sábado, 12 de outubro de 2024

" DE QUE ADIANTA FINGIR ? "

 


Sou uma pessoa emocionalmente apegada às coisas.  Para mim, todas têm uma história, todas têm uma memória, um cheiro, uma palavra, um silêncio ... A minha casa é um repositório exaustivo de momentos, de cores, de lembranças.  Não é o valor material que encerram, mas é a súmula da significância a tudo a que a vida as foi ligando ... onde, porquê e com quê ou com quem, a minha vida as foi prendendo com pequeninos fios invisíveis de afecto.

À minha casa, com um ar depreciativo, já alguém chamou de "museu".  Reconheço que tenho objectos demais, porque não há efectivamente nada demais que eu não valorize.
Um seixo da praia, uma concha ou um búzio do outro lado do mundo, um guardanapo de papel de uma esplanada ou de um jantar especial, um galho seco colhido do arbusto de um caminho, já não falando em fotos largadas a esmo nas mais variadas molduras disseminadas pelas mesas e prateleiras, tudo são "tesourinhos", porque tudo foi e é Vida !
Chego a lembrar com absoluto realismo perante um determinado objecto, o momento, o cheiro, os sons, as palavras se as houve, com a exactidão de quem parecesse estar a vivê-los de novo.
Sou capaz de lembrar se o vento me desalinhava o cabelo, se o mar batia nos rochedos, se as gaivotas gritavam lá por cima, se era felicidade, mágoa ou dor, aquilo que experimentava então ...

Vivo há cinquenta anos na mesma casa.  Vim estreá-la após a construção e aqui fui ficando.
É um andar alto, o topo do edifício sem construções próximas, o que me permite o privilégio de uma amplitude de visão, do meu ponto de vista, absolutamente invejável.
O casario à volta fica distante e a disposição do prédio, nascente-poente, permite que eu veja nascer a lua e pôr o sol ...

O tempo que não se compadece, foi andando, e eu, andando com ele ...
A casa foi sendo a casa das quatro pessoas que constituíam a família, mas também tudo isso se alterou. Primeiro saíu uma para a sua nova vida de casada, depois saíu a outra que ansiava viver no seu espaço próprio, depois saíu o pai das duas porque nos divorciámos, e concluindo, fiquei eu.  Eu e o tal recheio do tal "museu" ...
Fiquei eu, mas bem acompanhada até hoje por dois gatos de cada vez ...
São, como costumo dizer, os meus companheiros de vida.
E depois, tenho o céu quase à altura da minha mão, tenho o que ainda consigo ver de Sintra, mais o que imagino da Serra que lá está na linha do horizonte, tenho o vento que quando sopra de borrasca me traz a chuva para os vidros da janelona mesmo aqui à minha frente ... e tenho o maior bem precioso deste meu varandim... os inenarráveis e ímpares pôres de sol no vermelho do poente com que se pinta !...
Ah, já me esquecia ... e tive uma ingrata gaivota que me rasava a janela e me trazia notícias das areias desertas e rendilhadas de espuma, quando o Inverno era traiçoeiro e por lá só havia silêncio ...
Foi à vida dela, como quase tudo na minha vida, foi também às suas vidas !!!...

O meu prédio acessa à rua por sete degraus.  Dificultam a vida a toda a gente.  
Vivem, respectivamente no primeiro e no sexto andar, duas crianças cuja locomoção se faz apenas por cadeira de rodas.  Têm-se feito démarches junto da Câmara para que a mesma possa pelo menos contribuir para a construção de uma rampa que permita a acessibilidade, já que o condomínio tem fracos recursos para o efeito.  Em vão !
Depois, a faixa etária dos condóminos poder-se-á dizer ser maioritariamente sénior...
Dito de outra forma, qualquer dia, ir à rua começará a não ser fácil.
A minha mãe faleceu com 97 anos, mas passou os últimos tempos de vida, quando também ela se deslocava em cadeira de rodas, em casa da neta onde aliás veio a falecer, e que vivendo numa vivenda, não tinha nenhuma limitação ao acesso à rua.
Essa casa fica na margem sul, eu vivo na margem norte.  A neta, sendo enfermeira, chamou a si generosamente, os cuidados com a avó, no fim da vida, levando-a pra sua casa.

Neste momento, volta a ser preocupação da minha filha, a minha permanência, só, nesta casa.
Hoje ela tem uma criança de sete anos que na altura não tinha, trabalha em dois hospitais, é também ela sozinha, sendo que o pai da menina trabalha fora do país intermitentemente, o que limita brutalmente a disponibilidade da minha filha, e a leva a dizer-me que temos que repensar a nossa situação.  Ela não poderá prestar-me a mim, obviamente, os cuidados que dedicou à avó !
E portanto ...


E portanto desenhou-se abruptamente frente a mim aquilo que todos queremos adiar "sine die", como escolhemos e como podemos preparar o fim da nossa estrada ...
Não que a questão no meu caso particular fosse premente, fosse para resolução rápida ( a minha idade e condição física não me anunciam por ora nenhum tipo de urgência ), só que mercê de outras questões práticas que não vêm ao caso aqui explanar, teria que ser no máximo dentro de um ano que eu deveria deixar esta casa e ficar a viver perto da minha filha, na margem sul, portanto ...


O impacto e o desgaste que tudo isto me tem provocado foi duma dimensão talvez absurda ... mas é a minha, é como eu sinto, como eu interiorizo as coisas.  E eu que já sou dada às angústias, às depressões, ao desânimo, a ver sempre o copo meio vazio, adoeci.  Neste momento é um anti-depressivo e um ansiolítico que vão comandando os meus dias, e já estive pior ...
É o fim que se anuncia, é a mágoa de uma vida de cinquenta anos nestas quatro paredes, rindo ou chorando, sofrendo ou sendo feliz, deixados para trás, são os objectos a escolher porque irei para um apartamento menor, é ir retomar a vida num lugar que nada me diz e onde não haverá um rosto familiar para dizer bom dia ... e depois ... sendo embora o mesmo, serão sempre outros pôres de sol que surgirão por detrás dos pinheiros !!!

Anamar

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