quinta-feira, 30 de novembro de 2023

" REVISÃO DA MATÉRIA "

 



O dia está profundamente cinzento.  Uniformemente escuro.  Ainda não parou de chover, chuva grossa, agressiva, forte.  Bate nas vidraças com ímpeto, não facilita a vida a quem, nas ruas, tenta cumprir as rotinas diárias.  Corre-se, procuram-se abrigos, porque a inclemência do temporal não deixa margens ...
Queiramos ou não, a interioridade a que este tempo nos remete, leva a uma introspecção incontornável.  
Afinal será Dezembro dentro de horas, o Inverno está por dias e consequentemente, o caminho que percorremos nas nossas vidas está claramente a par do ciclo da Natureza.

É já uma estrada em que o que andámos bate objectivamente o que temos para andar, em tempo e em qualidade, e em que à nossa volta, as pessoas, as conversas, as preocupações que nos tomam, os sentimentos e até a forma como respondemos emocionalmente ao dia a dia ... são em tudo muito próximos, senão idênticos, às vivências daqueles que nos cercam.
Uns mais optimistas, outros menos, efectivamente todos de uma maneira geral partilhamos similitudes sensoriais.  
Convivemos preferencialmente com pessoas da mesma faixa etária, que já cessaram a actividade profissional, com famílias dispondo de uma lógica autonomia, com as independências naturalmente adquiridas, pessoas que ou têm uma vida familiar cujo desenho se mantém desde sempre, ou se encontram sós pelas mais variadas razões.  De qualquer forma, temos todos obviamente uma linguagem muito próxima, posturas e reacções comuns.  Quase todos nascemos e crescemos nas mesmas décadas, passámos por experiências semelhantes, crescemos em figurinos com forma e linguagens comuns, habituámo-nos a olhar o mundo de forma parecida ... até os sonhos e os trilhos percorridos para os alcançar, foram formalmente próximos.
Portanto, não será estranho que as nossas conversas sejam idênticas, as preocupações também, as angústias e as incertezas idem, até as sensibilidades se tornaram indiferenciadas.
As doenças, as limitações de natureza física ( mas não só ), que diariamente nos vão surpreendendo, as dificuldades materiais que indistintamente se experienciam fruto da sociedade e dos tempos que atravessamos, a falta de paz com a conjuntura sócio-política universal que nos rodeia, a insegurança e as incertezas que diariamente nos surpreendem ... em suma, o dia de amanhã ... ponteiam as nossas conversas, assombram os nossos sonos.
Os filhos quase sempre estão longe, física e emocionalmente muitas vezes.  A vida corrida, exigente, de competição, com valores e interesses diversificados já bem distintos dos nossos ( afinal, outra geração, outra visão e foco ), não lhes deixa folga, disponibilidade ou mesmo vontade para se fazerem presentes.

Nós, os do costume, já nos rimos às vezes, porque na verdade, andando andando, e reclamando, ainda assim lá vamos parar às doenças, lá vamos parar à solidão, ao isolamento, à resistência a sairmos de casa, de convivermos, de combinarmos programas.  Falta de paciência para ouvir, falta de complacência para entender e aceitar ... intolerância mesmo...
Antes ficar em casa, o telefonema amanhã se devolve, o chá fica para outro dia ... Saturação mesmo ! "Pachorra", nenhuma !

E vive-se, vive-se muito do que era, como era, como foi, o que foi, nos registos do passado.  Revisita-se vezes sem conta esta data, este acontecimento, estes dias ... num saudosismo que dói, que objectivamente amachuca, pois nos flashes que nos descem, o cenário está lá, apenas nós hoje somos apenas meros comediantes duma peça cujo pano já fechou ...
E fica estranho. É uma brutal sensação de desconforto ...

Hoje estou melancólica, ou melhor, mais melancólica.
Talvez o dia ... talvez o telefonema ou a tentativa de chamada a uma grande amiga com demência profunda, com quem já não consegui trocar mais que duas ou três palavras ... talvez um livro fantástico que estou a ler ... talvez ... talvez tudo isto e apenas isto, me tenha encapsulado no silêncio que acabou a envolver-me nesta tarde cinzenta e chuvosa.

Anamar

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