sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"LISBOA ESTAVA LINDA..."


Lisboa estava linda...
A Avenida da Liberdade nesta tarde de verão fora de época, convidava ao relaxamento, convidava ao "dolce farniente", convidava a ignorar os relógios.

Muitos estrangeiros, esplanadas cheias, o verde e as flores sabiamente distribuídos, tornavam aquele local aprazível, convidativo.
Afinal lá ao fundo, lá bem em baixo, o Tejo saudava-nos no seu azul turquesa, pejado de gaivotas, que ponteavam quais salpicos brancos, o azul do céu e do rio.
Por momentos até parecia que a crise fora apenas sonhada, parecia que o fardo que carregamos, por milagre sumira...

Tudo estava na mais perfeita harmonia, do castelo à Baixa, do Marquês ao rio.

Os seus olhos estavam ao nível dos calcanhares dos transeuntes.
Enrodilhada no chão, como podia, em trapos andrajosos e sujos, com o carapuço do que fora uma camisola, puxado a cobrir-lhe o rosto, estava aquela mulher.
À sua frente, o fundo recortado de uma garrafa de plástico, ansiava por recolher algumas moedas que teimavam em não cair.
Nas mãos, contra o peito, um pedaço de papelão contava a sua história....apelava aos corações para a sua desgraça.
Aquela mulher sem idade, já perdera a voz, já a cansara de tanto esmolar ingloriamente...já a fatigara por demais pela indiferença dos que a olhavam mas não a viam... dos que indiferentes arrepiavam caminho e seguiam apressados.

Era um rosto inerte, adormecido, que não estava sequer ali...
O olhar... esse não vi, embiocado no capuz que a cobria.
Aquela mulher era uma desistente, mais uma, na quadrícula social sufocante, que nos aperta mais e mais, todos os dias. Era um ser desesperançado, um ser sem sonhos, um ser sem identidade...

E as pessoas passavam, cruzavam-se, riam, falavam, alardeavam o privilégio de estarem vivos...
Acho que aquela mulher há muito que morrera, sem ninguém dar conta!...

Lisboa está pejada de mendigos...
Os bancos das alamedas que acolhem turistas cansados, acolhem mendigos sem tecto. As soleiras de edifícios classificados, são protecção para assomos de seres humanos...

Lisboa estava linda, nesta tarde de Verão fora de época... apenas maculada pela desgraça e infelicidade que a atormentavam.
Mais uma grande metrópole indiferente, distante, insensível já, às misérias que a povoam...

Anamar

sábado, 24 de setembro de 2011

"DEDO EM RISTE"

No meio do turbilhão de notícias preocupantes e desagradáveis com que os jornais nos presenteiam diariamente, e que infelizmente traduzem a realidade do país, europeia e mundial, fui um destes dias confrontada com uma que me arrepiou particularmente e que me arrepia até hoje...

Ocorreu há poucos dias, numa estação de comboio da linha de Cascais, Paço de Arcos ou outra.
Dois irmãos, 57 e 53 anos, jogaram-se para a frente duma composição, almejando assim encontrar paz para um sofrimento que não suportavam mais, segundo carta deixada e encontrada no bolso de uma das vítimas.

Ambos haviam tido uma vida normal, ao que parece, ele com uma profissão suponho que ligada à informática, ela, doméstica, a cuidar de uma mãe idosa, em cuja casa viviam.
A mãe faleceu e o direito ao arrendamento terá sido perdido.
Sem outros recursos, de um dia para o outro, encontraram-se a dividir com os sem-abrigo da cidade, os espaços da noite de Lisboa.

Não sei por quanto tempo por lá terão andado (a notícia não veicula) ;  nunca se encaixaram contudo, no puzzle de sofrimento, infelicidade, precariedade, dos que partilham esta "nódoa social"...
A tristeza, a desistência, a solidão, o cansaço, uma amargura crescente numa incapacidade de luta para reverter a situação, foi-se acentuando com o cair das forças de dia para dia, e de um dia para o outro, a sua luz ao "fundo do túnel", foi a frente de um comboio da linha...

Talvez eles tenham alcançado a paz, mas certamente a tiraram aos corações e às mentes que leram a notícia...
Notícia, como convém, divulgada em letras discretas, no interior do jornal, contra tantas outras, cabotinas, irrelevantes, que enchem as primeiras páginas de trivialidades quantas vezes insultuosas a um espírito minimamente clarividente e isento, de um qualquer cidadão...
Seguramente uma notícia que não é mais que um dedo em riste apontado à sociedade em geral, às estruturas sociais deste país, aos políticos, aos governantes...

Privilegiar uma política com preocupações sociais, foi também bandeira do governo de Pedro Passos Coelho, quando a realidade ainda era esperança...
Só que estas duas "testemunhas" silenciosas, não passam de pontas de um emaranhado de muitas outras, infelizmente exactamente iguais... de pessoas que padecem em silêncio (quantas vezes) dos mesmos males (apenas ainda têm alguma força para lutar), e representam  também a preocupação de todos nós na instabilidade que vivemos... e se "amanhã for eu"??  "E se, por toda uma sequência de circunstâncias infelizes, também eu, ou alguém dos meus, de um dia para o outro, ficar assim, com o Mundo desabado aos seus pés, sem chão para os pousar??"....

Temos sempre tendência a pessoalizar as nossas inseguranças e angústias...
O ser humano é egoísta por inerência, mas devíamos pensar e olhar bem de frente a "culpa" e a "vergonha" que temos obrigação de compartilhar numa situação como esta, para não fazermos de conta, comodamente, que não sabemos de nada ou nada podemos fazer...
São seres humanos, são pessoas, são gente nos limites da capacidade de resistência, ali, ao nosso lado, na cidade de Lisboa...

Vão dizer-me que continuo "naïve" ...  que situações como esta, tantas e tantas vezes encapotadas e até escondidas da sociedade por "vergonha", se repetem a cada esquina, e que é improvável que as consigamos resolver.
São os nossos "cancros sociais" e os cancros não têm cura!!...

Mas pelo menos não as aceitemos, rebelemo-nos contra elas, acusemo-las, denunciemo-las, confrontemos almas e corações, porque tem que os haver bem formados, em estruturas de resposta....: confrontemos o cinismo vergonhoso de uma comunicação social sem qualidade ou escrúpulos, que torna notícias de primeira página a vida privada de pessoas absolutamente irrelevantes, que explora , para vender mais, os meandros escabrosos e vergonhosos dos pseudo-vips deste pobre país, ou a "roupa suja" nada abonatória das politiquices de vão de escada... e esconde notícias incómodas e acusatórias embora profunda e magoadamente humanas...

Eles "retiraram-se" sem estardalhaço, pacata... silenciosamente...
Com eles carregaram o peso do Mundo em desespero, em dor, em sofrimento...

Nem eles sabem como puderam atormentar tanto, por aqui, certamente muita gente que por cá ficou....

Anamar

domingo, 18 de setembro de 2011

"DESAPRENDER DE ESCREVER??..."



Noto que não tenho escrito nada.
Este Agosto e Setembro idem, estão a ser de uma penúria de dar dó.

É verdade que também não tenho andado muito bem de saúde. É verdade que a situação da minha mãe me cria um clima de ansiedade expectante, que não favorece nem  concentração, menos ainda inspiração.
Parece que tenho algo em "equilíbrio", sempre no "tem-te não caias", que faz de cada dia um dia ansioso.
Dou por mim a dormir muito mal (tenho insónias persistentes, que só medicamentos dissipam), dou por mim a dar um salto da cama se o telefone toca e é de casa dela, o coração vem-me à boca e quase paro de respirar...

Bolas, esta situação é um pouco difícil de controlar, mais ainda de arrastar ao longo do tempo...

É um facto que ela é como uma criança desamparada que fosse largada no meio da rua, sujeita a todo o tipo de riscos...
É verdade que, como as pessoas me dizem, eu terei que por o coração ao largo e predispor-me para o que vier, porque afinal ela não obedece à mínima regra de prudência que eu determino, e continua a fazer exclusivamente o que quer.
Também não posso (apesar de já ter tentado em vão), retê-la em casa. É absolutamente impossível de conseguir, voluntariosa que é!

Portanto, estamos numa situação irresolúvel.
Acho que já ando a "bater" bem pior, e aí temos nós outro problema acrescido!

Neste "clima", escrever como, o quê e sobre o quê??...

Entretanto o Outono está a chegar...
Dentro de poucos dias está aí... O sol está já muito baixo, a temperatura desceu significativamente... não tarda as árvores começam a alaranjar, as folhas a tombar, os dias a encurtar...

Com a diminuição das horas de sol estão criadas as condições que favorecem o instalar das depressões, sobretudo para quem tem tendência a vivê-las, que é o meu caso.... e tem vagar para as viver... acrescentaria a minha filha, por achar (eu se calhar também acho) ser um "luxo" que não é "permitido a todos...

Efectivamente, se eu tivesse os tais "milhões" de coisas para fazer diariamente, como ela tem, se eu tivesse problemas de subsistência ou situações excessivamente complicadas a resolver (que felizmente não tenho), não teria "vagar" para "olhar" o amarelecer das folhas, não sentiria tão determinante assim, que o Outono chegue....simplesmente porque não teria disponibilidade para tais "frescuras"...
Tenho por isso até vergonha de colocar tudo isto aqui, numa altura em que o país está atolado em dificuldades reais, em que as pessoas estão submersas tentando "manter-se à tona", já não falando obviamente em reais problemas de saúde que também muitos enfrentam e eu felizmente não...

Bom, mas isto é um espaço também de introspecção, em que não posso sentir-me "censurada" no que escrevo, se corresponder à minha "verdade", mesmo que traduza uma mente , uma sensibilidade ou um coração doentes... ou então mais vale deixar-me estar quieta!!

Assim, neste domingo depois de um sábado igualmente sem "história", mas que não consegui "tornear" pela inércia habitual.... vou estando por aqui, melancolicamente, a apanhar o resto deste sol a despedir-se, por cima destes telhados duma cidade totalmente desinteressante, ouvindo de quando em vez os grasnidos da minha gaivota, que depois dos "banhos" de Verão, resolveu aparecer, anunciando que ainda sabe o caminho e que quando as borrascas do mar alto se fizerem sentir, voltará a chegar-se à minha janela, como hoje, em que simplesmente se deixa vogar ao sabor dum vento forte e desabrido...

Bem... contei-vos uma "estória" de domingo solitário, sem pés nem cabeça, que não vos acrescenta nada...
Desculpem... será que também estou a desaprender de escrever??!!...

Anamar

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"LIBERDADE..."


Este post, juntamente com o de ontem, é uma nota de humor na escrita de dois homens de letras que não necessitam de referências : o brasileiro Mário Quintana e o nosso "mestre" Fernando Pessoa.

Sobre ele recuso alongar-me, sabendo nós que quem não tiver sequer uma ideia sobre a sua pessoa e a sua obra, seja iletrado, direi mesmo "analfabeto" formal.
Esta vertente satírica, de um humor fino e requintado é um novo lado de "ver" Pessoa, igualmente interessante.

Juntei os dois posts porque fundamentalmente ambos abordam o mesmo tema que tão bem conhecemos, mas apenas os génios sabem traduzir : as pequenas / grandes prevaricações a que o ser humano é "convidado" diariamente, e o gozo que dá infringi-las, desrespeitar as regras instituídas...

De uma forma geral o ser humano vive "espartilhado" pessoal, social, profissionalmente. Vive entre convenções, vive entre a "cruz e a caldeirinha", vive entre o politicamente correcto que lhe impingiram, e a "rebelião" interna que sente dentro de si.

Ao longo da vida foi vinculado duma forma geral, a regras, figurinos, parâmetros, entre o que pode e o que deve, entre o parece e o não parece bem, entre o social aceite pela "carneirada" e as ganas que sente em não fazê-lo...
"É certo ou errado", "pode-se ou não se pode", "deve-se ou não se deve"... e as barreiras, as baias e os muros levantam-se cada vez mais altos à nossa frente.

E lá seguimos, mais ou menos contrariados, constrangidos, irados às vezes, de "olho gordo" sobre o que desejaríamos ter liberdade de fazer e a coragem ou ausência dela, para o fazer!...

O "pudim" de Quintana, está aí a cada esquina a espreitar-nos, a piscar-nos os olhinhos ... até que um dia mesmo os menos corajosos dão o salto e dizem : "Que se lixe"!!!...

  "LIBERDADE"

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca

                                                       Fernando Pessoa 
Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"IRRESISTÍVEL ...."



Nome:
Mario Quintana
Nascimento:
30/07/1906
Natural:
Alegrete - RS
Morte:
05/05/1994 em Porto Alegre

Foi um poeta,contista, tradutor e jornalista gaúcho.
Mário Quintana não carece de apresentações. Todo o seu espólio é e sempre será um espanto!
A sua poesia é marcada pela simplicidade, pelo humor subtil e pelas pequenas surpresas, em poemas que muitas vezes não têm mais do que uma frase... "Sonhar é acordar-se por dentro", é tudo o que diz um deles. Precisa mais? 
                                                             Mario Quintana

                 "Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
                  Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
                  nem desconfia que se acha connosco desde o início
                  das eras. Pensa que está somente afogando problemas
                  dele, João da Silva... Ele está é bebendo a milenar
                  inquietação do mundo!" 
 
   Recebi de uma amiga o texto que vos passo e que achei "divino"  (obrigada Emília).
   Se o apreciarem como eu o apreciei, teremos prestado uma humilde homenagem, a mais um "monstro" das letras e a mais um livre pensador do nosso país irmão!...
Convosco, portanto, com o meu carinho.......também o HUMOR de Mário Quintana!


                                      eterno espanto


           "Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?" 


Pesquisei na Net e esta "doçura" de poema, parece não dever-se a Mário Quintana, mas a um poeta uruguaio, nascido em 1920,  Mário Benedetti.
Era um admirador canino de Quintana, ao ponto de lhe deixar bilhetes, livros e quindins na portaria do seu prédio, e é ainda assim, uma adaptação do mesmo.

P U D I M

Não há nada que me deixe mais frustrada
do que pedir Pudim de sobremesa,
contar os minutos até ele chegar
e aí ver o garçon colocar na minha frente
um pedacinho minúsculo do meu pudim preferido.
Um só.
 
Quanto mais sofisticado o restaurante,
menor a porção da sobremesa.
Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência,
comprar um pudim bem cremoso
e saborear em casa com direito a repetir quantas
vezes a gente quiser,
sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.
 
O PUDIM é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
 
A vida anda cheia de meias porções,
de prazeres meia-boca,
de aventuras pela metade.
A gente sai pra jantar, mas come pouco.
 
Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
 
Conquista a chamada liberdade sexual,
mas tem que fingir que é difícil
(a imensa maioria das mulheres
continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
 
Adora tomar um banho demorado,
mas se contém p'ra não desperdiçar os recursos do planeta.
 
Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo,
mas tem medo de fazer papel ridículo.
 
Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD,
esparramada no sofá,
mas se obriga a ir malhar.
E por aí vai.
 
Tantos deveres, tanta preocupação em 'acertar',
tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...
 
Aí a vida vai ficando sem tempero,
politicamente correta
e existencialmente sem-graça,
enquanto a gente vai ficando melancolicamente
sem tesão...
 
Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado'.
Deixar de lado a régua,
o compasso,
a bússola,
a balança
e os 10 mandamentos.
 
Ser ridícula, inadequada, incoerente
e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito.
Recusar prazeres incompletos e meias porções.
 
Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se rebelou
e disse uma frase mais ou menos assim:
'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'...
 
Nós, que não aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem,
podemos (devemos?) desejar
vários pedaços de pudim,
bombons de muitos sabores,
vários beijos bem dados,
a água batendo sem pressa no corpo,
o coração saciado.
 
Um dia a gente cria juízo.
Um dia.
Não tem que ser agora.
 
Por isso, garçon, por favor, me traga:
um pudim inteiro
um sofá p'ra eu ver 10 episódios do 'Sexo e a Cidade',
uma caixa de trufas bem macias
e o Richard Gere, nu, embrulhado p'ra presente.
OK?
Não necessariamente nessa ordem.
 
Depois a gente vê como é que faz p'ra consertar o estrago.
“Há noites em que eu não posso dormir, de remorso por tudo o que eu
deixei de cometer.”
 
Mário Quintana
Anamar