quarta-feira, 29 de novembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL ... "

 


São pouco mais de quatro horas e a noite espreita.  O dia fechou completamente e até já chove lá fora.
As gaivotas recolheram.  Andava aqui por cima um bando em desnorte, rodopiando na aragem, como se sem rumo estivesse. Ouviam-se claramente os gritos que emitem ... não sei interpretá-los.  
Uma coisa é certa, parece terem recuado da orla marítima, prenúncio de tempestade.  Ou não seja verdade que "gaivotas em terra" sempre denunciem borrasca lá longe...
A meteorologia bem a sinaliza.  Parece que as próximas anunciadas chuvas que aí vêm, se devem à aproximação de "rios atmosféricos", uma nomenclatura recente, creio eu.
Pelo menos tem sido nestes últimos tempos que esta "novidade climatérica" surgiu no nosso léxico.  Antes, ou eu andei distraída, ou ainda não tinha dado por tal, na linguagem comum ... 

Entretanto é quase Natal.  Novembro, o "tal" mês para mim, encerra as portas já amanhã.

De ano para ano, esta quadra mais me cansa.  Aliás os únicos Natais que recordo com doçura e alegria foram os Natais da minha infância, aqueles que eram vividos com a família nuclear ainda intocada, em casa dos meus avós.  Até aos meus treze anos sempre esta quadra era passada no Alentejo, na casa grande, com pais, avós, tios, primos ... enfim, todos para quem estes dias de lazer eram pretexto para uma confraternização que reunia até os que lá não viviam.
Morávamos então em Évora, a escassos trinta e cinco quilómetros de distância.  As aulas haviam terminado, estávamos em férias, o meu pai em período de balanço na firma, e como tal o trabalho que desenvolvia permitia que fosse feito naquela mesa baixinha, dentro da grande lareira de parede a parede, que ocupava o fundo da cozinha dos meus avós.
A seu lado, de manhã à noite ardia o madeiro imenso que vinha rebolando pelo quintal fora, já que não havia viva alma que pudesse arrastá-lo de outra forma.
O meu pai, cutucava o lume, mexia as brasas, usava incansavelmente o abanico, e consequentemente enchia-se de cinza da cabeça aos pés ...  Mas isso, que importava ? Era o preço do consolo que representava o calorzinho com que eram aquecidas as noites gélidas do Alentejo !
As chamas bruxuleavam e o seu luzeiro era cúmplice dum conforto inigualável.  Os chouriços, as linguiças e as morcelas, como roupas num varal, dependuravam-se por cima das nossas cabeças, num fumeiro que reunia os enchidos da matança anual.  
Ao jantar, numa mesa que aos meus olhos de criança parecia não ter fim, quase sempre era o perú a fazer as honras, enquanto que os doces de tradição, arroz doce, aletria, leite creme, bolo de buraco ... do que me lembro... completavam o cardápio.  Lá pela meia noite, depois da Missa do Galo, a carne de porco frita, as filhós, as azevias, os mexericos e a pinhoada, aguardavam-nos, feitos pelas mãos de quem não fora à igreja.´
E os cantares ao menino Jesus, soltavam-se das bocas de quem, com a barriguinha cheia, entrava na desgarrada.
E eram de uma paz e de uma cumplicidade os sentimentos que ali se partilhavam.  Contavam-se histórias, lembravam-se pessoas, ríamos, assinalávamos os faltosos e mesmo aqueles que noutra dimensão haveriam de estar a ver os que ainda tinham lugar cativo na mesa da consoada ...

Eu era uma menininha de seis, sete, dez anos ... pra quem, uma roupa nova para estrear, umas sombrinhas de chocolate, uns lápis da Regina, umas libras igualmente de chocolate, brilhando do ouro que fingiam, já estavam de bom tamanho e chegavam bem para na manhã seguinte me transbordarem  de alegria, quando já, de olhos arregalados, descia ao sapatinho ...
E era assim, não me lembro sequer de um livro ou um brinquedo, juro que não lembro !...

Há memórias que se nos colam à pele sem que façamos o mínimo esforço para tal.  Há outras que "deletamos" mesmo sem querer ... novamente não carecendo de qualquer vontade ...
Há momentos que ficam, com cheiro, som e cor para sempre. 
 
Eu ia com a minha avó à Missa do Galo.  Só as duas e o frio daquela noite gelada.  A Igreja da Saúde resplandecia com uma luz clara, onde a talha dourada reflectia a luz dos círios acesos. Cheirava a cera, lembro claramente que cheirava. O xaile da minha avó era macio, fofinho, tinha uma cor azulada escura como veludo.  A minha mão pequenina cabia nele na perfeição.  O lenço adamascado cobria-lhe a cabeça totalmente branca.
Os cânticos ressoavam , amplificados pela abóboda bem alta da Igreja e o Menino Jesus na toalhinha de linho era dado a beijar no fim da cerimónia.  
E era tão lindo aquele querubim róseo, de caracóis dourados !!!
Cá fora o céu estava escuro.  A vila tinha poucas luzes nas ruas e por isso a luz das estrelas piscava lá no alto.  E o ventinho, aquele sopro cortante que corria e nos gelava a ponta do nariz, lembrava que era Dezembro, que nos esperavam lá em casa as iguarias e as doçuras, o calor aconchegante do lume aceso, a magia da noite que havia de nos envolver, a união familiar, o afecto a pingar dos corações ... e que era Natal outra vez !...

Anamar

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