sábado, 31 de janeiro de 2009

"ATÉ QUANDO??..."

Há que tempos que por aqui me não perdia...
Pasmo mesmo como foi possível passar tanto tempo sem escrever!
O facto, é que me ando a sentir "amorfa" por dentro, amorfa de sentimentos, demasiado "flat" para o que gosto de me encontrar, cinzenta como o tempo, como as gentes, como o País.

Depois, também dei em achar perfeitamente irrelevante tudo o que debito. De facto, aquilo que normalmente me traz às letras, são sentires, convulsões emocionais, estados de alma, bons ou maus...E coisas irrelevantes, penso, não têm muito "espaço" no atropelo de vida que tentamos viver diariamente.

Profissionalmente, aliás como socialmente também, tudo corre descolorido, ou melhor, num adensamento de cores escuras, "penumbrentas", fantasmagóricas, tenebrosas...diria.

As pessoas que me cruzam na rua, trazem rostos carregados, pré-diluvianos ou pós-funerários, como queiram.
Não vejo expressões leves, não vejo nada que não traduza "carga", preocupação, cansaço, desânimo...se calhar, desespero.
As perspectivas são tão cinzentas, quanto este tempo de quase Quaresma;
O cinzentão do céu e a chuva impiedosa de um Inverno "à séria", como já não víamos há anos, estendem-se como tentáculos de um polvo gigante, até à alma dos felizes ou infelizes mortais, estendem-se até ao âmago, apertando gargantas, sufocando a esperança, imobilizando as vontades, entorpecendo espíritos, adormecendo a alegria.

Lisboa recepcionou-me hoje assim, exactamente assim, com uma abóbada plúmbea, desde o Castelo até à Baixa, com transeuntes apressados e chapéus de chuva ensarilhados, com folhas mortas tombadas no chão encharcado e árvores despidas e esquálidas bamboleando ao sabor da aragem desabrida.
Lisboa estava triste, ou talvez fosse eu que o estava...

Não há telejornal que não mostre um Mundo a desabar, não há jornal que não prenuncie ou fale de desgraças (as maiores e mais absurdas desgraças), não há notícias que não espalhem preocupação, que não alertem para futuros exponencialmente incertos, que não espelhem reacções de desespero de seres acossados.

De repente, parece que neste planeta, o Homem está refém, refém de uma maldição adivinhada; parece que neste planeta já não existem dez centímetros de terra, onde se possa respirar, onde se possa ter fé, ter paz...onde se possa ter gosto por viver!

O ser humano parece ter baixado os braços; sente-se o cansaço, o "dar de ombros", a desmotivação, a falta de peito para a luta, o conformismo, simplesmente porque o acreditar está de rastos.

Começa a ser indiferente que determinados valores primordiais estejam a tornar-se inexistentes, começa a ser irrelevante que objectivos, sonhos, metas e comportamentos que norteavam o ser humano, estejam desvalorizados, postos em causa...
Começam a ficar-nos "invisíveis" sofrimentos, dores, atrocidades, aberrações, como se estivessem a anos-luz de nós...talvez por defesa, talvez por "carapaça"...

Isto é sintomático, penso.

Esta quase "tolerância", por falta de força, é uma doença civilizacional crónica que se instalou; esta conivência irracional e irresponsável que já vamos manifestando, é um vírus que corrói lenta e subtilmente até à morte, esta letargia de alma e coração que nos "despe" de humanidade, é um cancro irreversível que nos atordoa, nos tolhe, que nos amputa e nos aniquila.

Até quando??...

A minha e única gaivota destas paragens, anda-me por aqui frente à janela, recortando-se no infinito cinzento de borrasca, aproveitando os altos e baixos da aragem que corre, planando, de asas esticadas...

Não sei porquê...apeteceu-me ouvir imperiosamente "Edelweiss" da "minha" "Música no coração" de criança...



Anamar

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Anamar:
Aqui é o Fernando, mais conhecido como o Sequeira.
Estive muito tempo ausente.Sem desculpas, mas acredita muito trabalho.
Está um temporal enorme lá fora.Fui ao quintal buscar lenha e levei com vento, água e lembrei-me de ti.
Fui descobrir um texto antigo, dum amigo meu, que gosto muito.
Gosto de alguma maneira porque todos somos imperfeitos.
Mas nesta noite de temporal, não quero deixar de te oferecer esta pérola.


a fotografia

- Zézinho, queres vir para casa da tia? Era quanto bastava para eu saltar e pular como se de súbito tivesse ensandecido, gritando que sim, que sim, sorriso rasgado de orelha a orelha, pois ir para casa da tia significava passar alguns dias em Lisboa, na casa da tia na estrada de Benfica e ir com o padrinho, fotógrafo de profissão, que era também tio pois era marido da tia, mas que todos preferíamos tratar por padrinho, para a casa de fotografia que ele tinha na mesma rua, mesmo em frente ao já demolido Palácio dos Sanches Baiena ou de Benfica.

A casa de fotografia ficava num primeiro andar por cima de uma taberna escura de tecto muito baixo, e era conhecida como “Fotografia Nice”, mas todos na família a tratavam carinhosamente apenas por a “Fotografia do Padrinho”. Ir com o padrinho para a Fotografia era penetrar num universo maravilhoso de sonho, fantasia e mistério. Era como entrar num sótão velho, cheio de coisas para descobrir, de luzes e cortinas pretas, como um teatro permanentemente montado, aguardando as pancadas de Moliére para a entrada dos actores e começo do espectáculo. A sensação de entrar num sótão era aumentada pelo acesso, feito por uma escada velha e íngreme de degraus de madeira, dramaticamente gastos e que rangiam a cada passo dando um ambiente fantasmagórico à subida. Entrava-se por uma porta com uma mola de correr que engenhosamente fazia soar uma campainha: trimmmm...

Lá dentro, respirava-se o passado. Armários antigos e gavetas que guardavam sabe-se lá o quê. Talvez memórias de quando aquela casa era o local de habitação do padrinho e da família no tempo em que se racionavam os géneros alimentícios. Mas eu tentava saber o que continham tudo o que fosse gaveta ou caixa e abria todas as que podia, atraído por uma curiosidade incontrolável. Era com um misto de prazer e fruto proibido que abria as pequenas caixas de cartão colocadas às dezenas, disciplinadamente, numa prateleira e de cujo interior extraía velhas chapas de vidro, que guardavam antigos rostos em negativo para os quais eu olhava em contra-luz procurando ver o verdadeiro rosto daquelas pessoas, que eu não conhecia mas que ali via aprisionadas para a eternidade, tal como tinham estado naquele dia, naquele instante, agora tornado passado.

A prensa era um brinquedo fantástico pois marcava, com cunhos, as folhas de papel que lá metia. E esmagava sem piedade as molas da roupa, em madeira, que serviam para pendurar as fotografias a secar. Era um gozo imenso rodar aquelas duas grandes bolas metálicas do braço da prensa e senti-la esmagar, num gemido surdo, os pequenos pedaços de madeira. Havia também aparelhos estranhos de funções desconhecidas, projectores de luz, tripés e uma fabulosa máquina de estúdio, em madeira, com um grande fole negro e um pano preto na retaguarda. Máquina que, como o padrinho me mostrou, punha as pessoas de cabeça para baixo. Juro! Juro...! Caixas de luz onde, a um toque num pequeno interruptor, se acendia no centro um rectângulo de luz, no qual, a pincel e tinta da china, negra como carvão, com mão de artista e toque de génio, o padrinho retocava os negativos, para obter fotografias perfeitas. E obtinha! Mas o melhor de tudo era quando o padrinho me levava para a câmara escura. Era como se eu fosse também um actor naquele espectáculo, com o privilégio de conhecer, não só o palco, mas também os bastidores e o segredo dos cenários.

A velha cozinha transformada, de um lado a bancada com o ampliador e do outro uma enorme bacia de pedra com um ralo no centro e com a água sempre a correr e as tinas dos banhos. Entravamos. A pesada e espessa porta fechava-se. O padrinho apagava a branca luz do tecto. Era a obscuridade absoluta. A sensação de estar envolvido numa qualquer aventura, numa conspiração era verdadeiramente fabulosa, única. Sentia que ia ser iniciado pelos deuses num mistério, o qual me ia ser revelado. Na escuridão ouvia a respiração do padrinho, sentia a sua presença e procurava adivinhar-lhe os gestos. Gestos de quem conhecia bem o espaço que trilhava e se movia no escuro como se a luz estivesse acesa. Então acendia-se a luz vermelha, veladíssima, a única permitida, e só de vez em quando, por curtos períodos, pelo material fotográfico. Depois de tudo preparado e posicionado, fazia-se de novo escuro. Na escuridão, ouvia-o abrir a caixa do papel, tirar uma folha e colocá-la com perícia no ampliador. A luz deste acendia-se projectando o negativo no papel através de um cone de luz e eu espreitava, fascinado, olhando com ávida curiosidade aquelas estranhas manchas cinzentas, umas claras e outras escuras. Manchas que tornavam brancos os pretos das áfricas e dos brancos fazia negros! Como se a fotografia quisesse tratar todos os homens da mesma maneira, talvez com o mesmo desprezo. Manchas das quais nasceria a fotografia. Via o padrinho, com as mãos, manipular o cone de luz com gestos de mágico, para compensar zonas mais ou menos queimadas. A folha era colocada na tina com o banho de revelador e, pouco depois, como por magia, a imagem aparecia a pouco e pouco.

Era ver-me, debruçado sobre a tina com o nariz quase mergulhado lá dentro, vendo a superfície do papel a alterar-se, escurecendo, manchando-se de óxido de prata, objectos, corpos, rostos formando-se, como fantasmas saindo do nada. Mais tarde aprendi por que processos químicos aquele fenómeno era possível e eu próprio fiz trabalho fotográfico em laboratório como amador mas naquele tempo, aquilo tinha o sabor da magia, a atracção do inexplicável. Naquele momento, o padrinho era um mago, um prestidigitador. E eu era o público daquele espectáculo fantástico. Público privilegiado e maravilhado. Depois a fotografia passava ainda por fixador e era lavada sendo em seguida pendurada a secar para, ainda húmida, ir para a esmaltadeira. E eu ia dar outra volta, correr todos os corredores, entrar em todas as salas, assomar a todas as janelas, percorrer todos os cantos, procurar em todos os esconsos, saboreando o mais possível a minha aventura naquele castelo mágico. Era assim ir a casa da tia!

Desculpa ser longo e chato

Fernando

Um beijo

anamar disse...

Olá Fernando
Obrigada pelo texto que me enviaste. De "chato" nada tem, ao contrário, levou-me também duma forma gratificante, a casa do "padrinho".Acredito que as nossas memórias são a companhia que nunca nos falha nas horas boas e más. Eu também vivo muito delas...
Achei piada à tua descrição..."está um temporal enorme lá fora; fui ao quintal buscar lenha e levei com vento, água e lembrei-me de ti"...Acredita que não sendos o "padrinho", fizeste para mim, uma fotografia fidelíssima da tua incursão pelo temporal.
Lembraste-te de mim...será que de alguma forma eu estou "associada" a toda essa intempérie??!!..rsrsrs
Estou a brincar, claro.
Vai aparecendo quando puderes e fizeres gosto. É bom sentir que do "outro lado" sempre temos gente que nos "ouve"...
Um beijinho
Anamar

Anónimo disse...

Olá Ana:

Hoje não há temporal. Recolhi o meu cão e o meu gato.E gostaria de te mostrar o que não é um temporal.
Sem levar água nem vento.
Sou teu leitor fidelíssimo.
Independente do temporal.


Fernando