sábado, 16 de maio de 2009

"O RAMALHETE RUBRO DAS PAPOILAS"




"Eu canto o mês de Maio , ó meu amigo..." - assim dizia Adriano.

Raiava o sol e a minha avó irrompia pelo quarto dentro. No bolso do avental, tantas amêndoas da Páscoa recente, quantos os netos que nessa madrugada do romper de Maio haviam dormido naquela casa-mãe.

Gente gaiata, de brincadeiras tardias, sono a carregar sobre a madrugada, dormia a sono solto.
"Que mania aquela!" - pensava eu. "Por mais que viva não vou entender nunca!"

E a sua voz, de quem já tem à vontade meio dia de trabalho em cima do pêlo, não dava chances, por mais súplicas ou pedidos de apelo que houvesse.
"Vá meninos...vamos lá comer a amêndoa, senão ficam com o Maio o ano inteiro. Não se pode deixar entrar o Maio!!"

Entrar o Maio, era sinal de preguiça. Quem o deixasse entrar, seria tomado de uma preguiça incontrolável por todo o ano, e por isso havia que "rolhar" as "entradas" ou "saídas" (como queiram), do corpo, para que tal "maldição" não se apossasse da gente nova, já de si tão dada a preguiças naturais...
Esse era o papel da amêndoa...
Ainda hoje, morta a minha avó há quarenta anos, a minha mãe não deixa passar um só primeiro de Maio que não me pergunte, no primeiro telefonema da manhã: "Então, deixaste entrar o Maio?"...
Oh mulherzinha aquela! Vá lá ter uma memória destas aos oitenta e oito anos!!!
E sempre lhe cheira a heresia, se por acaso, pressente que aí p'las onze ainda estou em vale de lençóis!...

Os meus avós já foram há muito, a casa-mãe daquele Alentejo que albergava os muitos que então éramos, também já não é nossa...mas o Maio sempre se me associa a memórias doces.

Na próxima quinta-feira, 21 este ano, Dia da Ascenção no calendário litúrgico, é um desses dias em que recupero um pouco a minha infância.
"Quinta-feira da Espiga"...e logo me revejo a sépia descolorida, de tranças, soquetes, vestidinho de roda e toda a charneca florida à minha frente...

Maio, tradicionalmente, e para mais no sul, significava já, temperaturas veranis, cheiros adocicados nos campos, vestidos de branco, amarelo, roxos e vermelhos.
Maio, era o mês, em que, junto com a espiga, se traziam para enfeitar as casas, braçadas de giestas, douradas e cheirosas, despretensiosas e singelas, mas rainhas num aroma intenso - as maias.
Quinta feira da espiga era dia de agitação entre a criançada, que só visto! Era dia de pic-nic nos campos, debaixo das oliveiras ou sobreiros, com todo aquele "jardim" em que se torna a charneca em flor do meu Alentejo.

E lá íamos, apetrechados de coisas para brincar, a corda para saltar, o arco do hula-hoop, com os avós, os pais, os tios, mas sobretudo a "canalha" que éramos nós, primos de idades próximas, danados p'ra brincadeira e para nos deliciarmos com o farnel meticulosamente carregado de mimos, que os adultos transportavam.
E lá íamos apanhar a "espiga", que duraria na cozinha ou na dispensa de um ano a outro, como bom presságio de abundância, felicidade e alegria.



E era ver quem fazia o ramalhete mais bonito e criativo.
Tinha ele três espigas de trigo, tiradas da seara ali aos nossos pés, sinal de que não faltaria o pão na mesa, um ramo de oliveira que simbolizava o azeite, três malmequeres amarelos (ouro), três malmequeres brancos (prata), e para lá de todas as florzinhas singelas que encontrássemos pelos campos, que levariam a alegria que iria abençoar aquela casa, como o alecrim que transporta em si saúde e força...um ramalhete rubro de papoilas, que são o amor e a vida...

E sempre foi assim, enquanto o Maio foi Maio, enquanto eu fui criança, quando havia ainda a preocupação de fazer passar adiante as pequenas coisas que faziam a vida simples das pessoas...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

"Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul

Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar

Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar"
(Zeca Afonso)

olá Anamar

Desejosa de descansar do meu dia trabalhoso e altamente inútil, vim aqui recostar-me no teu cantinho.
Que é como quem diz, nas tuas histórias, de vida, vividas.
Que bom é ouvir-te...
Beijo
Lena spaces (amplos)
PS: Tenho saudades de ti.

anamar disse...

Olá Lena spaces
Obrigada por tudo o que sempre me dizes...
Tu estás cansada...eu exausta...
Péssima companhia, isolamento, espécie de black-out... solidão tenebrosa!!
Obrigada pelo Zeca...também tenho saudades tuas...Inércia angustiante...ânsia de concha...
Como seria bom saber dizer: "Chiça! Chega...deixa de te embolares na própria merda!"
Mas não tenho força!
Olha, não ligues...isto hoje está assim...espécie de maldição que não percebo porque tenho que cumprir! Karma dos infernos!
Estou cansada!
Beijos, muitos
Anamar