sábado, 24 de abril de 2021

" BREVE RADIOGRAFIA "


Um dia cinzentão com cara copiada da minha, e da minha vida.
A "Lola", mais uma tempestade das invencionices da meteorologia, parece atravessar o país.
Por aqui, de tempestade nem bem o cheiro, pois além do céu de cenho carregado com a abóboda uniforme e borrascosa, nem chuva nem vento, nem ameaços ! 

Tempestade, a bem dizer, despenca diariamente aqui no meu prédio, desde as nove da manhã, até perto das seis tarde, com as famigeradas obras a decorrerem dois andares abaixo do meu. 
Casa vendida depois do falecimento da proprietária, nossa condómina para mais de quarenta anos, abre-nos uma nesguinha do que serão também, inevitavelmente, os destinos da nossa história, passados que forem os tempos ...
Não quero pensar muito nisso. Afinal, espero que quando tudo venha a acontecer, previsivelmente eu já cá não esteja.
Gostaria de partir aqui mesmo da minha casa, casa onde entrei, por estreia da fracção, no dia 1 de Junho de 1974.  Casa de alegrias, de desgostos, de sonhos, de realizações, de desânimos experimentados ... casa de silêncios, agora. Porque já o foi de risos, de gritarias inconsequentes da miudagem, de emoções, confraternizações e comemorações, como sempre acontece em todas as famílias ainda estruturadas, como a minha o foi, até há já largos tempos atrás.

Esta solidão que divido hoje com os meus gatos, encaminha o meu pensamento para becos tão escuros quanto o dia, para estradas tão sem sentido e destino, quantos os que tem um caminheiro no deserto, sem bússola ou estrela ...

O desconfinamento pandémico abriu, e caminha-se para um possível levantamento do estado de emergência no fim do mês.
Abriram os cafés, deixando de servir exclusivamente ao postigo, abriu a restauração com condicionalismos penalizantes ainda, espectáculos, cinemas, teatros, museus, exposições e outros eventos culturais descerraram portas, os ensinos secundário e superior retomaram.
Contudo, sinto em mim a magnitude do estrago infligido pelos tempos.  Foi-se-me embora o medo, ou melhor, foi-se-me embora o susto, o pavor, o desnorte que no princípio me deixou barata tonta.  Interiorizei a doença, agreguei no meu ADN a existência da mesma e a necessidade de com ela conviver com alguma "normalidade" possível.  
Fui vacinada sem grande convicção. Mas fui. Não que isso tivesse sido um acréscimo de tranquilidade significativo, no meu espírito ... só que ---

Só que hoje sou formalmente uma pessoa diferente, sou uma pessoa amargurada, torturada por esta avalanche de acontecimentos que nos submergiram, cansaram e tiraram a disponibilidade emocional.
Sou o pássaro a quem abriram a gaiola mas a quem não apetece saltar, sair, voltar para o verde e o azul lá fora.  Sou a ave que vive triste, sem se atrever outra vez ao infinito ... porque perdeu a vontade e o gosto.    
Nada é igual, nada está igual.  As pessoas envelheceram de cansaço e desânimo.  Vejo isso nos espelhos ... vejo isso nos rostos com que me cruzo.  Não serei excepção.  
Já poderia dar alguns curtos voos ... já poderia ir além do limiar da porta, do fim da estrada, p'ra lá do horizonte ... Mas a força anímica, o empenhamento na aposta, a energia para o arranque ... onde estão ??  Não os encontro dentro de mim !
Esse imobilismo é que me assusta, esse amorfismo é que me atormenta, essa aparente indiferença é que me incomoda ... essa angústia é que me mata !  Afinal, são sinais de morte e não de vida.  São manifestações de um tédio patológico, de um desinteresse doentio, de uma tristeza insalubre !
Não sei, não vislumbro como reaprender os passos, como reconhecer o caminho, como reinventar o sonho !
Que precisarei fazer para me reencontrar ??

Anamar

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