sexta-feira, 15 de maio de 2009

"A QUEDA DE UM ANJO"



E dizia-me ela de soslaio, entre dois tragos de café, na remota esperança que o sol desse as caras:
"Há fases na vida em que não bastando tudo aquilo a que temos "direito", ainda mais uns acrescimozitos nos povoam as mentes.
E mesmo lutando por vezes contra a indisponibilidade temporal, lutando contra a correria ou a má distribuição dos "que fazeres", chegam, instalam-se e não desgrudam"...

Levantei os olhos de uns pardais desafiadores que "penicavam" migalhas, cada vez mais perto, e olhei-a...curiosa já.

"Eu nisso, sou perita. Acho mesmo, que especialista!
Seja Inverno, porque chove e está carregado, seja Outono porque os dias são introspectivos e pesados, seja Verão...já não sei bem porquê...não consigo achar a mínima piada a "isto", e como tal, alegria, satisfação, plenitude, não são o meu "bilhete premiado!!!
Devo ser um espécime insuportável, intragável, "indigerível", sem solução à vista, sem terapia previsível, sem cura provável...uma "chata de galochas"...isso sim, como dizem os brazucas"!

Não entendia ainda aquele discurso de rajada, mas pressentia que vinha lá "chumbo grosso", pois os olhos dela vidravam de lágrimas próximas.

"Desta vez, trata-se da queda de um anjo...estás a ver??"

Embora cada vez visse menos, dei-me um ar sério e disse:"hum hum...claro" - e esperei.

"Um anjo, como o nome indica, é algo etéreo, algo perfeito, algo sem mácula, algo acima, muito acima de tudo o que esperaríamos, desejaríamos, sonharíamos...
Um anjo, como o nome indica, é uma figura irreal, conceptualizada normalmente por alguém sofredor, uma mente carente, por um ser que está na vida..."de menos"...entendes?
Um anjo realmente não passará de um sonho, quantas vezes criado, alimentado, inventado por quem o criou...
Assim uma espécie de um Pinóquio criado por um Gepeto crédulo, que o tornou gente e o amou, sabes?"...

Apurei os instintos, esqueci os pardais, esfriei o café e prendi-me àquela "torrente" que não parecia poder parar.

"Todos mais ou menos, por necessidade, dependência, afecto, desejo, paixão, razão de vida...sobrevivência, criamos os nossos próprios "anjos", que descem de um qualquer paraíso, e se tornam gente no meio em que vivemos (ainda por cima, querendo fazê-lo de uma forma normal e lógica), a quem passamos a amar, e pior, a quem passamos a imputar uma responsabilidade que não têm, nem podem ter...que é, serem efectivamente "anjos" perfeitos, completos, tal como os concebemos, os acreditámos, tal como a "obra" é olhada desveladamente pelo criador...

Aqui, já se descortinava na totalidade, o nó que lhe sufocava a garganta e as lágrimas também desciam sem nenhuma contenção por aquele rosto misto amargura, raiva, cansaço, desânimo...sendo ao mesmo tempo um rosto infantil de criança, surpresa por algo que não entendia...
Aqui, já eu tinha a cabeça em rodopio, já me "embrulhava" toda, em busca do que dissesse, do que pudesse dizer e a não saber dizer nada...
Nos meus ouvidos ecoavam - "entendes?" "percebes?" "sabes como é?"...
Fungando, soluçando, esquecida de tudo o que girava em torno de nós, esquecida da rua, das gentes, dos carros, da cidade...terminou:

"E quando constatamos a utopia que foi, ver a ficção que criámos, quando apercebemos a revolta que sentimos (sem razão), quando sentimos a fraude que experimentámos (que o não foi, mas acabou connosco), quando sentimos uma injustiça atroz, até por injustiçar quem não nos pediu para ser anjo nas nossas vidas, quando sentimos a agonia que é acordar finalmente, e perceber que o sonho não era sonho, mas se aproximou mais de um pesadelo...e que daquele "anjo", nem as "asas" sobraram...aí sim, é que percebemos que só podemos estar profundamente doentes"!!!...

O meu silêncio era sepulcral...
Como eu entendia!! Como eu percebia!! Como eu sabia como era, essa coisa de quedas de anjos!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Ana:
Adorei o que escreveste porque estiveste muito perto de um anjo.
Tiveste muito perto do perfeito.
Uma autêntica escritora, plena de confiança.
Não sei porquê lembrei-me da introdução da Moby Dick.Hei-de psicanalisar-me para vêr as relações entre as duas escritas, porque a tua não tem nada do imaginário do Herman Melville.
Mas gostei muito.
Viva a escritora

Fernando Sequeira

anamar disse...

Oh Fernando
Obrigada.
Só tu para me pores o "astral" p'ra cima, hoje!!!
Parecem coisas do destino, mas no dia de hoje, a esta hora e com o estado de espírito com que me encontro, "adivinhaste" que eu precisava encarecidamente de um colinho.
De facto os "meus anjos" caíram todos de uma só vez!!!
Bem-hajas e um beijinho para ti.
Anamar