quinta-feira, 27 de março de 2025

"MAS O QUE É ISTO ?! ... "



Eu já não pertenço bem a este mundo ...

Voltei a reiterar esta ideia quando fui confrontada na comunicação social, com mais uma notícia escabrosa,  referente  a  um  crime  hediondo  levado  a cabo por  três adolescentes ( entre os 17 e os 19 anos ), sobre uma vítima também ela adolescente e menor ( 16 anos ), aqui num concelho perto de onde vivo.

A adolescente, uma rapariga, frequentadora das redes sociais, terá sido atraída a um encontro pressupostamente com um dos elementos do grupo de três rapazes, que seguia na internet... um "influencer digital" ou em português, um "influenciador" social , um espécime recente, fruto da nomenclatura digital que nos assola diariamente. 
Para resumir e encurtar a notícia, o que se passou foi a armação de uma ratoeira em que a jovem caíu, tendo sido vítima de violação pelo grupo, que não satisfeito, filmou toda a performance exibida e posteriormente a publicou, "heroicamente", na referida rede social ...

Bom, até aqui, infelizmente a repetição nojenta de outras situações de que damos conta vezes demais no nosso quotidiano.
Tenho netos por essas idades e que caminham para lá.  
Assusta-me tremendamente o caminho que é trilhado por uma juventude que atravessa tempos muito complicados a nível familiar, social, escolar e mesmo profissional.
São tempos confusos, tempos de pais ausentes, famílias desestruturadas e disfuncionais tantas vezes, tempos em que os valores, os princípios, as balizas e os limites não são com frequência muito claros, e sendo a adolescência só por si, um período interiormente conflituoso, muitos jovens buscam reconhecimento, aconchego e aceitação junto de amigos, colegas ou só conhecidos, extra-muros.
Os pais não dominam, muitas vezes nem sonham, que tipologia de companhias os seus filhos frequentam.  Não há tempo para tudo, numa sociedade em que a concorrência feroz e a "escravidão" profissional têm contornos esbatidos e a exigência é absolutamente determinante e consequentemente priorizada.

A fuga, quase sempre tornada avassaladoramente buscada, como um vício que se interioriza, são os meios digitais de comunicação ... verdadeiras portas abertas para um mundo que os jovens se enganam, pensando que dominam e controlam ...
Aí aparecem então figuras pardas, caçadores sem escrúpulos que sabem perfeitamente como atingir os seus objectivos e concretizar os seus desígnios ...

"Influencers"... "criadores de conteúdos"... ?? O que é isso? - perguntava eu há dias a alguém, jovem também, que tentou explicar-me esta "habilitação" recentemente chegada ao meu vocabulário.

Quando eu era jovem, de acordo com os valores e parâmetros de normalidade social, um "influenciador" seria alguém que, pela conduta, pelo exemplo, por provas dadas, por correcção de caminho trilhado, era merecedor e tinha a responsabilidade séria de interagir socialmente pelo exemplo, pela afirmação, pela conduta impoluta. 
Era alguém merecedor de ser um exemplo positivamente apontado.  
Seguramente, nunca seria alguém que arrebata multidões de seguidores, pensando tornar-se "ilustre" pela mediocridade, pela marginalidade de posturas, por pertencer à franja negra do "bas fond" social.
Esses, a sociedade expurgava, varria, aniquilava ...
Agora, a admiração por esses energúmenos arrebatadores de incautos, por esses desviadores à solta, parece crescer exponencialmente com a gravidade dos actos que praticam.  Quanto pior, melhor ! 
A perigosíssima vacuidade instalada numa sociedade de aparências, ostentação e desinformação, que não sabe pensar com a sua cabeça e como tal precisa de modelos, arquétipos, guias e bengalas de "lobos vestidos de cordeiros" para alcançar os seus objectivos, haveria de remeter-nos Historicamente a ensinamentos dos quais deveríamos retirar alguma coisa ...

Seguramente já não pertenço bem a este mundo !... 
Tanta coisa que não decifro, não entendo e não consigo assimilar nesta Terra de incoerências, de loucura transversal, de tempos assustadores e altamente preocupantes !...

Anamar

terça-feira, 4 de março de 2025

" MAIS ÓRFÃ AINDA ... "



A minha família no Alentejo ... para mim, a única depositária das memórias do que fomos, de como era e como foi, de quem eram e que histórias foram vividas ... lá, e apenas lá, onde podiam ainda  sentir-se os pedaços e os retalhos das vivências arquivadas, dos fantasmas que por ali se passeiam, e aqueles que fugidiamente nos escapam ... essa minha família, dizia, extinguiu-se ontem, com a partida da última pessoa que me pertencia de sangue e de coração.
A partir de agora, já nada me prende ou me leva ao Redondo !

Àquele cemitério da vila recolheram as últimas lembranças, histórias, alegrias ou tristezas, anos e gerações...
Já pouco estará preservado, penso, e os que lá iam cuidar, limpar, alindar, ocupam agora as campas identificadas apenas pelos nomes e pelos retratos esmaltados incrustados na pedra.  Já não existe ninguém da família, e provavelmente a Câmara terá tomado conta das propriedades ... sim, porque se trata de campas privadas, que se compravam, estando na mesma, muitas vezes, pais e filhos que se acercaram tempos mais tarde. 

Às vezes, anos atrás, quando lá ia, gostava de me passear por aquele "jardim" de silêncios, ouvindo apenas os trinados dos pássaros nos ciprestes e o estalar da gravilha debaixo dos meus pés.
Tinha uma ideia que se foi esbatendo com os tempos, de onde e quem estava aqui ou ali, e quando encontrava, pelos nomes ou fotografia, uma súbita emoção e até mesmo um misto de alegria mergulhada em tristeza, se apossava de mim.
Era como se se operasse um regresso a casa, um retorno à origem, um reencontro, antecipando o derradeiro, que talvez um dia, quiçá, se venha a verificar noutra dimensão.

Eram avós, tios, primos ... apelidos familiares, com sorte rostos conhecidos, ainda lembrados, de quando aquela terra, foi uma espécie de chão emprestado, eu que vivi sem pertencer na verdade a nenhum ...
E depois, ainda que o não quisesse, todas as lembranças, todos os momentos, tudo o que foi experienciado, dito, vivido ... desfilava-me frente aos olhos, como se uma película de filme estivesse a passar em "reprise" ... e os mortos, todos os mortos dançavam uma dança de roda à minha volta, exibindo o sorriso fotográfico, quase sarcástico,  escolhido para a cabeceira da sepultura ... como se dissessem... "acredita, cá te esperamos ... tudo é uma questão apenas de tempo ... "
E já então eu ficava ali, embalada no silêncio, envolvida pela brisa que passava com pés de lã, sem ruído ou perturbação.
Afinal, estávamos num campo santo !...
Costumava fazer estas visitas bem cedo, quase madrugada, para evitar a canícula que o Alentejo garantidamente me proporcionaria, à medida que o sol subisse no firmamento.

E era então que me via com todas as idades possíveis, desde o jogo do pião, aos bailes na Sociedade ... desde os Natais, às Páscoas, as covinhas dos berlindes na terra do largo da minha avó, aos lanchinhos em casa da tia velha, onde eram obrigatórios os bagos da romã e os bolinhos caseiros, guardados expressamente, porque as férias escolares haviam começado e um belo dia a camioneta da carreira, haveria de "desaguar-me", ali mesmo, pertinho de casa.
Era então a vez de eu ser "disputada" pelos diferentes núcleos familiares ... aqui almoçava, ali, lanchava, além petiscava iguarias feitas de propósito, sabendo serem da minha predileção. 
Eu passava diariamente por todos eles, numa espécie de via sacra , e tinha uma tia, inclusive, que exigia que eu me pesasse à chegada, para garantir que no fim das férias eu tinha mais umas graminhas de peso !!!...
Todos me amavam, todos se orgulhavam da miúda afectiva que eu era, da estudante promissora em que acreditavam  eu viria a tornar-me ...
Todos cá, todos vivos ... todos fazendo parte da minha vida ... todos mimando-me e envolvendo-me num colo inigualável ...

Hoje, só existe o que está dentro de mim, e mesmo que quisesse seria incapaz de passar às gerações seguintes, esta história familiar, que não conheceram e nem imaginam sequer como foi. 
O tempo, sempre implacável, acabará por apagá-la, mesmo  das memórias mais velhinhas ... e uma orfandade sentida e palpável percorre-me e deixa-me mais pobre ainda ...

E aquela terra, foi o único ninho, mais ninho que eu conheci !...

Anamar