domingo, 6 de outubro de 2019

" VOLTA SALAZAR ... ESTÁS PERDOADO ! "




O 25 de Abril encontrou-me já com filhos nascidos.
Trazia atrás de mim, portanto, alguns anos vividos.  Nasci, cresci e fiz-me gente na vigência do Estado Novo, que vivenciei durante tempo suficiente, para lhe perceber e sentir os mecanismos e as manhas.
Sou alentejana.  Nasci num chão de miséria, de injustiça e de infâmia.  Tenho no sangue a coragem, a luta e a determinação, e no coração, a esperança, a convicção e a altivez que nunca permitiu que vergássemos e baixássemos a cabeça.
Sou de uma raça que quebra, mas não dobra.  Mas pura de alma, honesta e trabalhadora.  Resiliente e corajosa.  Gente que enfrenta e não foge ... leva adiante, se acreditar !

Lembro o tempo do pão dormido, da açorda temperada com um fio minguado de azeite, na janta, quando os senhores da terra se compadeciam dos assalariados que nos Invernos rigorosos não podiam trabalhar os campos, e não ganhavam.
Lembro o tempo da fome, do analfabetismo, da ignorância e do obscurantismo.
Das injustiças sociais e suas assimetrias carrascas, das desigualdades, das arbitrariedades, da exploração ... do domínio dos poderosos, e da servidão do povo.
E do que não lembrasse, os meus pais se encarregaram de mo contar.

Sou oriunda de uma classe social  média baixa, da chamada gente remediada.
Sou filha de pessoas humildes, que viveram sem outros proventos que não o seu trabalho.  O meu pai foi um comerciante no ramo das ferragens, a minha mãe, uma simples doméstica que concluíu a instrução primária apenas já adulta.  Gente honrada e trabalhadora.  Não mais !

Estudei, contudo.  Cursei uma Faculdade no tempo da ditadura.
Lembro as perseguições políticas, lembro os medos e os silêncios.
Lembro as invasões da Faculdade pela polícia a cavalo e a brutalidade usada indistintamente, os jactos de tinta lançados sobre os manifestantes, que o ousavam.
Lembro a Pide, e os "desaparecimentos" súbitos deste ou daquele colega.
Lembro a Guerra do Ultramar, onde milhares de jovens perderam a vida, ou a estropiaram.
"Para Angola, rapidamente e em força!" - dizia sem respeito, Salazar, em Abril de 1961 ...
Lembro os auto-expatriados, como saída única de fuga à mobilização.
Lá fora, sem opção, longe da família e o coração em sangue, viam o seu país sem esperança, a fenecer, a morrer aos poucos ...

E Abril de 74 chegou, e com ele, sementes de esperança, de fé e de liberdade desceram sobre todos nós.  Bençãos em que acreditámos.  Sonhos que voltámos a sonhar.  Causas que voltaram a valer a pena.  E fé ... de que então era a hora ...
Portugal acordou renascido naquela madrugada !
Demo-nos as mãos, derrubámos as diferenças, levantámos pontes e caminhámos juntos, porque era tão grande a felicidade, que não cabia num coração único !

E a democracia chegou, como presente de Natal, com laço e fita.  Foi o nosso bem maior !
Foi difícil, foi suada, foi experimentada, foi aprendida, dia a dia, passo a passo.
Caímos muitas vezes, levantámo-nos outras tantas.  Fomos mantendo a esperança no acreditar em ideais que nos guiavam.
Os valores de Abril foram perseguidos, doídos e paridos com muito sofrimento ao longo dos tempos e das vicissitudes de cada tropeço.
Porque os aprendi na pele, tentei transferi-los adiante.
Desde logo, o uso da verdade, a isenção, a coerência, a honestidade.
Desde logo, o esforço e a aposta nas convicções, com seriedade e responsabilidade, com verticalidade e carácter ... sem desistência ou abdicação, doendo a quem doer, custando o que custar, com frontalidade e sem medos ... em todas as circunstâncias da vida de cada um.

Chegámos ao hoje.  Hoje é um dia duplamente carismático na História do meu país.
Hoje é o dia em que se comemoram os 109 anos da implantação da República em 1910, marco histórico na História de Portugal, e hoje é também o dia de reflexão às vésperas das eleições legislativas para a Assembleia da República, que se realizam amanhã.

E a que se assiste, neste momento ?

Reflectindo sobre os anos andados em jogos políticos oportunistas, em jogos de bastidores pouco saudáveis e claros, olhando os escândalos sucessivos em governações sucessivas ( na justiça, na saúde, na banca, no ensino ... entre muitos mais ),  constato tristemente que nos tempos actuais se atingiu um clima generalizado de suspeição sobre tudo e todos.
Suspeição sobre a seriedade de pessoas, suspeição sobre a informação difundida pela comunicação social (onde as fugas de informação sobre casos mediáticos, justificam a proliferação da mediocridade e do sensacionalismo informativo ).  Suspeição sobre as instituições, sobre os órgãos de soberania, sobre as classes e estruturas políticas e sociais, totalmente descredibilizadas.
Neste momento, os compadrios são descaradamente visíveis.  Os negócios suspeitos e pouco transparentes, grassam.  O hermetismo de instituições acobertando apenas troca de favores e ganhos ilícitos, proliferam encapotadamente.
A mentira alastra e os órgãos que deveriam ser livres e independentes na investigação e defesa do esclarecimento e transparência de factos criminalmente censuráveis, são pressionados, silenciados e coagidos.
A corrupção, a falta de isenção e a fuga à verdade, driblam uma justiça manifestamente doente, limitada e ineficaz.
Parece termos voltado aos tempos tenebrosos do silêncio, da conivência, do favor, do jeitinho e do privilégio de alguns que se mantêm impunes, em permanente "estado de graça", intocáveis e acima da lei !... Aqueles que têm o poder de mexer a seu modo, as pedras do xadrês político e económico.
E os tempos vindouros, infelizmente,  não são sequer promissores, à luz de toda a conjuntura europeia e mesmo mundial !
Sinto-me profundamente triste, desconfortável, defraudada, estranha e revoltada, num país que devia ser o "meu", e começa a ser-me desconhecido.  Não sei viver a duvidar da minha própria sombra, com "fantasmas" ( outra vez ), a conviverem com a minha realidade !

Não foi seguramente para nada disto que os capitães de Abril saíram à rua !
Não foi seguramente para nada disto que pugnei para instituir e alicerçar valores sérios e puros, no seio da minha própria família !
Democracia será isto ?!   Ou, simplesmente fomo-la deteriorando na sua essência, com toda a mediocridade humana ?!...

Ouve-se por aí, perigosamente com demasiada frequência, mas talvez com algum entendimento, a frase : " Volta Salazar ... estás perdoado !..."
Ainda assim, e apesar dos pesares, prefiro a mensagem deixada na balada "Trova do vento que passa", saudosamente cantada por Adriano Correia de Oliveira nos idos de sessenta, do século passado :

" Mesmo na noite mais escura, em tempos de servidão, há sempre alguém que resiste ... há sempre alguém que diz não ! "

Teremos que acreditar !  Resta-nos acreditar !...

Anamar

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