quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A " DESENCANTADA" - RITA, UMA HISTÓRIA DE AMOR E PACIÊNCIA

 



Voltei a ter brinquedos espalhados pelo chão, na minha casa.  Brinquedos, quero dizer, bolinhas mais ou menos saltitonas, mais ou menos barulhentas, ratinhos mais ou menos desmembrados, de outros tempos, de outras épocas.
Passo a explicar : voltei a ter um gato que brinca, que corre, que "caça", que espreita, que ensaia a "tocaia" e persegue a "presa" ... 
No caso em apreço e para ser mais precisa, uma gata.

Há largos tempos atrás falei-vos vagamente dela e prometi contar-vos a sua história de vida ... a dela e a minha com ela.  Pois bem, chegou o dia.

A Rita, assim se chama a criatura, anteriormente "Pequenota", baptismo feito pelo seu benfeitor na mata onde nasceu e viveu, veio inopinada e imprevisivelmente ter a minha casa, fruto de um complicado "acidente de percurso".
Nasceu, ao que parece, há cerca de seis anos, na mata onde regularmente realizo as minhas caminhadas semanais, numa colónia de gatos lá residente, tratada por alguém que lhes dedica muito da vida.
A Pequenota ( por ser de facto uma gatinha "mignonne" ) lá vivia feliz e contente.  Era tímida, convivia pouco com os colegas do "condomínio", era reservada e medrosa e não gostava de confusões.
Certo dia apareceu ferida numa pata.  Um rasgão cuja origem não se soube exactamente, se de um ataque de cão ( o local é frequentado diariamente por esses patudos, às vezes com trela, outras sem ), se de uma fuga precipitada pelo meio das silvas.  O que é facto é que apesar da cuidada assistência possível ministrada pelo Sr. Sérgio, a lesão infectou e a Pequenota já caminhava sem se conseguir firmar na patinha.  Havia que recorrer a quem pudesse resolver a situação séria em que o ferimento estava a descambar.
Eu e uma amiga, apaixonada também na primeira linha por gatos, cotizámo-nos e a menina foi assistida devidamente por uma veterinária que parcialmente "pro bono" prestou os seus serviços nesse sentido. Foi intervencionada e esteve internada mais de uma semana.

Corria o mês de Fevereiro, mês de Inverno como se sabe, com chuvas, ventos e sobretudo lama, muita lama na mata, condições adversas a que a Pequenota para lá pudesse regressar após a alta clínica.
Foi um drama arranjar solução para a situação.  Seria no mínimo desumano sujeitar a gatinha de novo ao habitat donde viera, obviamente.
Quer eu, quer a minha amiga, já detínhamos gatos.  Eu perdera o Chico havia meses e jurara que quando o Jonas partisse também, terminaria a geração de felinos na minha casa.  O sofrimento de se perder um ente querido ( é assim que considero os meus animais ) que dividem e partilham as vidas connosco, é duma violência atroz, que quase sempre nos leva a desistir de poder voltar a passar pelo mesmo, futuramente. 
E era essa seriamente a minha intenção.  Mas pôr a Pequenota na mata, de novo, naquelas circunstâncias, fazia-me doer a alma.
Assim, tentei de todas as formas arranjar-lhe um lar, contactando conhecidos, amigos, pessoalmente ou através das redes sociais, alguém que me garantisse a confiança e a certeza de que a gatinha seria bem tratada. Em vão !  Quem já teve não quer mais, quem tem não quer aumentar a população de animais em casa, pelas mais variadas razões e argumentos.  Enfim ... a Pequenota, agora Rita, ficou na minha casa.

E Rita, porquê ?
Simplesmente Rita em memória de um gato que tive há anos atrás e de quem ela é fisicamente uma réplica.  Foi um gato que entrou na minha casa como gata, por equívoco, o qual, decifrado já fora de oportunidade, fez com que Rita ficasse até morrer.
Foi o animal mais dócil, mais querido, mais "gente" ( embora eu ache que até é injusto e ofensivo conotá-lo com "gente" ) que eu tive na vida, um companheiro incrível, incondicional e dedicado de dia e de noite.
A Rita era uma sombra minha, vinte e quatro horas por dia, e deixou-me até hoje um vazio afectivo sem tamanho.

Voltemos à Rita actual.  Entrou dia 21 de Fevereiro, e entrou direitinha para debaixo de uma cama onde, mercê de algumas malas que lá arrumo, encontrou verdadeiros "bunkers" de protecção para os medos que a assolavam.  Ainda por cima o Jonas, residente há doze anos não a hostilizando, marcou devidamente a sua supremacia no território que detinha.
A Rita passou a viver em permanente susto e fui obrigada a criar para ela, naquele quarto, um verdadeiro quartel general com todos os precisos, pois nunca me passou pela cabeça violentá-la a nada.
Comida, água e areia passaram a estar em permanência para sua exclusiva utilização.  Não era portanto necessário deslocar-se ao resto da casa por onde o Jonas circulava.
E este estado de coisas perdurou, perdurou sem fim à vista.
A Rita não saía, o Jonas não entrava, quando eu tentava tocá-la para uma carícia, um miminho, levava uma valente sopradela e a Rita procurava, debaixo da cama, um reduto ainda mais seguro do seu ponto de vista.

Encurtando razões, passou Março, passou Abril, Maio ... e por aí fora e o estado das coisas não se alterou.
Achei então que deveria finalmente forçar um pouco a situação.  Fechei o quarto e obriguei a Rita a circular pela casa, com ou sem Jonas.
E chegámos ao hoje.  
A Rita "desencantou", e ainda muito reticente, passados sete meses de espera e paciência minha, mais sopradela menos sopradela, circula livremente pela casa, dorme na caminha que lhe destinara, partilha a vida com o Jonas, aparentemente sem os temores de outros tempos.
Ele, nos seus doze anos não lhe admite grandes veleidades.  Olha-a sobranceiro achando-a por certo uma "teenager" inconsciente, às vezes persegue-a para uma brincadeira que ela não entende, até ela se enfiar debaixo da cama, outras vezes estão mesmo lado a lado, indiferentemente em total tolerância e pacífica coabitação.

E o mais importante ... brinca, brinca desvairadamente com toda a cangalhada que já não tinha serventia há anos e anos.
De dia, mas sobretudo pelas madrugadas, em "caçadas" infernais, aos ratos já desmembrados, joga à bola com as cinquenta mil que por aqui existiam, honrando as características da boa felina que é, a Rita pouco se importa se eu acordo ou se eu durmo, só que ... nem uma festa, nem um carinho... nada ainda me é permitido !...

Acho que terei que esperar mais sete meses... quem sabe !!...

Anamar

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