quarta-feira, 27 de abril de 2022

" EL CONDOR PASA ... " - CHILE, parte primeira



Segui para o Chile em viagem de lazer, a 5 do presente mês de Abril.  
Viagem marcada desde o início do ano, pesava-me agora na alma, como se ao fazê-la estivesse a cometer algo indigno, inadmissível nos dias que vivemos. Disse-o a algumas pessoas que jamais teria escolhido viajar, no contexto social que atravessamos, não conseguindo ignorar todo o sofrimento inenarrável experimentado por tantos seres humanos indefesos, vilipendiados, ultrajados, em sofrimento e dor absolutos, aqui ao lado, na Europa de leste.
Até à véspera de partir, a guerra tirou-me horas de sono, angustiou-me as noites e assustou-me os dias.  A impotência e o choque face a imagens que jamais suspeitaríamos poder visualizar, a incapacidade em conter a barbárie avassaladora e insensível, a brutalidade do Homem face aos seus semelhantes, indiferente à idade, ao género, à desproporção maniqueísta de forças, a violência gratuita usada indiscriminadamente no genocídio em massa levado pela Rússia sobre a Ucrânia, tirou-me vontade, disposição ... saúde ...

E parti.  
Parti, albergando em mim uma remota esperança : a de que o conflito pudesse ganhar tréguas, e que, ao regressar, o pesadelo já pudesse ter tido um fim !  Era o que mais ansiava e o que mais poderia ter-me deixado feliz !
Tal não viria a acontecer. E depois do pior, parece haver sempre algo que o supera, em grau e em género,  mostrando  que  o  ser  humano  não  tem  de  facto  limites  para  o  pior  de  si  mesmo !...

Assim o Chile, e nele o meu encontro com uma Natureza diversa e estrondosamente bela, afastou-me um pouco, do cabo das tormentas que atravessam, fustigam e devastam neste momento, o meu continente.

É um país de diferenças, com uma biodiversidade fantástica.
Aquele país "magrinho e comprido" como o caracterizou o meu neto, tem múltiplos rostos, se percorrido em comprimento, ao lado da cordilheira que o originou.  Os Andes, lá onde o condor  patrulha os céus, parece ostentar os seus picos nevados em permanência, apenas a uma "mão travessa" abaixo do avião que os sobrevoa.  
Fruto do conflito de três placas tectónicas, essa orografia esmagadora, define a fronteira natural com o país vizinho, a Argentina, enquanto que a Cordilheira da Costa, o separa do Pacífico, mais a oeste.  
Santiago, a capital, situada mais ou menos a meio da geometria geográfica, deixa para norte, até ao Perú a mítica extensão de solidão e sal que é o deserto do Atacama, paisagem lunar, onde qualquer resquício de vida parece não ter condições de existência. 
É um mundo dentro de outro mundo, o que os picos vulcânicos nos oferecem.  É uma magia muito particular, a experimentada a 5600m de altitude, na demanda da cratera do vulcão Tatio, um dos dois mil e muitos vulcões existentes em todo o Chile, dos quais mais de duzentos se encontram activos ... 
Os geyseres e as fumarolas atestam claramente que nas entranhas daquele solo, o planeta Terra continua bem vivo !
Deixando para trás S.Pedro de Atacama a 2400m de altitude e vendo nascer o sol por detrás de um dos picos vulcânicos, com temperaturas negativas, apesar duma luminosidade clara e transparente no dia amanhecido, foi  algo inesquecível !
É uma natureza bruta, selvagem, agreste, dominadora... 
Ali, o Homem confronta-se com a pequenez do seu "eu", com a insignificância real e objectiva da finitude da vida e experimenta um respeito avassalador e silencioso perante a morte...
Gera-se um recolhimento que se obriga.  Gera-se uma introspecção e um intimismo partilhados.  Ali, há uma verdade palpável que perpassa ...

El Tatio, significa na língua mapuche ( povo ameríndeo que habita milenarmente certas regiões do Chile e Argentina e que representa a "fala da Terra" ), "forno" ou adequadamente também, "velho que chora" ...
Por tudo isto, os "geyseres del Tatio"  (colunas de vapor que saem à superfície por fissuras na crosta, a temperaturas perto da ebulição e alturas de cerca de 10m, no terceiro maior campo geotérmico do mundo ), perdurarão "ad eternum" dentro de mim ...
Também as lagoas altiplânicas salgadas, no topo das elevações, emolduradas pelos cumes dos vulcões, me maravilharam pela cor esmeralda das suas águas adormecidas.  Junto delas, os guanacos, camelídeos selvagens destas paragens, pastoreiam sem sobressaltos ...
Vencido o Trópico de Capricórnio á latitude 23º 26' 16'' no deserto mais seco e mais antigo do planeta ... árido, desolado e lindo (os cientistas acreditam que o núcleo do Atacama permaneceu em estado hiperárido permanente por cerca de 15 milhões de anos, não havendo registo de chuva significativa nos últimos 500 anos ), a sua altitude e um céu brutalmente claro e límpido, tornaram-no um lugar por excelência para observações astronómicas.
Quarenta por cento de todos os centros de observação dos céus, no mundo, ficam localizados neste lugar. O telescópio mais famoso do Atacama ( Atacama Large Millimeter Array - ALMA ), foi o primeiro do mundo a fotografar um "buraco negro".  Também em Cerro Toco se localiza o telescópio situado à maior altitude do planeta ... 5190 m !
É um fascínio no silêncio da noite, buscar nos céus, onde as estrelas brilham como em nenhum outro lugar, o cruzeiro do sul, que integra a bandeira de Magalhães ...

Do Atacama com o seu salar, deserto de sal com cerca de 3000 quilómetros quadrados de extensão, onde no meio do brilho imaculado das formações salinas de sal petrificado, três espécies de flamingos estabelecem colónias de passagem, no que constitui a Reserva Nacional de flamingos, rumei ao sul para abordar uma efeméride histórica, incontornável ... fui encontrar o Estreito de Magalhães, na Patagónia Chilena.  Mas disso falarei no próximo texto ...

Anamar

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