quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

" REIS EM TEMPOS DE COVID ..."

 


Normalmente era uma noite gélida.  Era uma daquelas noites típicas do Alentejo interior, nestes Janeiros fim de festas, quando o Natal já fora, o Novo Ano despertara e a vida se preparava para retomar a normalidade.

Breve, o regresso a Évora onde a casa de sempre me esperava, deixaria para trás a mágica quadra que se atravessara.  As aulas do segundo período já acenavam, deliberando o fim das férias passadas ano após ano, em casa dos avós.
Já fora a Missa do Galo, já foram os cantares ao Menino em volta do braseiro sempre aceso naquela chaminé de parede a parede, já fora a consoada com os tios, os primos, os avós, os pais ... e sempre mais algum que aparecia, já foram todas as delícias da avó e das tias prendadas que se juntavam na confecção de tudo o que se esperara o ano inteiro ... Já fora o sapatinho na chaminé e toda a magia em torno da chegada, pela madrugada  ( sempre a horas proibidas à criançada ), do Menino Jesus que haveria de, generosamente, trazer uns chocolatinhos e uma roupa para estrear no dia ... 
Que mais, o Menino não dava e Pai Natal não existia então ...
Árvore também não, e era junto aos sapatos deixados no borralho que os presentes haveriam de se buscar na manhã seguinte !

A noite de Reis, a noite das Janeiras pautava-se quase sempre por um céu bem escuro e limpo, pontilhado por miríades de estrelinhas que piscavam lá por cima.  Há mais de sessenta anos, a pequena vila de Redondo, pouco iluminada, preparava-se para escutar os cantares dos grupos, pelas ruas, de porta em porta, lembrando que os Reis Magos haviam chegado a Belém, também eles obsequiando Jesus pequenino, com os simbólicos ouro, incenso e mirra.
Eu sempre jantava a correr, na ânsia da chegada das outras crianças para que, com casacos bem quentes, luvas, gorros e cachecóis, demandássemos, sacos na mão, as portas vizinhas, saudando os que lá moravam.  Pediam-se as janeiras ... doces, nozes, frutos  e outros acepipes que por bem nos quisessem dar.  
"Estas casas são bem altas e bem altas que elas são, aos senhores que moram nelas, Deus lhes dê a salvação !"  "Oh senhora lavradora, raminho de salsa crua, aos pés da sua cama, nasce o sol  e põe-se a lua" "Esta casa está caiada, esta rua está varrida, moradores que nela moram, Deus lhes dê anos de vida !"
Lembro bem a euforia da corrida de casa em casa, bochechas afogueadas, nem o frio sentíamos, tal o entusiasmo , tal a compenetração !
E havia aqueles que nada davam e se enfastiavam do incómodo. A criançada então cantava, ameaçando  : " Oh senhora lavradora, tem olhos de marrã morta, se não nos vier dar a esmola vamos-lhe cagar à porta !"...

E era assim !
Tudo já foi, quase todos já partiram.  Poucos já lembram.  À maioria não faz sentido, porque o desconhecem, porque o não viveram, porque talvez o não entendam ...
Foram outros tempos, foi outra vida, fomos nós há sessenta anos atrás !
A quem pode interessar ?!...

Ainda assim, nestes tempos que vivemos, gostei de recuar, gostei de lembrar ... voltei a sonhar um pouco !
E a noite está também gélida, as estrelas não se vêem ofuscadas pelas luzes da cidade ... é de novo 6 de Janeiro ... é de novo Dia de Reis !!!

Anamar

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