sexta-feira, 27 de novembro de 2020

" ILUSÕES ... "


Não sei porquê, ou talvez o pressinta ...

Há séculos que não escrevo, como se nada em mim levedasse e produzisse alguma coisa nova e justificável, nestes dias de pouco valer a pena, em tempos que o são sem o serem ...

Sinto-me como em banho-maria naquela mornidão de fogo lento que parece esperar infinitamente que algum dia, em alguma hora se chegue a um qualquer ansiado bom termo.
Baralho-me no tempo ... Digo "este ano", e tenho que pausar p'ra perceber que ano é este que refiro ...
Dezembro assoma.  Assoma incrivelmente, anunciando-se como o último mês deste purgatório temporal que nos tem enredemoinhado, como numa avalanche de enxurrada que não conhece leito ou margens ...
Avassaladoramente arrasta-nos, de onde para onde ?  Não sei !...

E talvez por tudo isto ou não ... e talvez porque me urge encontrar outra vez referências, terra firme, troncos fortes que me suportassem, rochas que me dessem ancoradouro, luz faroleira que me mostrasse estrada de novo, caminho que me apontasse porto seguro, horizonte que se alcançasse, nesta torrente de coração que se esfacela dia após dia ... deu-me p'ra visualizar vídeos do antigamente ... Vídeos de vinte anos ou mais.  Registos de momentos, de acontecimentos, de histórias ... de vida !
Vídeos que me trazem o que foi, como foi, como éramos, como ríamos ou chorávamos ... como sonhávamos, como acreditávamos que tudo viria a ser seguramente, como o destino parecia desenhar as nossas histórias ...
Eventos familiares, festas de aniversário, datas assinaláveis, Natais, férias, viagens ... crianças que iam crescendo e que hoje são pais de outras crianças ...
Os que foram e nos deixaram por aqui, aguardando vez ... simplesmente...
A compreensão absoluta do que é a existência, do que é o fluxo imparável do tempo ... a efemeridade do sermos ...

E é uma busca estranha, aquela que me faz disparar o coração, por cada imagem que se projecta no visor.  E é um misto de alegria, ansiedade e esperança aquilo que insanamente me toma ... com aquele frisson doce, que sentimos quando caminhamos para um encontro querido e desejado ...
É como se fosse ali à esquina, ter com a minha mãe que anda por lá e me espera ...
É como se dançasse outra vez aquela música.  Como se risse de novo com aquelas palavras adivinhadas e sabidas, como se soubesse de cor tudo o que se vai passar a seguir, no próximo "take" do filme ...
como se ninguém fosse faltar ao encontro ... como se todos, todos pudessem ter respondido à chamada ... e dissessem presente, uma outra vez ...

E depois ... bom, depois é o nada.  É o frio do vazio que sobra, é a interrupção da história a contar-se, é a saída de cena de todos os figurantes que construíam o enredo, é a procura frustrada de mim por mim própria, sem as marcas dos dias e da vida entretanto escorrente ... é o acender das luzes na sala e o pano a fechar ...

Como se eu o não soubesse, como se eu não estivesse farta de saber que aquela frinchazinha da porta por onde espreitei por algum tempo, não era mais do que isso mesmo apenas ... a impossibilidade sadicamente enganadora de reencontrar o TEMPO !

Anamar

domingo, 15 de novembro de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - " never ending story ... "



Cheguei a acreditar que não escreveria mais sob este título, porque cheguei a acreditar que ao fim de nove sofridos meses talvez o pesadelo já tivesse passado... 

Erro meu, ou melhor, ingenuidade minha !
Aqui estamos nós num novo estado de emergência, aqui estamos nós confinados das 13 h de sábado às 5 de domingo e das 13 de domingo às 5 de segunda, ( vigorando particularmente neste e no próximo fim de semana ), não falando nas restrições ordinárias de limitação, impostas diariamente entre as 23 h e as 5 da manhã, em todos os dias da semana.
Trata-se duma medida em desespero de causa, imposta pelo executivo deste país, na tentativa de estancar um pouco o avanço galopante e descontrolado da pandemia.
As notícias diárias são assustadoras, com um aumento exponencial de novas infecções, de óbitos e de doentes em cuidados intensivos.
O Serviço Nacional de Saúde a rebentar pelas costuras, periga na capacidade de resposta, com hospitais de referência já totalmente lotados nas valências de que dispunham, com doentes a serem removidos no país de norte para sul, com camas dos privados a terem que ser disponibilizadas e com doentes de outras patologias a ficarem na cauda do pelotão ... 
Tudo isto dramaticamente acrescido de baixas significativas no número de profissionais de saúde, por também eles terem sido apanhados na avalanche dos contágios, e bem assim no redemoinho do stress de horas e horas, turnos e turnos mergulhados nas agruras da incerteza, do cansaço e das angústias ... num trabalho exaustivo que raia os limites da resistência humana !
As camas de intensivos estão à beira da total ocupação, e vêm-me inevitavelmente à memória, imagens do início da pandemia no Hospital de Bérgamo em Itália, imagens do desnorte e da tragédia, do drama da escolha, sobre quem tratar e quem não ...

Lá fora, por todo o mundo, o panorama é idêntico.  Uma Europa amordaçada pelo medo, pela tragédia, pela frustração da incapacidade de tantos cientistas conseguirem pôr um cobro a toda esta devastação em pleno século XXI, com a criação de uma vacina ou de fármacos eficazes, dispondo embora o Homem, em vão,  de tantos conhecimentos, tantos recursos, tantas ferramentas tecnológicas ... ingloriamente ... numa corrida contra o  tempo e contra a morte !

Por aqui o cansaço é total.  Ao esgotamento do ânimo, da esperança, da força anímica, da confiança e da coragem, totalmente exauridos, juntam-se o desespero de uma economia moribunda, os desequilíbrios sociais cada vez mais acentuados, o dramático aumento do desemprego e a inerente dificuldade para todas as famílias fazerem face à situação precária de subsistência diária ...
Os conflitos sociais estão a instalar-se, a agudizar-se, deixando os políticos que têm a difícil tarefa de gerir todo este pandemónio, "entre a cruz e a caldeirinha", num tactear experimental de medidas e legislação, inevitavelmente questionadas por todos os quadrantes ... porque sim e porque sim ... como se alguém tivesse na manga a receita milagrosa para a coisa ...
E como numa casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão ... tudo isto parece um diálogo de surdos !

Olhando ao redor só me ocorre a imagem macabra dum pântano, donde não há escapatória, e cada náufrago se agarra ao que pode para manter o queixo fora da lama sôfrega e mortal !

E cá estamos nós, vivendo pé ante-pé, tacteando devagarinho, reinventando os dias para continuarmos respirando, fingindo a estrada p'ra não cairmos no abismo, redesenhando o amanhã no vazio deste silêncio, que como neblina que sobe da serra, fecha, cerra mais e mais a nossa linha do horizonte ...
Cá estamos nós, recriando-nos no frio das ausências, no buraco dos afectos que não temos, no pavor de noites assombradas por incertezas do desconhecido ... cá estamos nós numa "never ending story" que eu cheguei a acreditar pudesse ter alcançado já o seu fim !!!

Anamar

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

"COMO PREITO DE GRATIDÃO"




" Os amigos não morrem : andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda ; desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido.  É  como, não ;  nunca partiram. "

                                                       António Lobo Antunes


Os anos avançam e nós começamos a perceber ter história.  
Uma história que vem lá detrás, dos anos da gaiatice, do tempo dos primeiros amores, encavalitados nos primeiros sonhos.  Tempos dos primeiros segredos, quando o cordão umbilical começa a afrouxar ... quando a casa fica acanhada e as nossas asas batem em direcção ao azul ... mais largo e distante que o horizonte onde o sol se põe ...

E começamos a escolhê-los, cuidadosamente ... a eles, aos amigos, como ramos de boninas que colocássemos numa jarra à cabeceira.  E com eles, pisando o mesmo chão pedregoso, começamos a calcorrear as veredas da vida, começamos a atravessar os primeiros desertos assustadores e a enfrentar as primeiras marés alterosas.
Com eles começamos a dividir as primeiras lágrimas, porque as primeiras valentes gargalhadas sempre se soltaram espontâneas, aconchegando-nos as almas.
Eram eles que falavam a nossa língua, eram eles que experimentavam emoções iguais às nossas, eram eles que conseguiam fazer-nos voltar a sorrir, quando o negrume parecia engolir-nos ...
Horas infinitas de cumplicidades, mais horas ainda de partilhas incondicionais, de entrega confiante dos  nossos corações, no regaço dos seus !

E crescemos, e seguimos, e fizemo-nos gente.
Às vezes, alguns saem da nossa rota.  Parecem ter-se perdido de nós, mesmo que de mãos em pala, os busquemos na linha do infinito.  E às vezes, ainda que o tempo sempre carrasco, ouse pensar que no-los leva para sempre, numa esquina inesperada e insuspeita, eles aí estão, respondendo ao nosso longínquo chamado ...

Vieram-nos dos bancos da escola, dos recreios das merendas, dos muros divididos ... vieram-nos das músicas que não se esquecem.  Vieram-nos da alegria dos sucessos ou da dor dos fracassos.
Estenderam-nos a mão e reergueram-nos outra vez, quando as provações teimavam em deixar-nos tombados. Tantas vezes quantas as necessárias ... Sempre !...
E choram connosco, afagam-nos o rosto, envolvem-nos num abraço quente, sentam-nos no cólo ... e se for o caso, silenciam connosco ... porque não são necessárias palavras, quando o código dos afectos nos redime das mágoas e das tristezas.  
Resgatam-nos da cerração, se perdidos nos sentimos ... e fazem-nos olhar o amanhã com a gratificação de uma esperança remoçada, de um sorriso claro e confiante ... de um sonho redesenhado !...

São eles, os AMIGOS !!!

Por tudo isto, este meu texto é um texto de gratidão.  Desde logo, gratidão à vida, por estar viva.  Gratidão aos meus de sangue, porque ele nos une indestrutivelmente.  
Gratidão aos amigos e aos amores, porque se fizeram presentes uma outra vez, incondicionalmente, em mais um 12 de Novembro !
Um 12 de Novembro seguramente único e inesquecível na minha vida ... o 12 de Novembro do particular e incontornável ano 2020 !  
O 12  de Novembro que, por várias razões, eu planeara festejar ... ( logo eu, sempre avessa a aniversariar !... 😕😕😕

Desta forma quero expressar a TODOS os que ontem estiveram comigo nas palavras, nos gestos, no riso, no carinho, no abraço sentido ( intentado mas apenas virtual ), no beijo solto na brisa que perpassava ( no que foi um glorioso dia solarengo, de um Outono doce ) ... ou até mesmo com uma carinhosa "cotovelada", como um amigo me enviou ... quero expressar, dizia, o meu mais sentido e afectuoso OBRIGADA !!!

Bem hajam, queridos amigos !!!  O que seria de mim sem vocês ???!!!...

Anamar

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

" DESFRALDANDO MEMÓRIAS "

 



Já não escrevo há muito tempo.  Por um lado, tenho estado dedicada a uma tarefa que aprecio particularmente - a correcção visual das fotografias tiradas na viagem aos Açores, já lá vai mais de um mês ( o tempo voa !... ), por outro porque me sinto meio seca por dentro, atrofiada mesmo, sem absolutamente nada para dizer, ainda que rumine o tempo todo, saltando de estados de alma em estados de alma, de emoção em emoção, de sentimento em sentimento ... ingloriamente !

Hoje, um assumido dia de Outono, daqueles doces, mansos, silenciosos ... em que o sol se envergonha até de brilhar, lembra que neste ano tão especial, também  nesta quadra em que tradicionalmente vivemos o "último Verão" do ano, o S.Martinho ... tudo se ficou pela metade ... nem bem carne, nem bem peixe !

"No S.Martinho vai à adega e prova o vinho" ... 
No liceu, há uma eternidade parece, num tempo sem tempo ... sempre neste dia, a Celeste que aniversariava e elencava o Conselho Directivo, levava para a sala dos professores uma cesta com castanhas acabadas de assar, e uma garrafa de água-pé.  
Quando chegava o intervalo grande  e regressávamos das salas de aula, lá nos esperava essa surpresa que passou a fazer parte de um código de afectos, ano após ano.  
A Celeste já partiu há muitos.  À escola também já não vou há demasiados.  Desses tempos ficaram as memórias, gratas, apesar de tudo.

Amanhã aniversario eu.  E se detesto ter de fazê-lo,  particularmente este ano tudo me é mais difícil de digerir ...
Há exactamente um ano, eu havia de ter uma festa surpresa em Ho Chi Minh ( antiga Saigão ), no Vietname, oferecida pela agência de viagens com a qual me deslocara em passeio nesta época, com a intenção de me afastar daqui neste dia.  
Foi emocionante e divertido, porque tive a honrar-me com a sua presença, todos os companheiros de viagem, bem como a guia que nos acompanhava. 
Ouvir cantar os parabéns lá tão longe, abrir o bolo de anos numa terra tão distante de Portugal e de todos os meus ... assim, de surpresa, sem que o suspeitasse ... receber um lindíssimo ramo de rosas antes do jantar, ocorrido num barco fantástico, fundeado na baía e totalmente iluminado, ter a festa abrilhantada com a animação local, sempre tão sensível e delicada como o são todas as manifestações artísticas orientais ... foi um gratificante e inolvidável acontecimento !

Há dez anos atrás, no difícil pra mim ano de 2010, pelos mesmos motivos, aniversariei em Bali, onde me refugiei, também lá do outro lado do mundo.  
Viajava absolutamente só, e fui também agradavelmente surpreendida, por parte do hotel onde me alojava, com uma festa  de comemoração do meu aniversário.
Aí, no meio de uma infinitude de línguas e de rostos, o transversal  Happy Birthday  tomou o lugar do nosso "Parabéns", cantado que foi, em uníssono por todos os presentes.
Foi portanto também, um carinho acrescido naquela solidão que me envolvia ...

Há vinte anos ... no carismático ano 2000, de mudança de século e de milénio, quando eu festejava igualmente o encerramento de mais uma década na minha vida ... nova festa, à minha revelia.
Desta feita, aproveitando a minha ausência em viagem pelo Brasil com a minha mãe, na realização do que era o seu grande sonho, os que cá ficaram, prepararam-me um evento absolutamente indescritível. 
Na Golegã, local escolhido, uma quinta ancestral albergou uma festa p'ra mais de cinquenta amigos que me homenagearam, vindos de lugares tão variados e distantes, como o Alto Minho ou o Alentejo.
Amigos que há muito não via, outros mais próximos e presentes ... amigos que caminharam comigo desde a escola, o liceu, a faculdade. Amigos de sempre !  Amigos de vida !
Houve fados de Coimbra, discursos, muito riso, muita festa, comida espectacular, serviço com pompa e circunstância ... tudo previsto e calculado nos mínimos detalhes, sobretudo pela minha filha mais velha que é exímia e completa nesse tipo de coisas .

Este ano, outra década que cessa.  Número redondo outra vez, nos anos que caminham comigo neste percurso destinado.
Este ano, de todos estes, seguramente o mais particular, o mais estranho, o mais inesquecível !....
Só que, desta feita pelas piores razões.
Será certamente lembrado como um penoso ano não vivido, um ano a mais no nosso cômputo existencial e um ano a menos na ampulheta real das nossas vidas !
A pandemia continua a ceifar vidas, esperanças, sonhos e projectos.  Continua a grassar a eito, indiferente a tudo e a todos, semeando dor, angústia e ansiedade.  Adoecendo as pessoas, matando aos poucos, por fora mas sobretudo no âmago dos nossos corações e da nossa alma. 
Este ano não tenho nada a festejar, num ano que é p'ra esquecer .  Não tenho presente a pedir, porque o que eu queria não me pode ser oferecido ... a dádiva de uma vida com a normalidade que precisamos !...
O reganhar da esperança e do sonho, arredados que estão destes meus dias cansados !...

Por toda a mata os cogumelos de Outono eclodiram com as primeiras chuvas mais a sério.  As pedras dos caminhos já escorregam com os musgos que despertam. 
Não há borboletas.  Cumpriram o seu ciclo de vida, e foram ...
Os pássaros silenciaram e já pouco saltitam entre os galhos despidos das últimas folhas douradas que ainda persistem ...
A mata, como a vida, parece entrar em hibernação.
O corrupio inexorável do tempo ... indiferente e impiedoso !...

Anamar

domingo, 25 de outubro de 2020

" AÇORES EM ANO DE PANDEMIA " - ILHA GRACIOSA

 




Conhecida como a Ilha Branca, esta foi a última ilha que visitei no Arquipélago dos Açores, no que foi uma viagem absolutamente fascinante.
E como já o referi, continua a ser impossível eleger uma dentre todas, como a de escolha ou eleição !
Todas diferentes, todas fantásticas nas suas diversidades e especificidades, em belezas naturais, requintes arquitectónicos e culturais, arte sacra, curiosidades das gentes e da terra, História, gastronomia e tantos outros pormenores e curiosidades que fomos escutando ao longo dos dias, tornaram essa tarefa inalcançável !

A Graciosa é a ilha mais a norte das cinco do Grupo Central.  Desde 2007  que pertence à Reserva Mundial da Biosfera, classificada pela UNESCO, à semelhança do Corvo, das Flores e das Fajãs de S.Jorge.
É uma ilha pequena, com uma dimensão de 12,5 Km por 7 Km.  É menos montanhosa que as demais, tem declives suaves e a sua maior elevação, a Caldeira, tem pouco mais de 400 m de altitude.
Em consequência desta orografia, tem um clima moderado oceânico, é menos chuvosa, tem menos nevoeiros, e por isso o seu solo é mais seco.
Possui campos férteis, onde o milho, as hortícolas e a fruta proliferam ( a meloa da Graciosa é divina ! ) Mas são a produção de gado bovino e leite, bem como a viticultura, as suas principais fontes de receita e subsistência.
As videiras crescem entre meio dos muros de lava, quadriculados nos campos verdes ... os "currais" ! 
O milho quando colhido, fica exposto à secagem nas chamadas "burras de milho", uma espécie de escaparate de madeira que se vê nos campos, um pouco por toda a ilha.

                                                                       CURRAIS
                                                              BURRA  DE  MILHO

A Graciosa é chamada de Ilha Branca ... designação esta que se inspirou nas suas características geomorfológicas e nos elementos toponímicos da ilha ... locais como Pedras Brancas ( que nomeia inclusive uma casta de vinho graciosence absolutamente famoso ), Serra Branca ou Barro Branco, são apenas alguns exemplos. 
De facto, a sua baixa pluviosidade  que confere à ilha , no fim do Verão, uma tonalidade esbranquiçada, associada à cor do casario das povoações, levou  Raul Brandão a dar-lhe o epíteto referido. 
Tem um só concelho - Sta.Cruz da Graciosa - e quatro freguesias, Vila de Sta.Cruz, Vila da Praia, Guadalupe e Luz.
Calcorrear a ilha é um desafio que se faz em menos de 1 hora.  É um passeio de constante surpresa, onde a novidade nos extasia a cada volta de estrada.  Tivemos a felicidade de ter como guia local, uma professora que, nascida no Canadá e filha de pais micaelenses, escolheu a Graciosa para aí se radicar.
A Lisete fê-lo por paixão e para toda a vida ... diz.
Profundamente conhecedora, nada deixa de referir, nada deixa passar em branco, para tudo capta a nossa atenção, cativando pela simplicidade, disponibilidade e entusiasmo.
É uma embaixadora graciosence de incomparável gabarito, e uma excelente contadora de histórias da sua ilha, onde diz " ainda se poder dormir com a porta de casa aberta " !...

Com tanto para contar, a anos-luz de vos conseguir traduzir a real beleza das coisas, o encanto dos pormenores, a aproximação sequer da realidade das cores, da luz, dos silêncios ... que sempre só ficarão nas mentes e no coração de quem os experimentou, vou tentar sintetizar o que vi e como vi ...

A capital,  Sta.Cruz,  tem como "sala de visitas" uma praça ampla, clara, extremamente limpa e agradável, contornada por edifícios típicos de traça açoriana  com janelas e portas emolduradas com o negro do basalto vulcânico.  Possui um coreto, pavimento empedrado, dois lagos  ( outrora paúis para retenção da pouca água existente na ilha ) que já serviram para dar de beber aos animais e para a rega, araucárias imponentes e altivas.  Daí, irradiam as ruelas com casas igualmente típicas e antigas.

                                                  PRAÇA  CENTRAL  DE  STA.CRUZ

                                                                      CORETO
                                                        ARAUCÁRIAS  ANCESTRAIS

Subindo ao monte que se ergue junto a Sta.Cruz, surge a ermida de Nossa Senhora da Ajuda, erigida no final do século XV, início do século XVI em pedido de protecção divina pelos terramotos que assolaram a ilha.  Tem uma aparência robusta que lhe confere um certo ar de fortaleza, e como tal é um dos exemplos importantes da arquitectura religiosa fortificada.
No seu interior, destacam-se os painéis de azulejos do século XVIII e uma imagem datada da mesma época...
Anexada à ermida fica a casa dos romeiros, que serve até hoje como local de acolhimento dos peregrinos.
Do alto do Monte da Ajuda, ( 280 m de altitude ) que alberga mais duas ermidas ( São Salvador - séc XVIII e São João - provavelmente séc XVI ), pode descansar-se o olhar sobre o mar, o campo -  particularmente todo o norte da ilha e a extensa planície de Guadalupe -  e a vila, que abrigada pelo monte, dos ventos fortes e costeiros, se desenvolveu no seu sopé.
Na cratera do vulcão extinto que originou o Monte da Ajuda, os graciosences construíram curiosamente, uma praça de touros, ainda aos dias de hoje, palco de muitas touradas, nomeadamente por altura das festas da Graciosa.

                                                             ERMIDA  DA  AJUDA
                                         CAPELA  DE NOSSA  SENHORA DA  AJUDA


                                                             PRAÇA  DE  TOUROS

Descendo e continuando para o norte, a zona balnear do Barro Vermelho desvenda-nos uma praia singular, numa pequena enseada de calhaus rolados, com  a coloração vermelha que lhe deu o nome.  
No rochedo vulcânico, formaram-se piscinas naturais de águas agitadas mas límpidas, ideais para o mergulho.
O Farol da Ponta da Barca, de cujo miradouro situado sobre um precipício se pode observar toda a orla costeira e o mar, divisa em primeiro plano o Ilhéu da Baleia ... uma imensa baleia rochosa emergida do silêncio do oceano ...
Ao fundo avista-se S.Jorge a duas horas de barco, e ao fundo do fundo ficam o Pico e o Faial !!!...

                                          ZONA  BALNEAR  DO  BARRO  VERMELHO
                                       PISCINAS  NATURAIS  DO  BARRO  VERMELHO
                                                     
                                                    FAROL  DA  PONTA  DA  BARCA
                                                                LHÉU  DA  BALEIA


Continuámos pela Serra Branca e foi a vez do ex-libris da Graciosa ... a visita à Caldeira, o ponto mais elevado da ilha, como já referi.  Trata-se de uma cratera gigantesca, com 4 Km de perímetro, resultante duma erupção vulcânica ocorrida há 12 mil anos. 
A cobertura florestal exterior, é um bosque de criptomérias, acácias e incensos que como uma floresta encantada de vegetação exuberante, contorna e acompanha a Caldeira.  No seu interior existe uma imponente cavidade vulcânica, a Furna do Enxofre, um fenómeno geológico de grande interesse e beleza, que possui um lago de água fria no fundo da gruta e uma fumarola com lama, responsável pelo cheiro intenso a enxofre que emana do interior da Terra, e que a designa.

A incursão às entranhas da Terra, 3 km abaixo, a imagem fantasmagórica, misteriosa e mítica que se desfruta na brutalidade da rocha ... a sombra e o silêncio debaixo desta abóboda basáltica, onde os morcegos e os painhos-de-monteiro ( exclusivos da Graciosa ) nidificam ... são um verdadeiro desafio à humildade humana !
A Furna do Enxofre é monumento natural e integrou em 2000, a lista candidata a Património da Humanidade.
As suas visitas são condicionadas às condições no seu interior.  De facto, no início da descida, à superfície da Caldeira, existe um Centro Interpretativo, onde são recolhidos dados científicos sobre a dosagem das emanações sulfúricas, uma vez que a gruta está em permanência, totalmente monitorizada.
Todas as informações recolhidas são estudadas e tratadas na Universidade dos Açores.

                                                 CALDEIRA  E  FURNA  DO  ENXOFRE





Abordando a freguesia da Praia, zona piscatória por excelência, com o Ilhéu da Praia, Reserva da biosfera no horizonte, pudemos admirar os moinhos de vento de cúpula vermelha, únicos e emblemáticos da ilha.
Parecem ter sido trazidos por colonos flamengos ou holandeses.  Existem cerca de duas dezenas e são testemunho vivo da produção dos cereais na ilha, nomeadamente o trigo e a cevada.  De facto não foi impunemente que a mesma foi chamada de "o celeiro dos Açores "...
Hoje, todos estão desactivados, alguns recuperados e convertidos em habitações, ou mesmo em turismo local.
Por detrás fica a fábrica das famosas "queijadas da Graciosa".  Obviamente, à semelhança da Queijaria Teimoso ´- Quitadouro, onde a prova e aquisição de todos os mais inimagináveis queijos se impôs ( queijo com maracujá é a sua mais recente aposta ... ) ... agora, a prova e de novo a compra desta iguaria da doçaria local não poderia relegar-se para segundo plano.  Havia que trazer para o Continente, um miminho para os que ficaram ...

                                                            MOINHO  DE  VENTO
                                                         QUEIJADAS  DA  GRACIOSA
                                      
Na freguesia da Luz, a sudeste da ilha, onde almoçámos, ficam as Termas de Carapacho, junto às piscinas naturais com o mesmo nome.  As águas termais, usufruindo da proximidade da Caldeira, apresentam temperaturas da ordem dos 35º / 40º C, e são benéficas no tratamento das patologias reumatismais.
Entre rochas basálticas negras, as piscinas recortadas caprichosamente, em contraste com o azul profundo do mar, albergam os graciosenses em período de lazer, quando o tempo é favorável.

                                             PISCINAS  NATURAIS  DO  CARAPACHO

Uma curiosidade que também escutámos, entre as muitas histórias com que Lisete nos brindou nesta nossa estada na Graciosa, refere-se a um cidadão romano, que procurando um lugar prazeiroso onde pudesse usufruir uma vida calma, isolado da confusão do mundo lá fora, se apaixonou pela ilha e a elegeu como sua terra de adopção, fixando-se na Aldeia Velha, freguesia de Guadalupe, onde adquiriu alguns terrenos.
Franco Ceraolo figura de referência na  indústria do cinema, onde trabalhou com Scorcese, Fellini e Bertolucci, trocou, em 2000,  a sua vida profissional pela calmaria desta aldeia açoriana, onde cria uma espécie animal autóctone reconhecida há cerca de cinco anos, no sentido de evitar a sua extinção : o burro-anão da Graciosa, que sendo originário do norte de África, supõe-se  ter ficado na ilha como moeda de troca nos assaltos dos piratas e corsários, que vindo para pilhar, deixavam para trás, algo da sua passagem.
São animais baixos, com pouco mais de 1 m de altura, apresentam uma pelagem parda e ruça, e a maioria tem uma risca crucial característica ao longo do dorso, semelhante aos burros da Toscana.
Fundou a Associação de Criadores e Amigos do Burro-Anão da Ilha Graciosa, com o apoio do Centro de Biotecnologia da Universidade da Terceira, tentando proteger a espécie.
Este animal, que neste momento contabiliza menos de uma centena na ilha, existia num número superior a mil, há cerca de um século.
Fazem parte da História da Graciosa, por integrarem a vida da população, auxiliando na agricultura e no transporte dos géneros.  Sendo mansos e caminhando vagarosamente, usavam-se em passeios pela ilha - as "burricadas".
Tentando motivar as gerações mais novas para esta causa, Franco Ceraolo espera poder recuperar todas estas tradições.  Para já, interage com os quinze exemplares que carinhosamente cria nos seus terrenos, a quem deu nomes pelos quais respondem, e a quem, segundo ele, fala em italiano !!!... 😁😁😁

                                                 FRANCO  CERAOLO -  Imagem da Net

Terminámos as nossas deambulações pela ilha, visitando a Igreja Matriz de Sta. Cruz, em estilo barroco, edificada no século XV em devoção à Santa Cruz, reconstruída no século XVI e de novo no século XVII, mercê das destruições sofridas pelos fenómenos sísmicos que assolaram a ilha.
Apresenta detalhes manuelinos e azulejos figurativos do século XVIII.  Os seus altares são ricamente revestidos a talha dourada, e no altar-mor existe um retábulo fascinante, o Políptico da Matriz de Sta. Cruz da Graciosa, constituído por um conjunto de seis pinturas a óleo sobre madeira, pintadas no séc. XVI, presumivelmente por um artista português que se designa por Mestre de Arruda dos Vinhos.
Os seus temas iconográficos pertencem ao ciclo da vida de Cristo e da Santa Cruz.
Essas pinturas apenas foram reveladas em 1941, aquando de uma intervenção de restauro da igreja.
É imponente, austera e lindíssima !


                                                               IGREJA  MATRIZ


Junto à Praça principal da vila, fica o Museu Etnográfico, muito interessante e detalhado, exibindo  peças ligadas à cultura da vinha, com tradição na ilha como referi, à actividade baleeira a que os graciosences se dedicaram até 1982, ano em que nesta ilha cessou a caça a este cetáceo ... e ainda a tudo o que diz respeito ao "modus vivendi" das populações ao longo dos tempos, numa evocação rigorosa e vívida da História das suas gentes !







E pronto, tentando sintetizar tudo o que vimos, ouvimos e aprendemos sobre a segunda menor ilha do arquipélago, termino com este post a história mágica, fabulosa e inesquecível de sete dias mergulhada na tranquilidade, na magia e na beleza ímpar dos Açores por descobrir, ainda esquecidos na imensidão azul do Atlântico ... lá, onde Portugal verdadeiramente termina !!!

Anamar

domingo, 18 de outubro de 2020

" AÇORES EM ANO DE PANDEMIA " - ILHA DAS FLORES

 

                                                                            CUBRES

Para mim, as Flores é a coqueluche das ilhas açoreanas.  Se tivesse que eleger uma de todas as que conheço e são quase todas, como a mais completa, a mais fascinante, a mais próxima de um paraíso na Terra, as Flores ocuparia seguramente o pódium !

É a segunda ilha integrante do Grupo Ocidental do arquipélago, e fica, como já referi, a sul do Corvo.
É também em longitude a mais próxima da América ( geologicamente pertence mesmo à Placa Norte-Americana ).
Dela faz parte o ponto mais ocidental de Portugal e da Europa, o Ilhéu do Monchique, uma pequena formação rochosa perdida no Atlântico frente à Ilha, podendo observar-se do seu extremo ocidental, na zona da Fajã Grande.

Morfologicamente as Flores caracteriza-se por ser uma ilha de uma diversidade fantástica, exibindo uma natureza exuberante em estado puro.
Desde as ravinas abruptas talhadas na rocha basáltica que a constitui, desde as gigantescas falésias esculpidas pelas mãos do tempo, as formações geológicas surpreendentes, as lagoas mansas amodorradas no alto da montanha ... o som mágico das cascatas, que saltando das encostas mergulham em direcção ao mar ... passando pela magnificente beleza de uma vegetação luxuriante que cobre toda a ilha ... ainda, e finalmente presentes por todo o lado, as flores, sempre as flores, elas próprias que acabaram dando o nome à Ilha ... de tudo, este pedaço de paraíso é rico !...

Ocupa uma área de cerca de 142 quilómetros quadrados, na sua maior parte constituída por terreno montanhoso.
O ponto mais elevado é o Morro Alto com mais de novecentos metros de altitude.
Santa Cruz das Flores e Lages das Flores são administrativamente os dois concelhos da Ilha.  O seu achamento remonta ao século XV.   Sendo inicialmente a sua toponímia de São Tomás, acabou por assumir pouco depois a sua actual designação, devido à abundância de flores de cor amarela, os "cubres" que recobriam toda a costa, e não sendo uma espécie endémica, supõe-se terem as suas sementes sido trazidas por aves migratórias, desde a Flórida, na América do Norte.
Os cubres existem profusamente dispersas por toda a Ilha, junto dos caminhos e dos muros de pedra, e juntamente com as hortênsias azuis fazem sebes e paliçadas.

No topo do Morro Alto observa-se uma imponente formação geológica por escorrência particular da lava vucânica - o Pico da Sé.
O clima  a essa altitude, atlântico húmido, é um modelador ecológico, originando zona de nevoeiros com ventos fortes e elevada pluviometria, factores determinantes da vegetação distinta aí existente.  
Do miradouro lá localizado, pode observar-se exactamente toda a vegetação endémica, constituída predominantemente por floresta de Laurissilva ( característica da Macaronésia ), sendo por isso considerada zona de paisagem protegida.
Aliás, a Ilha das Flores faz parte desde 2009, à semelhança do Corvo como referi, e da Graciosa de que falarei, da Rede Mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO.

Se São Miguel é a ilha da Lagoa das Sete Cidades, as Flores é a ilha das sete lagoas ...
É no périplo feito por todas elas, que se percebe claramente como as mudanças bruscas do tempo são rápidas e desafiadoras.
Em segundos pode ver-se, deixar de se ver, voltar a ver-se ... e assim por diante !
As lagoas da Lomba, a Negra ( devido à cor das águas onde em certas zonas chega a ter uma profundidade de mais de 100 metros ), a Branca, a Comprida, a Rasa, a Funda e a Seca ( que parece enganadoramente não ter água ), têm características próprias e distintas, e é um deslumbre olhá-las ainda que de longe, e um fascínio e um privilégio usufruir de tanta beleza !

Continuando o percurso, esperava-nos a Rocha dos Bordões, ex-libris da Ilha, uma curiosa formação geomorfológica resultante da solidificação do basalto da lava vulcânica em altas estrias verticais.
Surpreendente e esmagadora, impõe-se pela imponência quando assoma no meio da paisagem !
Na vertente ocidental da Ilha, de menor altitude que no lado oriental, ficam a Fajãzinha e a Fajã Grande, entre outras, numa ampla orla costeira constituída exactamente por fajãs.  Avistam-se aí inúmeras linhas de água, cascatas que se desprendem do alto das escarpas, formando poços no sopé.
A Cascata do Poço do Bacalhau é particularmente bela !
É também defronte da Fajã Grande que se oberva, como já referi, o Ilhéu do Monchique, um marco histórico  de  localização ... o  ponto  mais  ocidental  das  Flores,  de  Portugal  e  da  Europa !!!
Também o Farol da Ponta do Albernaz ( geometricamente, o vértice superior esquerdo da Ilha, considerando que ela se desenha de norte para sul como um rectângulo com maior comprimento que largura ), mereceu a nossa admiração.  
É um lugar silencioso e de solidão como o são todos os faróis, situado no alto de uma ravina no meio do céu e do mar que marulha aos seus pés, e onde apenas o sopro do vento desgovernado, o balido das vacas nos pastos quadriculados por muros de pedra, ou o grasnido de alguma ave marinha, se escutam ...
No município de Sta.Cruz, o Monte das Cruzes que se prende à permanência dos franciscanos na Ilha, e o Pico dos Sete Pés, que com a luz a favor nos mostra uma figura humana deitada no topo da montanha, encerram histórias de encantar !
E não alongo mais este meu escrito, pois sempre o mesmo ficará totalmente aquém de tudo aquilo que eu gostaria de poder contar.  
Até uma próxima visita, fiquemos com este maravilhoso cheirinho a flores e este desafio que aqui deixo para que venham conhecer este cantinho  fascinante, puro e autêntico que é mais um pedacinho de um paraíso que por vezes julgamos já não existir à superfície da Terra !!!



                                                                 PISCINAS  NATURAIS
                                                                   PICO  DAS  CRUZES
                                                                    LAGOA  COMPRIDA
                                                                      LAGOA  NEGRA
                                                                      FAJà GRANDE
                                                                 ROCHA  DOS  BORDÕES
                                                               ILHÉU  DO  MONCHIQUE
                                                                        CANA  ROCA
                                                                POÇO  DO  BACALHAU
                                                                POÇO  DO  BACALHAU
                                                               MORRO  DOS  SETE  PÉS
                                                    FAROL  DA  PONTA  DO  ALBERNAZ


Anamar