sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

" DOENÇA DOS TEMPOS "




As pessoas morrem aos poucos, um bocadinho de cada vez.
A solidão em que uma imensa faixa da população vive, o isolamento a que é votada  mercê do ciclo da vida, marginaliza, obstaculiza e segrega da felicidade muito ser vivente.
As grandes cidades, com o anonimato de que somos vítimas ombro a ombro com as multidões que cruzamos, o ostracismo em células que muitas vezes já foram familiares e hoje pertencem apenas aos que restaram, as torres, os edifícios de muitos fogos com gente circunscrita a espaços demasiado restritos, desapoiada e confinada a mundos demasiado limitados, propiciam estados de alma deteriorantes e destruidores do ser humano.

A vida, com todas as dificuldades reais e exigências inerentes, com todas as angústias desencadeadas pela imposição do cumprimento de necessidades básicas, mesmo que só de sobrevivência ...
A vida, insatisfatória e com penalizações  frequentemente de uma violência desumana, entristece, desmotiva, cansa e angustia todos quantos a atravessam enfrentando os mais dolorosos escolhos ...
As dificuldades e as verdadeiras barreiras quase intransponíveis que se verificam no entendimento das linguagens, na comunicação entre gerações que criaram valores, convicções e formas de sentir totalmente diversas ...
A indisponibilidade que quase todos ostentam, num corre corre, numa lufa-lufa indiferente aos problemas de cada um, aos seus sentires e inquietações ...
A insensibilidade face ao outro, num egoísmo social, num egocentrismo monstruoso e sem tamanho ...
As frequentes desagregações familiares, as clivagens sociais, a progressão dos anos que também arrasta consigo limitações sérias e crescentes, a nível de resistência e de saúde ...
As incertezas em futuros que já se não afiguram tão distantes assim, e que se mostram preocupantes e com prenúncios de tempestades ...
... mergulham em si - em vórtices ciclópicos, em labirintos estonteantes e demenciais - as pessoas, já de si fragilizadas e desgastadas pela verdadeira epopeia que é viver e resistir no dia a dia.

Depois, surge também a dor da solidão afectiva.
Há cada vez mais pessoas que sofrem consigo mesmas.  Pessoas compelidas à sua solidão e ao seu isolamento emocional e afectivo, num processo contranatura, já que o Homem é um ser gregário, um ser de matilha e clã.
Ou por moto próprio, ou mercê de circunstâncias da vida, num desajuste com ela ... os órfãos do amor, do afecto, do amparo, do cólo de que não dispõem, do calor do abraço que anseiam ... são cada vez em maior número, alastrando uma epidemia social de gente sofredora da ausência de carinho e de afecto.
O aumento exponencial de divórcios e separações, a viuvez prematura entre pessoas ainda com invejável qualidade de vida ( mercê do acréscimo da esperança de vida  numa sociedade mais cuidada e com acesso a mais recursos em termos de cuidados de saúde) ... lançam na sociedade uma significativa franja de pessoas avulsas e sós, que, dependendo obviamente das suas personalidades e exigências perante a vida, a aceitam melhor ou pior, mais ou menos pacificamente e a vivem de uma forma mais ou menos feliz ... mormente com infortúnio e insatisfação, constato!

Não se encontram sucedâneos que colmatem esses buracos existenciais.
Não se compra afecto, partilha, cumplicidade, nas lojas que nos vendem quase tudo ...
Não se "encomendam" realizações e finais felizes,  para sonhos ainda tantas vezes sonhados.  Não se amanhece dizendo : "hoje encontro novos caminhos e vislumbro novas estradas !  Hoje, se chorar, vou ter quem pacientemente me seque as lágrimas, me devolva a esperança e a fé em novos e mais generosos horizontes !... "

E ss pessoas vão morrendo aos poucos, um bocadinho de cada vez .
Pelo menos até que ainda tenham um sopro de "vida" no coração e um derradeiro fôlego na alma ...

Mas,  os pôres de sol vão empalidecendo ... Esquecemos como é dançar na chuva ... O olhar opaciza, cansado de se alongar pelos montes, e o ouvido endurece ao canto das aves de outras vidas ...
A debilidade anímica abate-se sobre nós, a força do crer e do querer esvai-se, exaurindo a capacidade do avanço, perdida a aposta no valer a pena ...

Esta implacável "doença dos tempos" alastra e submete, trucida e desmantela !...

Anamar

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