segunda-feira, 4 de abril de 2022

" NÃO SE ESQUEÇAM DE NÓS !..."

 


Uma Primavera instalada com o tempo adequado : chuvinhas intermitentes, sol ainda pouco convicto, temperaturas afáveis.  Páscoa à espreita na primeira curva do tempo, ou seja, a pouco mais de uma semana.  
Os miúdos nas escolas nem saboreiam um tempo pascal clássico, já que o período tradicionalmente destinado a férias foi totalmente absorvido para a compensação de um início tardio do segundo período escolar, devido a um recrudescimento verificado, da Covid 19, no passado Janeiro.

Entretanto pouco aqui tenho vindo, no que se revela um cansaço psicológico atroz, em crescendo, desde que a guerra na Ucrânia começou.
As notícias são de tal forma destruidoras, arrasantes, insuportáveis, que na impotência que experimentamos, impõe-se, para auto-protecção e defesa pessoais, um afastamento das mesmas, das imagens, do sofrimento.
Ainda assim,  não estando felizmente lá, no campo dos horrores, não há contudo muita escapatória para a fuga que nos apetece, como se, não vendo, não escutando ou tentando anestesiar-nos com o silêncio, pudéssemos escapar ao que sabemos existir !

É um país totalmente aniquilado, arrasado, destruído, aquele que a comunicação social nos veicula.  É total e desesperadamente doída a realidade trazida por imagens de corpos espalhados pelas ruas que o foram, abandonados em espaços atulhados de pedras, de escombros, de estruturas queimadas, de vidros estilhaçados, de edifícios esventrados, escurecidos pelo fogo e pelo fumo negro das explosões.
É devastador, olhar as valas comuns cavadas a esmo e aleatoriamente em meio de espaços residenciais ... de olhar cruzes em madeira espetadas em covas improvisadas às portas dos edifícios habitacionais. Identificadas ou não, sabe-se que ali, naquele chão, repousa finalmente talvez em paz, alguém ... pai, mãe, filho, marido... um qualquer ser humano, uma família mesmo, cujo trajecto nesta vida ficou inexplicável e injustamente interrompido !
Corpos silenciosos, corpos com que os cães que vagueiam também eles perdidos, assustados, sem casa ou referências, se tentam alimentar desesperadamente ... porque, como dizia ontem já sem sentimento ou emoção, alguém que não estava a viver, mas sim perdidamente a vaguear por ali :" os cães também precisam sobreviver !... "
Há carros totalmente destruídos por todo o lado.  Há tanques de guerra com perfis demoníacos e monstruosos, horripilantemente reduzidos a metal fundido ...  assombrando com os seus perfis malditos o verde que ainda se mantém, de zonas ajardinadas, de parques infantis com baloiços vazios de crianças e de vida !
Ontem, imagens que não se descrevem, de Bucha, nos arredores de Kiev, inicialmente em mãos russas e resgatada pelos soldados ucranianos.  No abandono, ficou um rasto de morte e devastação ... ficou o resultado de um genocídio vingativo e premeditado.  A população civil, sofrendo toda a sorte de violência e sevícias, foi totalmente dizimada.  Assim, gratuitamente, com mãos amarradas, sacos na cabeça, alvejados pelas costas, na nuca ... os corpos tombaram no chão, para todo o sempre !

Eu sinto náusea, horror, sinto uma pedrada dentro de mim mesma, num lugar que deve ser onde o coração se encontra ... Já não consigo chorar ou sequer aliviar um pouco este aperto que me estrangula a garganta ...
PORQUÊ ?  PORQUÊ ?  PARA QUÊ ?  Como pode o ser humano, esta espécie biológica à qual pertencemos, ser isto, ser esta coisa vil, de monstro sem tamanho, aterrorizante, nojento, sem veias ou sangue a correr nos corpos ?!  Em nome do quê ?  
O que pensam estes carniceiros sem um pingo de sentimento ou humanidade  ( e que já estão, eles sim, mortos sem o saberem ), sobre a Vida e sobre a sua auto-atribuída omnipotência ?!  Julgam-se deuses, certamente ...
E não é só Bucha que sofre.  Há iguais notícias noutras cidades, já não falando da cidade mártir ... Mariupol !...
Afinal a história desta guerra insana escreve-se a letras de sangue por toda a Ucrânia, com a total indiferença e vanglória da Rússia, e uma espécie de letargia, imobilismo ou bloqueio assustado por parte de toda a comunidade internacional !
A ameaça nuclear, esse monstruoso espectro está à frente de todos os olhos, nunca se falou e pensou tanto em Hiroshima e Nagasaki como nestes dias de terror instalado, enquanto Putin, o monstro dos monstros persiste encouraçado nos seus castelos inexpugnáveis, louco, alucinado, irredutível ...

Odessa, a "pérola do Mar Negro", a cidade carismática historicamente ligada à Segunda Guerra Mundial e classificada como Património Mundial pela Unesco, que havia sido poupada desde o início do conflito, começa agora a ser também bombardeada indiscriminadamente, no desígnio determinante dos russos fecharem à Ucrânia o seu principal porto de mar, porta de escoamento das suas exportações através do Mar Negro. 
Dessa forma, com o Mar de Azov também controlado através de Mariupol e pela zona do Donbass, inevitavelmente, Odessa será o último reduto que caindo, confinará a Ucrânia em relação ao exterior.

E eu, com uma viagem marcada há largos meses para fora de Portugal, quando nem me passaria pela cabeça sequer um vislumbre de tudo o que viria a desenrolar-se, deixarei amanhã o meu chão, a minha gente, as minhas coisas ... os meus bichos.  E reside em mim um misto de sentimentos e emoções.  Parece quase imoral ao meu coração poder usufruir, vivenciar esta viagem de lazer neste contexto, paredes meias com o sofrimento de tantos espoliados de tudo, de tantos que catam nos destroços, algo para sobreviver, no meio de tantas famílias destruídas, no meio de tantos órfãos da guerra  e de  tantos pais sem filhos, de tantos velhos que mal se arrastam a viverem em caves bafientas e húmidas, há quarenta dias ... sob o som das sirenes que não silenciam, o pavor de cada míssil que atravessa o céu escuro das noites infindas ...  e o desespero da esperança que lhes foge ... no meio de tantas mulheres em carne viva que enterram com as suas próprias mãos os seus entes queridos, os seus amores, os afectos, o futuro e o sonho de vivê-lo ...
Sinto-me injustamente privilegiada, bafejada pela sorte de ter nascido aqui, neste canto de remanso e paz.  Sinto uma espécie de culpa e de vergonha, talvez ...

É então que penso na precariedade e na aleatoriedade da existência humana, no tabuleiro de xadrês em que jogamos por cada dia das nossas vidas ...
É então que penso nos que são escrutinados com um destino de sorte e nos que sem culpa ou pecado, expiam tudo aquilo que não mereceriam, no limiar do sobre-humano ...

E lá de longe escuto um apelo desesperado " Não se esqueçam de nós !..."

Oxalá todos aqueles que conhecem as palavras liberdade e paz sempre os recordem !

Anamar

Sem comentários: