Verdade que depois da tempestade, chegará a bonança.
Temos vivido dias complicados em termos atmosféricos, em que depressões sucessivas com as consequências inerentes, têm violentado o país com ventos fortíssimos e cheias destruidoras que deixam populações, culturas e habitações em situações bem precárias.
Somos um país pequeno, de poucos recursos, e como tal, qualquer situação mais gravosa logo deixa marcas notórias de devastação e dor ...
Mas hoje, pese embora não tenhamos uma melhoria certa e segura, a chuva deu tréguas, o céu de chumbo pesado de borrasca passou a um cinza menos agressivo, e há pouco, um sol muito mas muito tímido, espreitou e garantiu aos mais cépticos, que por cima das nuvens ele está lá ... sempre está lá !
Aqui da minha janela, frente à mesa onde escrevo, olho o horizonte lá longe, vejo o plátano despido aos meus pés, verifico que a folhagem das árvores que ainda a detêm, pouco mexe ... e escuto e sigo o rumo de algumas gaivotas que se bamboleiam na aragem que sopra lá fora.
O seu grasnido e o voo errante, sempre me deixam nostálgica. Lembro os tempos da "minha" gaivota, quando ela me trazia novas dos areais distantes, e o cheiro da maresia e da caruma da Serra ...
Hoje, acho que até mesmo a "minha" gaivota foi à vida dela ... porque eu deixei de ter olhos para a contemplar e ouvidos e voz para com ela cumpliciar ...
Acho que essa ingenuidade contemplativa e onírica, ponteou apenas uma época da minha vida ... não mais !
Esta quadra calendarizada ... não canso de referir, porque não canso de sentir ... é muito complicada para a minha cabeça . Sei que como eu, muitas pessoas se sentem, se possível, com uma solidão instalada e acrescida. Sei que como eu, muita gente faz balanços de vida, pega no deve e haver que ela lhe estendeu ao longo do ano que se apresta a terminar, e muitas vezes, objectivamente se sente como barquinho de papel em riacho alteroso.
Questionamos mais e mais a razão da existência, reflectimos sobre o insucesso e a ineficácia da perseguição falhada a objectivos não alcançados ( apesar do denodo e da aposta tantas vezes investidos ), "crucificamo-nos" pela incapacidade sentida e frustrante no leme do barco, deixamo-nos invadir por saudades ( de pessoas, de lugares, de tempos, da nossa juventude ... de nós mesmos, e daqueles que um dia fomos ... ) ...
E enfim, este tipo de pensamentos perseguidores, despoletadores de vazios e mágoas, em nada contribuem para que nos sintamos felizes !
Entretanto, há poucos dias Patxi Andión, o cantautor mais português de Espanha, sociólogo, actor e escritor, um lutador acérrimo contra o fascismo de Franco, morreu estupidamente num acidente rodoviário, aos setenta e dois anos.
Foi para a minha geração, seguramente, uma referência cultural ecléctica, no panorama artístico internacional, em que se posicionou fundamentalmente como interventor social e político, homem de esquerda que era.
Descomprometido e coerente, sempre assumiu, quer na sua terra ( um madrilenho com raízes bascas ), quer no exterior, nomeadamente em Portugal onde actuou regularmente ao longo de cinquenta anos, o rosto da resistência anti fascista, da denúncia e da defesa contra as injustiças e arbitrariedades sociais, e bem assim das grandes causas e desafios, que se colocam ao homem do século XXI.
A sua voz rouca inconfundível, deixava passar mensagens de justiça, solidariedade e esperança.
Em 2013, o tema " Palavras ", intimista, particularmente doce e sensível, falava-me de algo que de alguma forma, eu experienciara anos atrás.
Hoje, Patxi Andión tinha em mãos a continuação de um trabalho em dois álbuns, a finalizar em finais de 2020 com o álbum "Profecias", tendo o primeiro sido lançado em 2018 com o nome de "La hora Lobicán".
A "hora Lobicán" é uma expressão muito usada pelos "viejos", nas Astúrias e na Galiza, referindo aquela hora do dia, o lusco-fusco, aqueles momentos do amanhecer e do anoitecer, em que há uma indefinição entre a imagem do lobo e do cão. Em que há um confusionismo entre o que se vê e o que realmente é, como se "nieblas" espessas se abatessem e turvassem a nossa vista ...
" La hora lobicán, que decian los viejos. Confunde al lobo en can y al perro en lobo. Y todo pude ser sin que se vea nada. Suspenso cautelar de todas las miradas. La hora lobicán es hora y humo. Humo para esconder y hora en punto que se dispone a ser, otra vez más, un nuevo amanecer ou atardecer secreto ... " - estas as primeiras estrofes do poema.
É como se se diluísse ou dissipasse a resolução visual das coisas.
Transpondo esta simbologia metafórica para a realidade da vida do Homem nos tempos actuais, pretende chamar-se a atenção para a mistificação das verdades, das realidades, das certezas. De repente, tudo o que parece não é exactamente assim, havendo uma camuflagem perfeita, intencional, manipuladora do que está frente aos nossos olhos.
É manifestamente um trabalho de índole social e política, que desmistifica a fluidez, a incerteza, a desvalorização e a insegurança da sociedade onde hoje se vive.
Desmistifica, em suma, os valores de uma sociedade, que por valores reais já pouco se norteia !...
Uma sociedade "líquida" e escorrente, como actualmente se denomina ...
Anamar
Sem comentários:
Enviar um comentário