sábado, 2 de agosto de 2008

"VIAJANTE DO DESTINO..."









O meu pai teria sido cremado.
Por opção, por vontade expressa...tenho a certeza.

Ao tempo que ele morreu pouco ou nada se ouvia falar de cremações. Teria hoje cento e seis anos, se vivesse. Mas o meu pai sempre foi pragmático, racional, despojado.
Estranhamente nunca vos falei muito dele. Aliás, a figura do meu pai é um pouco uma figura "nublada" e controversa na minha vida.

Quando eu nasci, filha que fui de um segundo casamento seu, o meu pai tinha mais idade para ser meu avô, do que meu pai. E como avô (posso dizer), me tratou toda a vida.
O mesmo desvelo, a mesma ternura, a preocupação exaltada com tudo o que me dizia respeito, a ausência de ralhetes, a contemporização com os pequenos "desvios" infanto-juvenis, a necessidade de me "paparicar" e proteger, com toda aquela carga de "pai com açúcar", típica dos avós.

O meu pai era viajante de uma firma comercial...e viajante, naquela época, significava sair de casa a uma segunda-feira e poder regressar quinze dias depois.
Viajava de comboio, de camioneta, às vezes de táxi e em tempos mais idos, sempre ouvi dizer, que de burro e carruagem. Não esqueçam que o meu pai nasceu em 1902.
Sempre vivi entregue aos cuidados da minha mãe, quase exclusivamente, dada a sua longa e sistemática ausência.

Era o filho mais velho de cinco irmãos, oriundo de uma família muito pobre do Baixo Alentejo. Terá feito a instrução primária (juro que não sei se a completou) e foi compelido a enveredar no mundo do trabalho porque tinha quase uma família para sustentar. O meu avô "delegou" muito cedo esse encargo no primogénito. Aos sete anos, já trabalhava como moço de recados ou marçano, para um patrão que lhe pagava com uma "bucha" e pouco mais.
Era uma época muito difícil, de conturbações sociais e políticas. O Alentejo, sofria de grande e profunda miséria...
Era o tempo em que nos Invernos rigorosos de frio e chuva, porque as terras não podiam ser trabalhadas, a fome grassava.
Havia "ranchos de homens sem trabalho, em desespero, a pedir esmola pelas ruas"...contava-me.
"As terras estavam encharcadas, porque chovia dia e noite, meses seguidos...não se podia lá entrar" e nem a açorda de pão dormido com coentros, alimentava os filhos em casa, porque era preciso que houvesse azeite na almotolia...e os lavradores, senhores das terras, nem sempre se compadeciam com uns decilitros...

Casou, teve um filho e enviuvou, tudo no espaço de quatro anos.
"Pôs casa" às três irmãs quando casaram. Quer isto dizer que providenciou, em substituição do pai, para que no "enxoval" de cada uma, houvesse o que "pertencia à mulher, levar no casamento"... (tudo tão estranho para nós nos tempos actuais!...)
Teve que entregar o filho a familiares, para que o criassem, visto os pais entretanto terem falecido.
Assistiu, impotente, à progressão de uma doença irreversível nesse filho, ao atingir a puberdade.
Envidou em vão, todos os esforços possíveis e impossíveis que o avanço da medicina lhe facultava, para poder curá-lo.

"Perdeu" muitos anos sem horizontes, senão os do sofrimento, da dificuldade, da amargura, do trabalho...e tornou-se pai-avô e voltou aos desvelos, à ternura esquecida, aos sacrifícios, às preocupações redobradas, quando eu surgi na sua vida... vida já então muito gasta, muito cansada, talvez já um pouco desencantada...

Reaprendeu (ou aprendeu) a mimar, a cobrir-me bem quentinha com os cobertores no Inverno, a dar-me conselhos de agasalho (não fosse eu apanhar gripe), a não dormir sem que me desse um beijo de boas-noites, a "entupir-me" de chocolatinhos nos Natais, de amêndoas de licor nas Páscoas e de "esquimós" da pastelaria Suiça...
Aprendeu a surpreender-me com duas ou três bonecas, uma delas em porcelana, com mola na barriga p'ra chorar (a Lolinha, resistente até hoje e que décadas e décadas mais tarde, "baixou" ao Hospital das Bonecas, na Praça da Figueira, onde ganhou uma cabeleira e roupas novas)

Recordo o meu pai como uma figura de poucas falas, alguém que não exteriorizava fácil os sentimentos, alguém hermético, aparentemente distante, objectivo, racional, pragmático...
Podia vergar...nunca o vi quebrar!
Era tenaz, lutador, resistente...uma fortaleza!...
Esquecia a data do próprio aniversário e não a valorizava. Acontecia com naturalidade, passar esse dia só, se por acaso estava a trabalhar longe de casa.
Natais e Páscoas..."invenções do Homem que sempre pretendia transformar dias iguais em dias diferentes"...
Não pôs luto pelos pais nem pela mulher, uma postura quase provocatória numa época e numa sociedade fechada, moralista e atávica. Para ele, isso era hipocrisia que não fazia qualquer sentido.
"Enterrar os mortos e tratar dos vivos", uma máxima para momentos de dificuldade...
Parafraseava o Marquês de Pombal, homem prático e clarividente, ao tempo do terramoto...

E assim passou pela vida, o meu pai.

Morreu com noventa anos, dizendo-me que se algum dia o ouvisse pedir um padre, não acreditasse.
Dias antes de morrer (da sua cama articulada onde agonizou dois anos, com uma cabeça a funcionar e um corpo que o traíu), dizia-me, pragmaticamente, com uma noção da inevitabilidade absolutamente clara : "Isto está por pouco...Quero morrer nesta cama...a roupa, está nesse armário..."
E às minhas lágrimas incontidas e teimosas disse : "Não chores, meu amor...a vida é assim mesmo!..."
Passou então a mão descarnada e trémula pelo meu rosto molhado e tentou recordar como era dar-me um último afago...

E foi...

E deixou-me na maior "orfandade" do mundo!...
O meu pai levou até hoje, consigo, um pedaço de mim que nunca mais consegui encontrar por aí...

Acompanhei-o, de acordo com a sua vontade, até ao "jardim das memórias"...onde já não está há muito, tenho a certeza, porque o meu pai era viajante...e não era de parar muito tempo num mesmo lugar...

Teria sido cremado (hoje estou convicta)...

E se o tivesse sido, as suas cinzas viajando no vento, seriam o maior hino de homenagem ao espírito de um homem livre, independente, aventureiro, solto...um viageiro sonhador do destino...


"O meu pai foi de Lisboa...
foi do Tejo e das colinas,
foi do pregão que amanhece,
que ecoa e engrandece pela boca das varinas...
Foi da Praça da Figueira, do Rossio, Restauradores,
da Suiça à Brasileira...
foi daquela vendedeira que ainda hoje vende flores!
Em cada pedra de rua, em cada esquina de praça,
em cada nesga de céu ou neste sol que abraça
a cidade de Lisboa,
eu o vejo, ele perpassa naquele pombo que voa...
por essa cidade fora...
a cidade de Lisboa!...
Já cá não está...mas está!
Eu sinto-o aqui e agora...
E a cidade que ele amou, vestiu de luto e chorou...
quando ele se foi embora!...


Homenagem póstuma (aquando da data de aniversário 95-06-05 )


(O meu pai fez no passado dia 30 de Julho dezasseis anos que faleceu...Este, hoje, o meu beijo para ele...)





Anamar

2 comentários:

Helena Fonseca disse...

Olá Anamar
Depois de ler o que escreves fica-me a vontade de comentar...no entanto a tarefa apresenta-se-me quase impossível: o que dizer, como fazê-lo, de modo que a minha contribuição não envergonhe a nobreza de sentimentos, a escrita solta mas em simultâneo carregada emocionalmente de afectos de carinhos… de muito amor. Corro o risco de não saber transmitir toda a amálgama de sentimentos, de pensamentos que fizeste acordar em mim...é difícil mesmo. Só digo, alto e bom som, essa cumplicidade, esses sentimentos partilhados, esses afectos…foste uma privilegiada.
O vulgar, décadas atrás, era a frieza de relações, o não demonstrar sentimentos…sabemos que eles estão lá mas….era assim…e fazem-nos tanta falta… é o equivalente ao pão para a boca, alimento do corpo, os afectos são isso mesmo alimentos para a nossa alma para o nosso “crescimento”. É o que fica o que recordamos quando ficamos sem a sua fonte…
Obrigada

beij

anamar disse...

Olá Lena
Obrigada pelas tuas palavras tão carinhosas quanto sinceras.
O que escrevi nada tem de extraordinário...é uma mera e tão próxima quanto possível recordação da pessoa que ao partir, me deu o maior desgosto que já vivenciei na minha vida até hoje.
Procurei apenas traduzir fielmente quem ele foi e o que me representou na vida...
Um beijão muito grande
Anamar