sexta-feira, 6 de abril de 2018

" A QUEDA DE UM GIGANTE "




Convivo com a morte da minha mãe há mais de três anos ...
Convivo de perto, demasiado perto, com uma partida que demora a fazer-se e se estende na infinitude do tempo
É um tempo de dor, de sofrimento, físico, psicológico ... uma dor que dói em todo o lado, no desespero de uma esperança arrastada, esfumada nos corredores tortuosos das existências.

A insensibilidade da degradação daquela que conhecemos, o desmoronamento indiferente e progressivo das suas últimas fronteiras de resistência, confrontaram-nos com patamares de dureza, revolta e inaceitação sem tamanho.
E sempre aquela mulher, tal como o foi em vida, disse não à capitulação, à desistência, ao baixar de braços, à perda de esperança.  Enquanto deu ...

Muito já falei sobre ela.  Tudo já falei sobre ela, de tal forma que neste momento em que espantosamente a minha mãe parece finalmente experimentar a aceitação da partida, eu não tenho mais palavras !
Neste momento, olho-a já no passado.  E algo que se olha à distância do passado, já não se exprime em palavras dos humanos.  Neste momento, da minha mãe, só sei ver, só sei pensar, só sei sentir ...
Ela vive no pretérito da minha memória.
Ela pertence à moldura que a enquadra, ao sorriso que nos acena da fotografia, ao som das palavras deixadas nos vídeos de festa.  Quando ainda nos festejávamos ao seu redor e lhe bebíamos o carinho, a dádiva e o amor ...

Neste momento, experimento um não sei quê que não explico.  Experimento a paz de também a sentir em paz, e partida para outra dimensão.
Neste momento, povoo-me de silêncios, para que as palavras não maculem esta singular provação.
Para que o rito da passagem se torne único, particular, nosso, no recolhimento da devastação que temos em nós.
Olho-a longamente. Olho um corpo esquálido recolhido no calor do ninho, como se também ele retomasse a posição fetal que um dia o protegeu no útero da sua mãe.
Olho aquela esfinge abandonada, cerrada no que resta de si própria.  Inerte.  Sem vida.
E porque acredito que entre mãe e filha, a comunicação transcenderá sempre a dimensão limitativa do Homem, porque acredito que ela perdura muito além, pelas veias onde escorre sangue igual ... e porque acredito que mesmo com os olhos cerrados ela me vê ... mesmo com os braços inertes, ela me abraça ... mesmo no silêncio das palavras, o nosso imortal diálogo sempre se fará ... falo-lhe, tranquilizo-a, dou-lhe a mão como quem guia uma criança medrosa, no atravessar de um túnel escuro.
E peço-lhe que parta em paz, que vá sem medo, que ascenda às estrelas donde se divisa o mundo ...
E que vá sem mágoa pelos que cá ficam ... porque tudo não passa de um interregno.  Na eternidade, todos os que foram tudo,  se encontrarão, e aí haverá uma festa de amor, seguramente  !

Um gigante está prestes a cair ... procurarei sempre honrar-lhe a memória !...

Anamar

quarta-feira, 4 de abril de 2018

" CONVICÇÃO "





Enquanto virmos a mesma lua, nunca estaremos tão longe assim ...

Tenho para mim que as vidas se fazem e desfazem, sem na verdade se desfazer aquilo que as povoou, as construíu, as coloriu e as preencheu.
O tempo avança, escoa-se, dobra esquinas, vence horizontes.  Os caminhos da serra permanecem intocados, os córregos que se escondiam entremeio às amoras bravas, persistem.  O gorgolejar das águas escorrentes por entre a penedia, ecoa na mata e o vento que esvoaça para cá e para lá, irá esvoaçar para cá e para lá ao sabor das memórias.
Os sítios são os sítios, para sempre.  E "sempre" é muito tempo ... muito mais do que um Homem vive !
E aquilo que se viver em vida, transformar-se-á em eco, na eternidade !
E a eternidade, essa sim, não tem medidas nem tamanho. Essa sim, tem a medida do "sempre" !

As pessoas encontram-se, cruzam-se, interpenetram as vidas e afastam-se muitas vezes.
As pessoas desfolham sonhos, desenham estórias, pintam esperanças ... As pessoas acreditam ...
E depois, as pessoas perdem-se por aí.  As palavras já não galgam as montanhas.  Os sons já não viajam nas nuvens.  As emoções já não trepam a copa das árvores.
As lágrimas transformam-se em rio de caudal incontrolável.
A linguagem encalha nos escolhos da maré.  E parece não ter mais sentido.
As pessoas que foram muito, que foram quase tudo, desconhecem-se.  E injustamente já não sabem ler no livro do amanhã !

Assim são as vidas de quase todos, acredito.
Mas  porque as vidas se fazem e desfazem, sem  na  verdade se desfazer aquilo que  lhes  pertenceu, também acredito que enquanto virmos a mesma lua no firmamento de breu,  estejamos onde estivermos, nunca estaremos tão longe assim !...

Anamar

quarta-feira, 28 de março de 2018

" REFLECTINDO"



Aqui estou, frente a este casario inexpressivo, frente a este céu só limitado pelas barreiras que os humanos lhe construíram, frente a esta lonjura até onde a minha mente voa.
Aqui estou, como tantas vezes estou, na busca da paz do silêncio.
Já que este meu poiso é o galho de árvore donde o pássaro voeja rumo ao infinito, é o silêncio da falésia inacessível ao Homem, é a mansidão do encontro primordial de mim comigo própria ... sempre o busco, como catarse, como paragem, como local de despojamento e reflexão honesta, procurando despir-me de emoções, de pressões, de condicionalismos, na busca da verdade e da transparência nas minhas reflexões,  na busca de respostas, vezes sem conta, para as minhas angústias, olhando a minha verdade de frente, duma forma isenta, despida e corajosa ...
Sempre o busco na procura da pessoa que eu sou ...

Lá fora está cinzento.  As anunciadas nuvens vão pejando o firmamento.  Afinal é Semana Santa ... seria de bom tom !

Sou humana e os humanos cometem demasiados erros, tentanto quase sempre acertar.
Mas sempre busco, com severidade, explicações para as minhas atitudes e escolhas, sem justificações esfrangalhadas ou panaceias protectoras e tolerantes.
Desde sempre me habituei a reflectir, a analisar, a guerrear-me, se for o caso.  Costumo mesmo ser menos tolerante comigo, do que com os que me rodeiam.  Costumo, sem artifícios ou maquilhagens pôr a nu os meus erros, fragilidades, e incapacidades.  E faço-o sem piedade, com a espada afiada do justiceiro que busca repor o certo.
Não passo a mão na minha cabeça, nem desculpabilizo e aquieto o coração para dormir melhor ...

Talvez porque a vida já me maltratou largamente, não tenho dificuldade em perceber o outro, em ouvir o outro, em tentar entender a sua justificação ou posicionamento.
E se reconhecer que errei, que maltratei, que injusticei, que não fui correcta, que não assumi a minha inerente responsabilidade ... não tenho dificuldade em, duma forma desarmada, me retratar, me explicar, pedir desculpa, assacando a culpa para mim própria.
Considero que uma retratatação, uma explicação transparente e sincera, sem álibis ou truques, terá tudo para ser entendida, aceite e eventualmente perdoada por boa fé.

Daí que, sendo eu assim comigo mesma  no relacionamento diário com os outros, não há coisa que mais me destrua, amachuque e mortalmente magoe, que, por um lado a intransigência e indisponibilidade do outro face à tentativa de clarificação de uma atitude minha.
Por outro, o balizar-se no reduto defensivo e cómodo da sua trincheira cerrada e intolerante à realidade. Trincheira de ideias feitas, convicções absolutas, verdades insofismáveis !...
Por outro ainda, o circunscrever-se a um posicionamento autista de posse da razão ... uma espécie de cómoda vitimização, de quem teria sido intencionalmente injustiçado e preterido.
Mas no corolário de tudo isto, o que não suporto mesmo e com que convivo muito mal, é a tentativa frequente do outro em desvirtuar os factos, alterar a objectividade dos mesmos, acreditar numa outra verdade que o conforte e lhe permita conviver com ela, pacificando-o e ilibando-o  quantas vezes, da maior fatia de responsabilidade sobre eles.

Essa postura injusta, triste, ofensiva mesmo, já que mexe com a idoneidade de cada um, com a sua sinceridade, boa fé e até mesmo honestidade, deixa-me louca por impotência, por exaustão, por incapacidade de conseguir que me entendam, que me vejam com os olhos da alma, despindo-me até ela, mergulhando até ao âmago de mim mesma, trocando-me o avesso pelo direito p'ra que alcancem o profundo do meu coração, a verdade das minhas palavras, o teor das minhas intenções !...

Mas eu sou humana.  E o ser humano comete demasiados erros ...
Um deles, talvez seja simplesmente continuar a acreditar e a sonhar que ele ainda vale a pena !...

Anamar

terça-feira, 20 de março de 2018

" AS MARGARIDAS SELVAGENS "





Elas já romperam por aí ...
Adivinho-as no alto das falésias, com este sol de Primavera com pressa de chegar, tímidas, humildes, singelas.
São elas, as margaridas não semeadas.  As que assomam quando Março adentra, quando Abril acena com as suas "águas mil"...

Não passeio faz tempo, no alto das ravinas, com o vento a despentear-me, com este azul meio sim meio não, pontilhado por farrapos brancos que se esqueceram de partir.  Com o mar lá em baixo em aguarela de azul e verde, e com as gaivotas vagueando no preguiçamento do costume ...
Vou pouco para além.
Tenho memória de as ver.  A elas, e às flores amarelas sem nome, no meio de outras mais ... mas isso parece fazer parte de uma vida que nem é já bem minha ...

As nossas existências são fatiadas em períodos, em épocas, em realidades.  Cada período, cada época, cada realidade pintou-se com as suas particulares cores.  Encheu-se dos seus particulares sons, palavras e acordes musicais.  Decorou-se com as suas especiais vivências, emoções e sentimentos.

Assim, quando lembramos a meninice, logo somos assaltados por este ou aquele pensamento, este ou aquele rosto, este ou aquele momento ...
Quando avançamos no tempo, a adolescência traz-nos outros sentires e outras emoções diversas.
A idade adulta, da mesma forma, faz-nos atravessar realidades qualitativamente diferentes, caracterizadas e povoadas por personagens diferentes também.
E cada espaço temporal por nós vivenciado nos acende mais e mais memórias, nos firma mais e mais apontamentos, todos pintalgados por aquela risada especial, adoçados por aquela ternura perpassante, sofridos por aquela mágoa que desceu, assaltados por aquele desencanto que nos tomou ...
Por isso não é à toa que neste puzzle da existência, esta peça só encaixa aqui, aquela outra, ali ...
E não é à toa que indelevelmente o colorido deste matiz, é pertença deste momento e jamais de outro.  O sol que brilhou naquele dia, jamais teve o mesmo brilho em mais nenhum outro.  As palavras trocadas então, pertencem só e exclusivamente àquele contexto e são irrepetíveis em mais nenhum outro !...

Por isso, o tempo das margaridas selvagens todos os anos chega, quando Março adentra e quando Abril acena com as suas "águas mil" ... Mas não é a mesma coisa ... ainda que eu possa vaguear por além, ainda que eu possa passear no alto das ravinas, com o cabelo em desalinho e com as gaivotas volteando no espreguiçamento do costume ...

As fatias do tempo vão-se cumprindo.  As folhas do livro vão-se desfolhando.  As nossas existências vão-se consumindo ...

Anamar

domingo, 4 de março de 2018

" O LUSCO-FUSCO "


Está uma tarde desanimadora.  Está um tempo de despedir esperançosos.  Afinal, até parecia, mas não, a Primavera não está nem ao virar da esquina !

Ocorreu-me ... tem-me ocorrido, que precisava falar com a minha mãe.  Falar de coisas triviais, coisas com pouca / muita importância ... como por exemplo a chuva que tem caído, o mar que se alçou e levou tudo adiante ...
Ouvi-la falar das imagens da guerra na televisão ... e vê-la condoer-se até à alma, pelas mulheres, pelas crianças ...
Relatar-me as últimas do seu Sporting ... sem arredar pé, como uma leoa que se preza !
Ocorreu-me referir-lhe que me deve lembrar como se faz aquela sopinha boa de feijão com mogango, ou a sericaia de fim de almoço.  Afinal, se não aprendi, já não aprendo ...
Ou mesmo pedir-lhe que me recorde que bolos tínhamos nós, na mesa, na Páscoa que se avizinha, lá no Alentejo de casa de avós em mesa farta ...
Coisas tão simples.  Simples e triviais, que recheavam as nossas conversas quotidianas !

Parece que deixámos de conversar só ontem ... mas hoje, já não a acho.
Que estranho que é,  ter ali sentada à minha frente, uma moribunda formal.  E a outra, aquela com quem deixei tantas coisas p'ra falar, desrespeitosamente já não comparece mais ao encontro...
E no entanto ainda ali está.  Está e não está !

E fica aquela sensação esquisita de uma saudade inacabada, uma incompreensão sem remédio ! Uma sensação de tempo que não se agarrou e já  não se agarra ... num desperdício e distracção absurdos ...

Apetece-me abaná-la.   Chocalhar-lhe aqueles miolos imprestáveis que já só estão.  Nada mais !
Apetece-me ... em vão !  É uma parede intransponível, sem brechas, que tenho à minha frente ...

E fica  aquele sentido mal explicado de impotência e injustiça !  Que raios, havia tanta coisa em pauta para nos dizermos !...
E agora ?  Agora faço como ?

E dou por mim a experimentar uma saudade amarga, quando entendo ... Porque quando pareço não querer entender, acho que ela está lá no sofá, ao cair das tardes ...  eu estou lá, a caminho das aulas, depois de um último beijo e de um último adeus, antes de contornar a esquina  a tempo ainda de a ouvir descer a persiana ... e amanhã é outro dia certo, de vida, em que eu e ela estamos lá ... e havemos de estar, porque eu tenho infinitas coisas para aprender com ela, porque ela sempre foi alguém que nunca me desfeiteou nem falhou.  E por isso, tem que continuar por ali !...

Como podemos ter saudade já, de quem ainda não partiu ?
Como podemos encaixar no nosso coração e na nossa alma, pacificamente, uma inexplicação sem limite, sem tamanho, numa aberração monstruosa ?!

E uma revolta incomensurável, mina-me até às entranhas .  Nunca vou entender nada disto.  Nunca vou aceitar tamanha pirraça do destino...
Ela, que quando era gente, sempre se esperançou que a existência  haveria de ter um respeito misericordioso pela pessoa que sempre foi !!!...

Anamar

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

" SONHAR AINDA É POSSÍVEL ?... "



Na passada quarta-feira, dia 14, viveu-se mais um dia de hipocrisia social, criado pela exploração da hipocrisia comercial.

Já escrevi várias vezes sobre o dia de S.Valentim, dos namorados e quejandos, importação trazida de outras latitudes, aliás como outras semelhantes que me irritam e arrepiam ... a do Halloween, por exemplo.
Importada, assimilada, encaixada.
Nada de novo que não conheçamos, peritos que somos nas importações fáceis, sem critério e sem demais juízos de valor, de quase tudo o que nada tem a ver connosco, nossas raízes e cultura
.
E aí temos nós, jovens e menos jovens, milagrosamente derretidos como picolé em dia de calorina !
O comércio acena-nos com o êxtase da felicidade afectiva, ao alcance de uma comprazinha ainda que por vezes à última hora, de uma rosinha vermelha, de um qualquer presentinho inevitavelmente decorado com os corações "ensarampados"  (que estampam toda a profusão de cartões e cartõezinhos para qualquer  gosto ),  da caixa de chocolates em coração, do peluche com coração, da caneca com corações ... enfim ...

Cumprido qualquer um desses desideratos, tranquilizam-se os espíritos, porque o alvo a atingir perceberá como o amor é tão importante para nós !...
Os cartões até já trazem as dedicatórias escritas, o que simplifica a coisa ...

Depois ... bom, depois, temos 364 dias para recarregar baterias e  tomar fôlego para a próxima jornada valentinesca ...
As rosas entretanto secam ao ritmo do esquecimento das juras de amor seladas.  Os bombons comem-se e recheiam-nos com mais umas quantas indesejáveis calorias. O resto, repousa por uns tempos nas prateleiras ou desce directo às gavetas.
O amor ... o amor de valer a pena ... o amor espécie em vias de extinção ... esse, o amor a vivenciar, a adubar, a regar ... a valorizar  em suma, confina-se muitas vezes a um processo de intenções, e pouco mais.
Cada vez mais os sentimentos são plastificados, descartáveis, inconsistentes ... recicláveis.  Troca-se de amor com a facilidade com que se troca de projectos, de sonhos, de opiniões.
Estamos no tempo da volatilidade de sentimentos e emoções.  Estamos no tempo da desaposta, às vezes por bem pouco.  Estamos no tempo da desvalorização dos reais valores, em benefício de uma liquidez escorregadia, ajustável, cómoda, de relações de fácil consumo e afectos precários ...
Estamos na época em que parece não haver vagar para partilhar, dividir, saborear a beleza de um pôr de sol a dois, escutar os sons da terra a dois, ouvir o mar ... perdidamente ... dançar um "slow" na cumplicidade dos corpos colados, das mãos entrelaçadas, dos olhos enternecidos ...
Até porque penso que também já parece não haver "slows" ... desgraçadamente !

Bom, este meu texto foi meramente uma sinalização da data.
Nada traz de novo.  Constata, não questiona, não discute.
São meras convicções minhas.  Já as expus em anos anteriores.  A idade só mas reforça e alicerça.  Não mais !
É o que vejo e analiso à minha volta.

Gostaria de auspiciar futuros diferentes para as gerações que aí temos.
Gostaria de poder acreditar que as vidas teriam outros rumos, mais consistentes e de sorrisos simples.
Gostaria !...

O sonho ainda não nos está vedado ... não é ???...

Anamar

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

" DAQUI A POUCO ... "






O Carnaval foi-se.  Daqui a pouco é Quaresma, depois Páscoa, depois é o tempo das cerejas, as mimosas irão florir pelas matas ... Mais um saltinho, e é Verão.  Os dias hão-de azular, o sol amarelecer de ouro tudo em que bater, havemos de suspirar por sombras, por frescura de serra, por água fresca de mar preguiçoso ...
Depois a canícula cederá,  a fruta amadurece e os vermelhos e ocres se instalarão.  As primeiras folhas começarão a tombar, a Natureza a encasular-se pronta a dormir, o recolhimento e o silêncio descem da Terra aos corações ...
As aves começam a partir, o cinza e as névoas envolverão os amanheceres, e as luas irão esconder-se atrás dos castelos de nuvens.  As estrelas dormirão em céus escuros, como manta a cobrir os desvalidos ...
Daqui a pouco a neve branqueia os píncaros, os lobos uivam na montanha ... daqui a pouco os azevinhos cobrem-se de bagas vermelhas, e o calendário dirá que é de novo Natal ...
Daqui a pouco, o ano vira.  Dá mais uma cambalhota na eternidade ... e dá lugar a outro ...
E tudo é já daqui a pouco ...
Hoje, é só mais uma gota das existências, a ser vivida ...

Hoje, o dia "enxofrou".  Tem um ar sonolento, displicente e preguiçoso.
Convida à reflexão, sobretudo se estamos sós, com boa música, e muita, muita paz ...
Inevitavelmente lembro o que tenho, do que disponho, o que quero ainda, nesta ampulheta incessante, incansável e obstinada.
E hoje, eu só quero uma coisa: como diz Fernanda Montenegro, hoje eu só quero que a minha memória nunca me atraiçoe, que nunca me retire o caminho de acesso ao baú onde o espólio da minha vida aguarda -  empoeirado já - que eu o revisite, vezes sem conta, com o enamoramento e a gratidão de quem se sente abençoada com a estrada percorrida.
Porque ainda assim, eu sei que da próxima vez, eu faria diferente ...

Da próxima vez, aprenderia a dar às coisas, a importância real que elas têm, sem o drama de sempre as ver a preto e branco ...
Da próxima vez, carregaria no rosto a alegria do riso, ou mesmo só do sorriso. E guardaria as lágrimas só para os dias de tempestade ...
Reuniria todos quantos me fossem importantes, à roda de uma mesa, no aconchego duma lareira ... quando calhasse ... sem me preocupar que amanhã fosse segunda-feira ... ou que a loiça guardada para ocasiões especiais, se poderia partir ... Simplesmente porque essa, seria a ocasião especial ...
Da próxima vez aceitaria chorar, se fosse o caso, de alma despida, no colo dos que amo e me amam ... na certeza do privilégio do amor e da amizade ... 
Faria mais disparates,  e erraria mais, porque errando saberia que se aprende ...
Carregaria sempre comigo um saco inalienável  de sonhos, sem medo dos excessos ou da transgressão do peso...
Seria mais atrevida e ousada, porque esfolar os joelhos pode fazer saudavelmente bem à alma ...
Deitaria na erva, rebolaria nas dunas, saltaria as ondas ... porque tudo isso seria VIVER !...
Andaria descalça, de cabelo ao vento ... dançaria na chuva ... e gargalharia de felicidade ...
Se pudesse fazer tudo outra vez, sorveria o instante, cada instante, embriagar-me-ia nos momentos, solta ... livre ... leve ...
Porque a vida é apenas isso ... instantes indeléveis, momentos abençoados ...
Se pudesse fazer tudo de novo, não cansaria de dizer "obrigada".  Não cansaria de repetir "eu te amo".  Não cansaria de pedir "desculpa" ...
Estenderia as mãos mais vezes,  ofereceria o ombro outras tantas, partilharia  sempre  um colo  grande, generoso e cego ...

... e apanharia muitos, muitos ramos de narcisos !...

Anamar