terça-feira, 4 de março de 2025

" MAIS ÓRFÃ AINDA ... "



A minha família no Alentejo ... para mim, a única depositária das memórias do que fomos, de como era e como foi, de quem eram e que histórias foram vividas ... lá, e apenas lá, onde podiam ainda  sentir-se os pedaços e os retalhos das vivências arquivadas, dos fantasmas que por ali se passeiam, e aqueles que fugidiamente nos escapam ... essa minha família, dizia, extinguiu-se ontem, com a partida da última pessoa que me pertencia de sangue e de coração.
A partir de agora, já nada me prende ou me leva ao Redondo !

Àquele cemitério da vila recolheram as últimas lembranças, histórias, alegrias ou tristezas, anos e gerações...
Já pouco estará preservado, penso, e os que lá iam cuidar, limpar, alindar, ocupam agora as campas identificadas apenas pelos nomes e pelos retratos esmaltados incrustados na pedra.  Já não existe ninguém da família, e provavelmente a Câmara terá tomado conta das propriedades ... sim, porque se trata de campas privadas, que se compravam, estando na mesma, muitas vezes, pais e filhos que se acercaram tempos mais tarde. 

Às vezes, anos atrás, quando lá ia, gostava de me passear por aquele "jardim" de silêncios, ouvindo apenas os trinados dos pássaros nos ciprestes e o estalar da gravilha debaixo dos meus pés.
Tinha uma ideia que se foi esbatendo com os tempos, de onde e quem estava aqui ou ali, e quando encontrava, pelos nomes ou fotografia, uma súbita emoção e até mesmo um misto de alegria mergulhada em tristeza, se apossava de mim.
Era como se se operasse um regresso a casa, um retorno à origem, um reencontro, antecipando o derradeiro, que talvez um dia, quiçá, se venha a verificar noutra dimensão.

Eram avós, tios, primos ... apelidos familiares, com sorte rostos conhecidos, ainda lembrados, de quando aquela terra, foi uma espécie de chão emprestado, eu que vivi sem pertencer na verdade a nenhum ...
E depois, ainda que o não quisesse, todas as lembranças, todos os momentos, tudo o que foi experienciado, dito, vivido ... desfilava-me frente aos olhos, como se uma película de filme estivesse a passar em "reprise" ... e os mortos, todos os mortos dançavam uma dança de roda à minha volta, exibindo o sorriso fotográfico, quase sarcástico,  escolhido para a cabeceira da sepultura ... como se dissessem... "acredita, cá te esperamos ... tudo é uma questão apenas de tempo ... "
E já então eu ficava ali, embalada no silêncio, envolvida pela brisa que passava com pés de lã, sem ruído ou perturbação.
Afinal, estávamos num campo santo !...
Costumava fazer estas visitas bem cedo, quase madrugada, para evitar a canícula que o Alentejo garantidamente me proporcionaria, à medida que o sol subisse no firmamento.

E era então que me via com todas as idades possíveis, desde o jogo do pião, aos bailes na Sociedade ... desde os Natais, às Páscoas, as covinhas dos berlindes na terra do largo da minha avó, aos lanchinhos em casa da tia velha, onde eram obrigatórios os bagos da romã e os bolinhos caseiros, guardados expressamente, porque as férias escolares haviam começado e um belo dia a camioneta da carreira, haveria de "desaguar-me", ali mesmo, pertinho de casa.
Era então a vez de eu ser "disputada" pelos diferentes núcleos familiares ... aqui almoçava, ali, lanchava, além petiscava iguarias feitas de propósito, sabendo serem da minha predileção. 
Eu passava diariamente por todos eles, numa espécie de via sacra , e tinha uma tia, inclusive, que exigia que eu me pesasse à chegada, para garantir que no fim das férias eu tinha mais umas graminhas de peso !!!...
Todos me amavam, todos se orgulhavam da miúda afectiva que eu era, da estudante promissora em que acreditavam  eu viria a tornar-me ...
Todos cá, todos vivos ... todos fazendo parte da minha vida ... todos mimando-me e envolvendo-me num colo inigualável ...

Hoje, só existe o que está dentro de mim, e mesmo que quisesse seria incapaz de passar às gerações seguintes, esta história familiar, que não conheceram e nem imaginam sequer como foi. 
O tempo, sempre implacável, acabará por apagá-la, mesmo  das memórias mais velhinhas ... e uma orfandade sentida e palpável percorre-me e deixa-me mais pobre ainda ...

E aquela terra, foi o único ninho, mais ninho que eu conheci !...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Lamento, os meus pêsames.
Jonas

Anónimo disse...

Obrigada. Foi uma “ esmola”…. Bj