  Não tenho presente a pedir, porque o que eu queria não me pode ser oferecido ... a dádiva de uma vida com a normalidade que precisamos !...
O reganhar da esperança e do sonho, arredados que estão destes meus dias cansados !...

Por toda a mata os cogumelos de Outono eclodiram com as primeiras chuvas mais a sério.  As pedras dos caminhos já escorregam com os musgos que despertam. 
Não há borboletas.  Cumpriram o seu ciclo de vida, e foram ...
Os pássaros silenciaram e já pouco saltitam entre os galhos despidos das últimas folhas douradas que ainda persistem ...
A mata, como a vida, parece entrar em hibernação.
O corrupio inexorável do tempo ... indiferente e impiedoso !...

Anamar

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