terça-feira, 9 de julho de 2024

" O QUE FICA ... "

 


Costuma dizer-se que ninguém morre enquanto for lembrado na memória de outro alguém.  Verdadeiramente partiremos quando a sombra em que nos tornamos se vai esbatendo até que ninguém já fale ou pelo menos lembre, aquela pessoa.
E "aquela pessoa" será seguramente lembrada, pela pegada que deixou atrás de si ...

Este fim de semana tive comigo a tempo inteiro, a minha neta mais nova, dos quatro que constituem a minha sucessão. Tem apenas sete anos, mas arguta, atenta e com uma capacidade cognitiva, acredito, que fora de série. 
Hoje em dia, mercê do tipo de vida que se vive, dos desafios, das exigências da mesma, das solicitações, do convívio com que nos confrontamos, dos recursos a todos os níveis de que dispomos, as crianças são na generalidade vivaças, chamadas em permanência  à intervenção familiar e social, solicitadas a uma posição constante de afirmação e posicionamento face aos desafios diários que se lhes apresentam.  Por isso a Teresa será por certo par para os amiguinhos e colegas seus contemporâneos, da vida do dia a dia ...
Eu é que sempre me maravilho com isso ...

Quando a minha mãe partiu, a Teresa tinha apenas dez meses.  A minha mãe vivia então na mesma casa, onde a minha filha era cuidadora informal da avó, e onde veio a falecer rodeada do cuidado e do carinho inesgotável que lhe era dispensado em permanência, com cuidados redobrados ou não fosse a minha filha uma enfermeira totalmente e sempre dedicada a esse papel, acrescidos pelo facto de se tratar da avó.
Assim, desde que nasceu, à Teresa foi propiciado um convívio com a "Bi", de aproximação extrema, ainda que a saúde mental da minha mãe infelizmente viesse progressivamente a degradar-se. 
Chegada da clínica, quando nasceu, logo a mãe a deitou ao lado da bisavó, na cama articulada que ocupava, nunca subtraíu a filha ao amor e ternura que ela lhe devotava, preocupava-se em fingir que a Teresa era cuidada pela Bi, tentando assim ter uma atitude pedagógica em prol da avó, que dessa forma se sentia responsável pela bebé, fazendo-a sentir útil, valorizando o seu papel, o que no meio da demência que se veio acentuando, era um lampejo de felicidade para a minha mãe.

Como disse, quando a minha mãe nos deixou, a Teresa era apenas um bebé de dez meses, mas em permanência e para todo o sempre, a memória daquela avó persistiu na recordação da Teresa.
São as fotos, os vídeos, os lugares, as coisas da Bi... o que a Bi dizia, o que fazia, como fora, o que falava sobre a Teresa ... tudo é perguntado cem vezes ...
"Avó, posso beber café na chávena da Bi? "  "Esta é a árvore da Bi " ( referência ao jacarandá que permanece no jardim e que era o encanto da minha mãe ), "A Bi também tinha uma máquina igual a esta !" ( comentário a uma Singer existente numa casa onde entrou ) ...
A Bi está "na estrelinha", segundo as informações fidedignas 😌😌... a Bi até fala com ela de quando em vez, e aí pelos três anos, ter-lhe-á atirado uma boneca cá para baixo ... Nos jogos de futebol, a Bi, aficionada que só, "está triste, ou alegre, ou mesmo muito contente", face aos resultados alcançados, pelo seu Sporting, pela Selecção de Portugal ...
Enfim ... a Bi tornou-se completamente imortal !...

Reflicto sobre tudo isto.  Prendo-me a pensar como é o percurso humano nesta passagem por aqui...
É certo que a minha mãe sempre foi muito presente na vida das netas e depois na dos bisnetos. Generosa, bem disposta, prestável, disponível, com uma fonte inesgotável de amor para todos, sempre a família foi o único objectivo da sua vida.  Por ela vivia, por ela sofria.  Os seus sucessos eram a felicidade da sua existência, os seus desaires, fonte de preocupação doída.
Ao seu modo foi feliz ... uma felicidade que analiso, às vezes, como doentia e obsessiva.  Comigo, um pouco castradora mesmo ...
Os meus avós não lembro de nunca ter amado assim, ou sequer de eles terem permanecido na minha vida, com esta presença e esta força.  Do meu avô ainda lembro algumas imagens de ternura e carinho que se me perpetuaram, apesar dos sessenta anos que decorreram.  À minha avó não me liga ou ligou sequer um resquício de afecto até hoje.  Ao contrário, penso que não conseguiu deixar-me rigorosamente nada ...
Invejo a relação a que assisto entre avós e netos, na vida de pessoas amigas que estão por aqui, de como as suas presenças são indispensáveis e insubstituíveis, de como a ligação se cultiva, se alicerça, progride e se consubstancializa, de como a partilha se materializa e levará por certo "ad eternum", a presença dos avós na vida dos que ficam depois daqueles, um dia, terem também subido "à estrelinha" !...

O que resta de nós, o que nos sucede, o que nos fica em rasto é afinal apenas o que fomos, como fomos, como deixámos a pegada enquanto por aqui estivermos, de acordo com a capacidade que a nossa impressão digital tiver de se impor com alguma definição e nitidez ... absolutamente nada mais !...

Anamar

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