quinta-feira, 13 de maio de 2021

" SONHO CUMPRIDO ! "



Afinal, mãe, em que é que ficamos ??

Havia dito que não queria morrer antes do seu Sporting ser campeão ...
Que nas suas orações tentava sempre sensibilizar a Nossa Sra.de Ao pé da Cruz, para dar uma mãozinha, ano após ano ( e foram muitos ), por forma a que as bolas acertassem em balizas adversárias que pareciam teimosamente estreitar-se, por cada jogada ... 
Tudo isto na mais descarada promiscuidade nunca vista, entre futebol e religião ! 😏😏😏
Havia dito que o enguiço era de tal ordem, que para não o agravar, agoirando o resultado, não veria jogos, nem ouviria relatos ... já que o sofrimento era devastador.  Ligava o rádio no início das partidas, conferia a constituição da equipa, e encerrava. Dez minutos antes do intervalo, meio a medo, meio em angústia, reabria e conferia a matemática do placard.  Repetia-se o filme na segunda parte e novamente dez minutos antes do apito final, era chamada à realidade.  
Das duas uma, ou o marcador nos era favorável ( folgadamente favorável, deve dizer-se ), e usufruía então a felicidade de uma vitória quase garantida até ao apito final, ou ( muito comum ), as coisas não haviam corrido de feição, e a tristeza não lhe permitia continuar a padecer por mais tempo, e retirava o pio ao rádio.
"Será para a próxima !  Eles coitados, até jogaram bem ... mas têm muitos jogadores lesionados, sabes ?!"
E eu irritada com tanta complacência e tanta capacidade de aceitação e justificação ... "Bolas, ganham rios de dinheiro para isto !..."
E lá vinha mais um desfiar de "acidentes" e incompreensões do árbitro, faltas mal marcadas, favores, penáltis indevidos, mais um azar perseguidor ... fazer o quê?!
Nessa noite, aposto que as orações eram reforçadas !...😁😁
Certo certo, é que na manhã seguinte, e infalivelmente em todas as outras, pelas sete, a "Bola Branca" na Renascença, era religiosamente escutada, e todo o historial e debates dos jogos, eram escalpelizados.

E depois, na ponta da língua, eram as histórias das transferências, das chicotadas psicológicas, com os treinadores a dançarem na corda bamba, eram as dispensas, eram os jogadores no banco, por castigos ... era a pontuação no calendário dos campeonatos, das taças e jogos internacionais ...
Era o caderninho feito à mão, jornada a jornada, dos jogos que iriam ocorrer, e ao lado, a seriação pontual de todos os clubes.  Até ao Natal a coisa ia ... depois é que eram elas ...
E tudo sofrido  e levado a sério, a camisola também suada !...

A história já vinha de trás, muito de trás, eu diria que quase de nascença. Afinal, ser "leão" não é p'ra qualquer um. Requer características muito próprias, de fé, sacrifício, perseverança, resiliência e muito amor ao clube.
Numa casa de cinco filhos, lá no Alentejo profundo, em que a única nota dissonante era um pai benfiquista ferrenho no meio de um verde que já nascia com todos, o coração e a mente eram forjados no sonho da vitória. Mesmo sendo mulher, eu sei que o apego ao acreditar, a garra naquela mística que não se explica, nunca apagou a chama ...

Mãe, lembra-se quando íamos as duas aos jogos do Lusitano de Évora, em domingos em que o nosso clube o visitava ??  Íamos só as duas, porque o pai a fizera sócia do clube da casa. Ele, que nunca gostou de futebol, sabia que a mãe o tinha nas veias.  Bancada de sócios, e os meus sete, oito anos permitiam que mesmo dali eu festejasse os "nossos" golos. Eu era uma criança afinal, já a mãe tinha que comportar-se !😁😁

Anos que foram passando, histórias que eram contadas, os cinco violinos e tantos nomes míticos da história sportinguista nas mais variadas modalidades, que já eu também dominava, como se as tivesse vivido...  
Depois, a agenda com os autógrafos dos pupilos de Augusto Inácio e dele próprio, num período mais próspero, quando a sua neta a levou, já com oitenta anos feitos, a assistir a um treino da equipa, foi mais uma peça do espólio guardado religiosamente, até ao fim ... herança dos bisnetos ...
E aos noventa, uma visita circunstanciada ao Museu do Sporting, uma subida ao topo de Alvalade com direito a fotografia sobre o relvado, no que foi um presente inesquecível ... o melhor que lhe podiam ter dado !!
Em suma, toda uma vida de devoção, partilhando com denodo os êxitos e os fracassos, os sonhos e os objectivos ... as alegrias e as aflições ... tudo muito a sério, matriarca que era  duma família onde já se nascia "verde" !

Afinal, mãe, em que é que ficamos ??
Tinham sido só mais três anos de espera ... Acho que se a mãe soubesse, teria mesmo esperado ... 
Não lhe deram essa alegria !
Quando partiu, levou o seu clube no coração, e junto ao rosto o cachecol que sempre a acompanhou !

Somos CAMPEÕES, mãe ... 
Alvalade ontem, era uma nuvem verde, duma esperança que se tornou realidade.  A festa fez-se, os fogos subiram no céu escuro, os cânticos ecoaram por essa Lisboa fora.
Afinal todos sabemos porque foi impossível ficar em casa !... 

E como estaria transbordante de felicidade se o tivesse presenciado !...

Anamar

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