quinta-feira, 31 de agosto de 2017

" PEREGRINANDO "


Liberdade é ser poeta,
é pintar a noite negra
com as cores do arco-íris
É fingir acreditar
que ora é hora de voltares
quando eu sei que vais partir ...
É enfeitar as estações
É escolher sempre os Verões
em vez do Inverno frio
É ser dona do viver
conforme me apetecer
num insano rodopio ...
Liberdade é desbragar,
é rir ou então chorar,
fingir que tudo é verdade ...
inventar como eu quiser,
pois tudo o que se disser
ao poeta é perdoado ...
Ser poeta é liberdade ...
A maior que a gente tem,          
e é espelho de uma alma pura
Não se acomoda ao real,
mesmo sendo um temporal,
é uma doce loucura !

E por isso vou escrevendo ...
De palavras vou vivendo
não me importando o destino ...
E ao longo da caminhada,
ainda que  penosa a estrada,
levo a fé de um peregrino...

Anamar

domingo, 27 de agosto de 2017

" PELOS OLHOS DE UMA GAIVOTA "





A Senhora foi a banhos.  Literalmente foi a banhos ...
E não, não trajava fato a preceito, de acordo com o local e o dia que se fazia quente e ensolarado, ou não fosse o último domingo de Agosto.

Empoleiradas estávamos ambas.  Eu, no topo das escarpas de onde a vista sobre o areal era privilegiada.
Ela, no centro de um andor engalanado de flores, em ombros de quem o transportava.

A Senhora da Praia voltou a cumprir a tradição, e num verdadeiro postal turístico, honrou uma outra vez o povo daqui mesmo, que sempre a acarinha.
Saída da ermida construída nos fins do século XIX em terrenos de Keil do Amaral, a Senhora, venerada desde que segundo a lenda arribou aos rochedos das Maçãs trazida por mar alteroso como sempre é este por cá, foi descendo respeitosa e pausadamente o miradouro que ladeia as areias e as rochas.
A Senhora dos Mares ( das Azenhas ), S.Marçal, protector dos Bombeiros Voluntários que O transportavam, Nossa Senhora do Carmo que protege os surfistas das Maçãs e cuja imagem apoia simbolicamente a santa numa prancha de surf e era transportada nos ombros de surfistas com camisolas honrando o seu desporto de coração, eram apenas alguns dos nove andores que compunham a procissão..
Nossa Senhora de Fátima, Sto António de Lisboa, o Menino Jesus, S.José e o Sagrado Coração de Jesus, incorporavam ainda o cortejo.


Eu, procurava não perder pitada.

As bandas filarmónicas do Mucifal e dos Bombeiros Voluntários de Colares tocavam, a Guarda Nacional Republicana a cavalo, abria o desfile, a avioneta que iria cumprir o seu papel daí a pouco, sobrevoava o céu azul, e uma moldura humana de centenas e centenas de pessoas ladeava o percurso do préstito.
As individualidades políticas e sociais da zona, desfilavam.  Rostos conhecidos faziam-se presentes e  caminhavam a compasso.  É bom lembrar que daqui a um mês as eleições autárquicas estão por aí ...  Convém ninguém ser esquecido, neste "socialmente correcto " a preceito...

A multidão na praia aguardava, impaciente.  Uns, ansiosos em fervoroso ritual de fé religiosa.  Outros, curiosos pelo inusitado da cerimónia.
Afinal, não é comum que uma santa se atreva mar adentro !...
Não é comum, que os participantes  com as opas da irmandade de Nossa Senhora da Praia e os trajes e artefactos adequados à circunstância, com estandartes e andores, também o façam, no meio dos veraneantes, esses sim, de biquinis e fatos de banho !...
Não é comum, que no meio do mar  frente ao areal, os santos tenham recepção de gala por parte da imensidão de surfistas que os esperam e que dessa forma Lhes rendem  homenagem e expressam gratidão !
Não é comum, que meio mundo molhado quase até à cintura, aguarde pacientemente na rebentação, que sete ondas se façam, e só então ... do céu, uma nuvem de pétalas de rosa exploda e desça em cascata, sobre a Senhora da Praia, culminando dessa forma a emotividade do evento !

Até eu que sou gaivota  de vida dura em falésias escarpadas, gaivota de mar alteroso e mandão ... que pairo por aqui enquanto a vida me deixar ... que já vi coisas demais nesta minha curta existência de pássaro livre ... até eu, cujo coração quase me salta do peito, quando a borrasca faz cara feia às areias e a quem se atreve ... até eu, deixei correr uma lagriminha desobediente, bico abaixo, precisei sacudir a cabeça para que os olhos marejados desenturvassem, antes de me fazer aos céus, e agora bem lá de cima, de novo acompanhar a imagem da Senhora da Praia,  em caminho de recolhimento por mais um novo ano !...

Anamar

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

" VONTADE FINAL "




Quando eu partir, quero juntar-me a ele...
A esse mar que lá de baixo não cansa de me embalar, perdida que estou, no topo daquela arriba.
Ali, onde o silêncio pelo sol-pôr é cúmplice, onde a brisa corre sem pudor, onde os pássaros marinhos partilham a promessa do sonho, comigo.
Os rochedos agrestes e altivos despenham-se em abalada na direcção da rebentação, salpicados aqui e ali pela vegetação bravia e simples, sem exigências de recorte, humilde e sozinha.  Vegetação de vida solitária e dura, que ninguém plantou, adubou ... sequer regou ...

O alto da Aguda é um sítio de privilégio, uma espécie de santuário de memórias, emoções, sonhos ... é terra de quietudes, é relicário de palavras ditas, é repositório de vida ...

De lá divisa-se tudo o que começa e não acaba, os horizontes que sempre vão mais e mais adiante, o que não pede licença p'ra ser e simplesmente é ...

De lá, nos dias escuros de Inverno, o bramido das ondas alvoroçadas do Atlântico, açoitando as escarpas estendidas até onde a vista alcança e a imaginação inventa, saberá ser sono e embalo, regaço e útero,  p'ra quem o escolheu por companhia ...
E nas Primaveras e Verões, quando as flores amarelas que nunca tiveram nome, por ali despertam e se juntam aos carrasquinhos, às urzes e aos chorões que medram em desrespeito, há uma beleza ímpar e selvagem ... uma espécie de trágica despedida.

Tenho a certeza que ali serei eternamente feliz.
Eu, que serei pó, e não mais que pó, terei a liberdade do vento que passa, terei por velas  as asas das gaivotas que não têm amarras, terei por destino as luas que vão e que vêm e que das noites fazem dias, e terei à cabeceira, para sempre, a litania incessante das ondas, que nunca me faltará ...

Tenho a certeza que quem por lá passar, escutará o riso do silêncio de quem simplesmente se sente em berço de terra escolhida e de mar ansiado.
E  não poderá haver maior paz que aquela que advém de uma pertença natural e óbvia ... não discutida !

Lá longe, as arribas da Praia Grande, o farol da Roca, sinalizador intemporal, puladas que sejam as Azenhas, as Maçãs, a Pequena, a Adraga, a Ursa ... Do outro lado, o Magoito e tudo o que vai até à Ericeira, vislumbrada se em céu limpo e ausência de neblina ... emolduram as vidas, os percursos, as histórias, as lembranças ... e a morte também !

Porque a gente deve adormecer onde o berço nos seja mais fofo, onde a almofada nos seja mais mansa, onde as nossas raízes possam baixar e baixar aos interstícios da rocha dominadora que se precipita falésia abaixo, lá possam criar outras raízes, que darão novas plantas que não vergam nem dobram, mesmo entre meio às borrascas e aos ventos impiedosos ... para todo o sempre !...
Porque a gente deve adormecer onde os códigos da alma se miscigenem com as linguagens do coração e da existência, num alfabeto só por nós entendível !...
Porque a gente deve repousar no sólo que seja chão nosso, nosso aconchego, por nada ou por tudo ... não importa !
Porque aí teremos a paz da eternidade !

Quando eu partir, quero juntar-me a ele...

Anamar